Opinião

No festival de privilégios e benesses, a conta não fecha

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26 de agosto de 2022, 16h08

Não é novidade pra ninguém o festival de privilégios que certas "castas" de funcionários públicos possuem no Brasil. De auxílio pré-escola a lagosta no almoço, ou mesmo auxílio moradia para quem já tem casa própria, a lista é enorme e vergonhosa [1].

Além desses privilégios, alguns funcionários públicos também são agraciados por interpretações mais "benéficas" da legislação, como no caso da não incidência do imposto de renda em férias não gozadas pelos juízes [2], o que é aplicável a eles e apenas a eles.

Dentro desse "festival de privilégios e benesses" temos um curioso caso que acontece há bastante tempo em Minas Gerais e que será apresentado ao leitor nas próximas linhas, sobre o qual vamos aprofundar um pouco em sua análise.

Com efeito, por meio do Decreto estadual 19.287/78 [3] e da lei delegada 38/97 [4], ambas legislações estaduais, os integrantes das carreiras de perito criminal e médico legista, ambas pertencentes ao quadro de pessoal da Polícia Civil de Minas Gerais, passaram a receber gratificação por risco de contágio em razão das atividades por eles desempenhadas, o que é bastante justo, afinal, diante de um maior risco à saúde deve corresponder uma maior remuneração, ainda que dentro de uma mesma carreira.

Ocorre, porém, que o pagamento dessa gratificação é feita de forma indistinta, sem qualquer gradação ou suspensão/interrupção a depender de determinadas situações, tendo direito ao recebimento da gratificação todos os integrantes daquelas carreiras, dando a impressão que o único critério para o seu pagamento é pertencer à carreira de perito criminal e/ou médico legista, porém, não deveria ser assim, e as próprias normas legais definem critérios para o direito ao recebimento da gratificação, senão vejamos.

O Decreto estadual 19.287/78 estabelece que o direito ao recebimento da gratificação surge a partir da posse no cargo e irá perdurar enquanto o servidor permanecer ativo no cargo respectivo [5], inclusive durante alguns tipos de afastamento, como gozo de férias, casamento e outros. Contudo, a partir do momento que o servidor, de forma definitiva ou transitória, deixar de exercer as atividades específicas do seu cargo, e que ensejaram o pagamento da gratificação, deve haver a suspensão/cancelamento imediato da sua concessão, vejamos:

"§2º – A atribuição ao servidor de encargos que o afastem das atividades específicas que determinaram a concessão da gratificação implicará suspensão imediata de seu pagamento pelo período em que perdurar" (§2º, do artigo 2º do Decreto nº 19287/78; sic;).

Desta feita, o perito criminal e/ou médico legista que não esteja no exercício da atividade finalística do seu cargo não deveria receber a gratificação, porém, não parece ser isso o que acontece em Minas, na medida em que dos 569 peritos criminais e 322 médicos legistas em atividade no estado, 567 peritos e 320 médicos recebem a gratificação [6], não se afigurando crível que toda a Superintendência de Polícia Técnico-Científica, unidade integrante da PC-MG ao qual os respectivos servidores se encontram vinculados, funcione com apenas quatro servidores dessas carreiras para o desempenho das atividades meio (administrativas. Cite-se, por exemplo, os cargos de chefia, de diretoria, de assessoria, de coordenação, etc).

Interessante registrar, neste ponto, que a própria legislação que criou o pagamento dessa gratificação estabeleceu a responsabilidade da chefia imediata do servidor que deixar de desempenhar a atividade fim de comunicar essa circunstância ao órgão responsável pela elaboração da folha de pagamento visando a suspensão ou cancelamento da gratificação[7].

Aliás, sobre a temática o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) já teve a oportunidade de se manifestar por algumas vezes, destacando-se abaixo o que ficou decidido no julgamento da Apelação Cível nº 1.0024.11.312762-5/002, senão vejamos:

"[…]Como se extrai da análise do Decreto Estadual 19.287/1978, o legislador foi taxativo ao limitar a incidência da aludida gratificação de risco de contágio ao servidor que estiver desempenhando as atividades inerentes aos cargos de médico legista, auxiliar de necropsia ou perito criminal (artigo 1°), prevendo a imediata suspensão do respectivo pagamento diante da atribuição de outras atividades diversas daquelas previamente especificadas (artigo 2°, §2°)[…]Portanto, para que se reconheça o direito do servidor ao pagamento da gratificação por risco de contágio, de caráter propter laborem, mostra-se necessária a comprovação de que este esteja executando atividade comum, própria do cargo, mas em situação anormal. Todavia, esta não é a situação do autor, ora apelante, que não está exercendo as atribuições próprias do cargo de Perito Criminal, mas se encontra em desvio de função[…]" (sic;).

