Ambiente Jurídico

O tombamento pode gerar direito de indenização ao proprietário do bem?

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

27 de agosto de 2022, 8h00

Como sabido, previsto constitucionalmente no artigo 216, § 1º da Carta Magna e disciplinado, em âmbito nacional, pelo Decreto-lei nº 25, de 1937, o tombamento é um processo administrativo por meio do qual o poder público, a fim de proteger bens móveis ou imóveis dotados de valor cultural, reconhece formalmente o especial significado e interesse público do qual se reveste a coisa, que passa a ficar submetida a um especial regime jurídico no que pertine à disponibilidade, à conservação e à fruição, com o escopo de preservar os seus atributos essenciais.

Spacca
A finalidade do tombamento é a conservação da integridade dos bens acerca dos quais haja um destacado interesse público pela proteção em razão de suas características especiais.

No que tange ao objeto, o tombamento pode ser aplicado aos bens móveis e imóveis, públicos ou privados, de interesse cultural ou ambiental, quais sejam: fotografias, livros, mobiliários, utensílios, obras de arte, edifícios, ruas, praças, cidades, regiões, florestas, cascatas etc.

Tema que sempre gera controvérsias diz respeito ao tombamento ensejar ou não direito a indenização por parte do proprietário que experimenta limitações ao seu direito de usar, gozar e dispor da coisa.

No campo doutrinário existem tradicionalmente duas correntes sobre o assunto: uma defendendo a gratuidade do tombamento e outra afirmando que o tombamento pode gerar indenização em determinados casos.

Defendem a primeira tese os doutrinadores que entendem que o tombamento constitui uma limitação administrativa, ou seja, que o tombamento é uma restrição geral e gratuita, imposta indeterminadamente pelo poder público às propriedades.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro [1], uma das defensoras desta tese, enfatiza:

"O tombamento é sempre uma restrição parcial, não impedindo ao particular o exercício dos direitos inerentes ao domínio; por isso mesmo, não dá, em regra, direito a indenização; para fazer jus a uma compensação pecuniária, o proprietário deverá demonstrar que realmente sofreu algum prejuízo em decorrência do tombamento.

Se, para proteger o bem, o Poder Público tiver que impor restrição total, de modo que impeça o proprietário do exercício de todos os poderes inerentes ao domínio, deverá desapropriar o bem e não efetuar o tombamento, uma vez que as restrições possíveis, nesta última medida, são apenas as que constam da lei, nela não havendo a previsão de qualquer imposição que restrinja integralmente o direito de propriedade."

Adeptos da segunda tese são os doutrinadores que entendem ser o tombamento uma servidão administrativa, ou seja, um ônus real de uso imposto especificamente pela administração pública a determinados bens. Em razão do princípio da isonomia, ficaria a coletividade obrigada a reparar o dano eventualmente experimentado (de forma concreta) pelo proprietário do bem.

Contudo, apesar do tombamento se assemelhar à servidão por individualizar o bem protegido, dela se difere porque não há a indispensável coisa dominante, essencial para caracterizar o instituto da servidão, de sorte que não se lhe pode emprestar tal natureza jurídica.

De nossa parte, entendemos que as vetustas correntes administrativistas não explicam, a contento, a verdadeira natureza jurídica do tombamento, que é sui generis e não comporta enquadramento nas tradicionais formas de intervenção do Estado na propriedade privada.

Com efeito, concebemos o tombamento como uma forma especial de reconhecimento do interesse público do bem protegido (o bem é público não enquanto bem de domínio, mas enquanto bem de fruição), o que limita e condiciona o exercício do direito de propriedade sem que daí derive, necessariamente, direito à indenização.

Ora, como sabido, a Constituição Federal é expressa no sentido de que a propriedade atenderá à sua função social e o artigo 1228, § 1º. do Código Civil, em complemento, preconiza que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Como leciona Garcia de Enterría [2]:

"A propriedade não é para os homens de hoje um direito absoluto e sagrado em si mesmo, não é a base inalterável da sociedade, como se acreditava no século XIX, de modo que resulte intangível ou indisponível pelos poderes públicos. Hoje a propriedade justifica-se, legitima-se, tanto quanto ela seja capaz de obter como instituição rendimentos sociais superiores aos de uma gestão meramente burocrática."

De tal sorte, mostra-se naturalmente indevida a indenização ao proprietário do bem tombado quando as restrições impostas pelo Poder Público se limitam àquelas expressamente previstas no Decreto-Lei nº 25/37 [3], notadamente as relacionadas aos deveres de não destruir, demolir ou mutilar a coisa tombada; de não reparar, pintar ou restaurar a coisa sem autorização do órgão tombador (artigo 17); de realizar as obras de conservação e reparação da coisa tombada (artigo 19) e de permitir a fiscalização do bem protegido pelo órgão competente (artigo 20).

Constata-se de uma simples leitura do Decreto-Lei nº 25/37 que o legislador não demonstrou qualquer preocupação em recompor eventuais limitações sofridas pelo proprietário do bem tombado, diferindo de algumas legislações alienígenas, que previram expressamente as consequências indenizatórias do ato de proteção, mesmo que para afastá-las expressamente. A ausência de dispositivo legal expresso demonstra, a princípio, que não há uma vinculação necessária entre o instituto do tombamento e a indenizabilidade do proprietário do bem protegido.

