Opinião

Pode existir investigação secreta?

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

27 de agosto de 2022, 9h06

Questão controvertida e que comumente ocorre no meio jurídico: pode ser obstado o acesso aos autos pelo investigado ou seu advogado, seja no âmbito criminal, civil ou administrativo? Perguntando de forma mais objetiva e de acordo com nossa realidade: pode o investigado ser inquirido sem que lhe seja informado qual o teor da investigação e do que está sendo "acusado"?

E pior. Pode o investigado ser preso provisoriamente (prisão temporária ou preventiva) e ser negado acesso aos autos por seu advogado?

Não esperava na altura do desenvolvimento do nosso direito ter de discutir tema que se aprende nos primeiros anos da faculdade e fácil de ser resolvido à luz do nosso sistema constitucional e processual penal.

Para possibilitar o amplo acesso dos advogados a autos de investigação de qualquer natureza, a Lei 13.245, de 12.01.2016, deu nova redação ao artigo 7º, inciso XIV, da Lei 8.906, de 04.07.1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil). Assim, o advogado poderá examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital. A procuração será necessária apenas para o exame dos autos que correm em sigilo (artigo 7º, §10).

E isso vale para todas as instâncias do Poder Judiciário sem nenhuma exceção ou hipótese, já que as normas positivadas vigem para todos os procedimentos e em qualquer grau de jurisdição.

Por outro lado, a fim de que não ocorra risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências investigatórias, a autoridade que conduz as investigações poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentadas nos autos (artigo 7º, §11).

Vejam bem. Estando as provas dentro do caderno investigatório, seja nos autos principais ou apensadas a eles, não podem ser sonegadas do investigado (fase de investigação) ou do acusado (fase processual).

As diligências em andamento que possam comprometer as investigações deverão ser realizadas em procedimento à parte e, quando finalizadas, todo o procedimento e material produzido deverão ser disponibilizados à defesa no chamado contraditório diferido (que ocorre após a realização do ato procedimental). Isso é muito comum nas interceptações telefônicas ou de telemática, que devem necessariamente correr em sigilo para não atrapalhar as investigações e o próprio ato.

Entretanto, isso não implica ser o procedimento secreto, o que é vedado em nosso ordenamento jurídico. Qualquer pessoa investigada deve saber o teor da investigação e as provas existentes contra ela, notadamente quando será interrogada ou deverá prestar informações por escrito. Não podem, assim, as diligências estar constantemente fora do caderno investigatório, a pretexto de não atrapalhar o êxito das investigações.

A respeito do tema, a Excelsa Corte editou a Súmula Vinculante 14, que propicia acesso irrestrito do advogado aos autos de investigação criminal realizado por órgão com competência de polícia judiciária, em que haja interesse de seu representado. Diz a súmula: "É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa".

Há de ser observado, porém, que a súmula vinculante possibilita acesso somente às provas já documentadas e que façam parte de um procedimento investigatório de órgão com competência de polícia judiciária, quando disser respeito ao exercício do direito de defesa. Diligências em andamento não são alcançadas pela súmula, ou seja, para ser possível o acesso às provas pelo advogado elas deverão estar juntadas aos autos do inquérito policial ou outro procedimento investigativo. Trata-se de interpretação lógica, pois, caso contrário, o conhecimento delas obstaria a correta apuração da infração penal.

Por conta da limitação da súmula vinculante e visando o acesso a todo procedimento investigatório realizado por qualquer autoridade competente (delegado de polícia, membro do Ministério Público, auditor da Receita Federal, dentre outras), ocorreu a alteração legislativa.

Oportuno ressaltar que, ocorrendo a violação dos direitos do advogado de obter amplo acesso aos autos de investigação (inciso XIV do artigo 7º), o fornecimento incompleto de autos ou de que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo, importará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável, quando agir com o intuito de prejudicar o exercício da defesa (artigo 7º, § 12), podendo o agente que assim proceder ser penalizado nos termos do artigo 32 da Lei nº 13.869/2019, que diz: "Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível: Pena detenção, de seis meses a dois anos, e multa".

Lembro, porém, que para a ocorrência desta espécie de delito é exigida a intenção especial de abusar da autoridade de que o agente público é investido, que é elemento subjetivo específico do tipo, sendo que a divergência de interpretação sobre fatos e normas o afasta, nos exatos termos dos §§1º e 2º, do artigo 1º da Lei nº 13.869/2019.