Não bastasse isso, o pagamento da gratificação por risco de contágio a tais profissionais é sempre feito no patamar de 40%, não sendo levado em conta o grau de exposição do servidor ao risco a que esteja exposto, pois, sabemos, existem aquelas atividades que possuem um risco mais baixo (verbi gratia, exames periciais em documentos)  e aquelas atividades que expõem o trabalhador a um risco mais alto (v.g., exames periciais em substâncias químicas) e, portanto, deveria haver uma gradação no pagamento da indenização, porém, não é o que ocorre em Minas, posto que todos [8] os peritos criminais e médicos legistas da ativa recebem a gratificação no valor de 40% sobre seu vencimento, independentemente do grau de exposição ao risco de contágio se encontrem.

Contudo, o artigo 13 da Lei estadual nº 10.745/92 [9] estabelece uma gradação entre 10% a 40% para o pagamento da gratificação relacionada às atividades que habitualmente submetam o trabalhador a risco de contágio, sendo certo que o grau de exposição a esse risco (baixo, médio ou alto), a fim de calcular o percentual de incidência sobre o vencimento, deverá ser comprovado por meio de perícia especializada, podendo servir como parâmetro as regras estabelecidas na NR-15 do MTE.

Porém, como já mencionamos acima, em Minas, no que se refere às carreiras de perito criminal e médico legista, ocorre o pagamento da gratificação por risco de contágio sempre no patamar de 40% sobre o vencimento do servidor, não importando o grau de exposição ao risco de contágio ele se encontre, bastando que esteja em atividade, não importando se na atividade fim ou meio, haverá o pagamento dessa gratificação, muito embora a legislação estadual seja clara em determinar a suspensão ou cancelamento do pagamento quando o servidor se encontrar afastado das funções finalísticas do seu cargo.

Assim, como mencionamos no início deste artigo de opinião, no Brasil existe um verdadeiro festival de privilégios (e benesses) a determinadas "castas" de funcionários públicos, isso é inegável, e dia após dia surge uma nova farra com o dinheiro público [10] (não existe limites, afinal, é fácil gastar aquilo que "não é seu"), a grande questão é que a conta não fecha, seja em relação à necessidade de aumentar a expropriação da propriedade privada (tributos) para financiar essa farra ou em razão da deficiência na prestação do serviço público decorrente da falta de recursos para investigar em melhores condições de trabalho, já que a “grana” é torrada para engordar os bolsos já cheios de alguns funcionários públicos.


[1] Uma amostra da lista, especificamente no âmbito do Poder Judiciário, pode ser conferida no endereço eletrônico https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/12/22/interna_politica,1015536/confira-auxilios-recebidos-pelo-poder-judiciario-em-cada-estado.shtml, acesso em 17/08/2022 às 18:30h.

[2] Conforme notícia disponível no endereço eletrônico https://www.conjur.com.br/2009-nov-16/ir-nao-incide-pagamento-abono-pecuniario-juizes, acesso em 17/08/2022 às 18:45h.

[3] "Artigo 1º – O ocupante de cargo de Médico Legista ou de Auxiliar de Necropsia, que se refere o Quadro Específico de Provimento Efetivo constante do Anexo I da Lei nº 6.499, de 4 de dezembro de 1974, tem direito à gratificação por risco de contágio na proporção de 40% (quarenta por cento) sobre o valor resultante da soma das parcelas correspondentes ao vencimento e aos adicionais pelo regime de trabalho policial civil e por tempo de serviço na forma deste Decreto e observação o disposto no artigo 5º do Decreto nº 10.058, de 27 de setembro de 1966".

[4] "Artigo 9º – Fica atribuída ao servidor da classe de Perito Criminal a gratificação de risco de contágio na proporção fixada no artigo 1º do Decreto nº 19.287, de 4 de junho de 1978, observadas, no que couber, as demais disposições do mencionado Decreto".

[5] "Artigo 2º – A gratificação por risco de contágio é devida ao Médico Legista e ao Auxiliar de Necropsia desde a entrada no exercício efetivo e exclusivo das funções específicas do cargo ou das atividades referidas no artigo anterior e apenas pelo período em que o servidor permanecer nele".

[6] Tal informação foi solicitada por este articulista, na condição de cidadão, ao Estado de Minas Gerais no Portal de Transparência e recebeu o protocolo de nº 1510.000224202248.

[7]  "O Chefe imediato do servidor que não comunicar ao órgão responsável pela elaboração das folhas de pagamento fato que determine o cancelamento ou a suspensão da concessão da gratificação fica obrigado pela reposição das parcelas pagas indevidamente" (§3º, do artigo 2º do Decreto 19287/78; sic).

[8] Na verdade, cerca de 99% deles, conforme referência 6.

[9] Referida Lei pode ser acessada em sua integralidade no endereço eletrônico https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa-nova-min.html?tipo=LEI&num=10745&ano=1992.

[10] Tal como a notícia do dia 18/8/22 dando conta da criação de férias-prêmio retroativa aos juízes do TJAL com possibilidade de pagamento de até R$ 1 milhão de reais, conforme https://www.band.uol.com.br/noticias/primeiro-jornal/ultimas/alagoas-cria-licenca-premio-de-ate-r-1-milhao-para-juizes-e-desembargadores-16529137.

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