Por isso, comungamos do entendimento de José Eduardo Ramos Rodrigues, que assim se manifesta [4]:

"Em resumo, não deve falar em indenização ou expropriação em caso de tombamento. O vínculo atinge a fração pública da propriedade, mantendo incólume a privada. Isto origina uma obrigação para ambos, proprietário e Estado, de agirem conjuntamente em defesa do bem protegido. Destarte o Poder Público deve cooperar com incentivos, recursos econômicos e técnicos para auxiliar a atuação do proprietário privado, que não se confundem em absoluto com indenização. Os investimentos públicos correspondem à posição do Estado como titular do bem de fruição que encontra suporte no bem cultural."

De igual sorte, pertinentes são as ponderações de Carlos José Teixeira de Toledo, que combate a utilização de argumentações genéricas sobre danos supostos aos proprietários de bens tombados, sem qualquer demonstração concreta [5]:

"A limitação de certas faculdades do domínio, embora possa colidir com o interesse do proprietário, não representa por si só algo que seja merecedor de reparação pelo Poder Público. O tombamento impõe certos condicionamentos ao exercício dessas faculdades, mas em geral mantém íntegros os elementos essenciais da propriedade, que permitem o seu desfrute perpétuo e exclusivo pelo proprietário. Assim, não nos parece que estejam sob o abrigo do direito os prejuízos virtuais e supostos, em razão do não-exercício de determinadas expectativas que jamais se converteram em direito."

Somente se cogita de eventual indenização em decorrência do tombamento quando a administração pública, indo além das restrições que ordinariamente decorrem do regime jurídico previsto no Decreto-lei nº 25/37, inclui outras, a exemplo da imposição de um determinado uso ao bem tombado, o chamado "tombamento de uso", que não encontra guarida na Lei de Tombamento.

A propósito, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar no sentido de que o tombamento, pela municipalidade, de imóvel particular, visando preservar o patrimônio artístico-cultural da cidade, não lhe possibilita predeterminar a modalidade de uso da coisa tombada, pois inviável o tombamento daquilo que não seja bem móvel ou imóvel suscetível de apropriação e conservação [6].

Em casos tais, em razão da limitação imposta ultrapassar os efeitos genéricos previstos na Lei do Tombamento, resta configurada verdadeira desapropriação indireta, abrindo possibilidade do lesado pleitear a nulidade do ato quanto a tal efeito ou buscar indenização pela excessiva limitação não decorrente de lei, dentro dos prazos prescricionais previstos [7].

Como ressalta Sônia Rabello de Castro [8], com relação ao aspecto do uso do bem tombado o que pode ocorrer é que, em função da necessidade de conservação, ele possa ser adequado ou inadequado. Por isso, se determinado bem acha-se tombado a sua conservação se impõe e devem ser coibidas as formas de utilização da coisa que lhe causem dano, gerando sua descaracterização. Nessa hipótese poder-se-á impedir o uso danoso do bem tombado não para determinar um uso específico, mas para impedir o seu uso inadequado.

Enfim, os proprietários de bens culturais devem exercer o direito sobre as coisas de seu domínio não unicamente em seu próprio e exclusivo interesse, mas em benefício da coletividade, observando todo o regramento constitucional e legal sobre a proteção do patrimônio cultural, sendo precisamente o cumprimento da função social que legitima o exercício do direito de propriedade pelo titular.

Em tal cenário, as ordinárias restrições ao direito de propriedade decorrentes do ato do tombamento, nos limites estabelecidos pelo Decreto-Lei nº 25/37, não são capazes de gerar direito de indenização em face do Poder Público, a quem toca, pode dever constitucional indeclinável, a obrigação de acautelar o patrimônio cultural brasileiro, valendo-se dos instrumentos legais necessários para se desincumbir de tal relevante mister.

 


[1] Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 132.

[2] Apud RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Meio Ambiente Cultural: Tombamento – Ação Civil Pública e Aspectos Criminais. p. 335.

[3] Em tal sentido: A só criação do Parque Estadual da Serra do Mar e a instituição de tombamento não geram direito à indenização por desapropriação indireta se não estabelecem limitações maiores do que as já determinadas pelos Códigos Florestais de 1934 e de 1965 e não resultam em esvaziamento comprovado do conteúdo econômico da propriedade do imóvel. Ação improcedente. (TJ-SP; EDcl 0382626-91.2009.8.26.0000/50000; Ac. 4649515; Itanhaém; 5ª Câmara de Direito Público; Rel. des. Xavier de Aquino; Julg. 22/2/2010; DJESP 1/4/2014)

[4]Meio Ambiente Cultural: Tombamento – Ação Civil Pública e Aspectos Criminais. In: Ação Civil Pública – Lei 7.347/1985 – 15 anos. Coordenador Edis Milaré. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2001. p. 335-336.

[5] A proteção do patrimônio cultural e suas repercussões patrimoniais. p. 423.

[6] RE 219.292-1 – MG, j. 07.12.1999 – RT 782/187.

[7] No julgamento do Tema 1.019 o STJ firmou a tese de que o prazo prescricional aplicável à desapropriação indireta, na hipótese em que o poder público tenha realizado obras no local ou atribuído natureza de utilidade pública ou de interesse social ao imóvel, é de 10 anos, conforme parágrafo único do art. 1.238 do CC.

[8] O Estado na conservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 108.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!