Ressalto, ainda, que, a novel norma tem de ser interpretada de modo a não atrapalhar o êxito das investigações. Deve ser preservada a ampla defesa, mas esse direito não pode ser exercido a ponto de prejudicar investigações que correm em sigilo e que ainda não tenham sido documentadas nos autos. Nessa hipótese, o contraditório será exercido em outro momento (diferido), de forma a não ocorrer prejuízo ao exercício do direito de defesa.

Com efeito, podendo o acesso do advogado a diligências em andamento, que ainda não estejam juntadas aos autos, causar risco ao êxito das investigações, deve a autoridade competente, fundamentadamente, limitar o acesso a provas que naquele momento não possam ser conhecidas pela defesa. Do contrário, não haverá mais investigações frutíferas que dependam do sigilo das diligências, o que certamente não é o espírito da lei.

Cuida-se de medida excepcional, já que a regra é a publicidade das investigações para o investigado e a defesa. Não pode existir procedimento secreto e que perdure indefinidamente, obstando o acesso dos investigados às provas contra si existentes, o que viola a ampla defesa e o contraditório, já que qualquer pessoa alvo de investigação deve ter conhecimento de todos os elementos de prova existentes em seu desfavor para que possa montar sua defesa e não ser surpreendida no caso de ser proposta a ação penal.

É importante salientar que o sigilo das investigações não pode ser oposto ao Ministério Público, que, além de ser o titular da ação penal pública (artigo. 129, I, da CF), atua como fiscal da ordem jurídica. Ora, se o Ministério Público é o destinatário da prova produzida no inquérito policial ou procedimento similar, exceto no caso de ação penal privada em que funciona como fiscal da ordem jurídica, é óbvio que, a qualquer momento, terá acesso aos autos, podendo, inclusive, requisitar diligências investigatórias (artigo 129, VIII, da CF). Assim, não é possível obstar que o órgão ministerial tenha acesso aos autos do procedimento investigativo, que apura qualquer espécie de crime.

O que nunca pode ocorrer é a pessoa ser intimada ou conduzida para ser interrogada, mesmo que de forma travestida de depoimento como testemunha, e não saber do que se trata a investigação e o porquê de estar sendo inquirida. Tal proceder é absolutamente ilegal e não se coaduna com o devido processo legal e o estado democrático de direito. Toda e qualquer pessoa tem o direito de saber quais são as suspeitas que recaem sobre si e as provas existentes no caderno investigatório antes de ser inquirida, formal ou informalmente. Por isso, o interrogatório é o último ato processual por se tratar de meio de defesa, muito embora seu teor possa ser igualmente empregado como prova.

Todas as pessoas podem ser investigadas quando houver suspeita da prática de infração penal, civil ou administrativa. No entanto, nosso sistema constitucional prevê diversas garantias processuais que devem ser observadas por todas as instâncias do Poder Judiciário e demais órgãos da persecução penal, pressuposto do estado democrático de direito, que visa a salvaguarda de todos, independentemente de quem seja e da ilegalidade cometida.

Apurar crimes, sim. Ninguém em sã consciência e que esteja de boa-fé pode compactuar com atos contrários à democracia ou que impliquem crime de qualquer espécie. No entanto, não é possível, a pretexto de apurar eventuais delitos deixar de se observar os princípios e regras constitucionais que preservam a regularidade das investigações e, por consequência, a garantia de produção probatória isenta de vícios, que poderão fundamentar eventual propositura de uma ação penal.

Investigação sigilosa, claro que é possível, dentro dos parâmetros legais e com o amplo acesso do advogado, acusado, indiciado ou investigado às provas produzidas após sua finalização e antes do interrogatório (formal ou informal) para que seja observado o contraditório e a ampla defesa. Já a investigação secreta, em que somente algumas pessoas integrantes da persecução penal tenham acesso, essa é vedada pelo nosso sistema normativo.

A investigação secreta, nos moldes que expusemos, torna inadmissíveis processualmente as provas produzidas e sua derivação, que são ilícitas por violação à ampla defesa, contraditório e devido processo legal, além de eventualmente caracterizar crime de abuso de autoridade por parte do agente público que assim proceder.

Em direito, os fins nunca podem justificar os meios.

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