Opinião

Decreto 11.129/22: teoria da imprevisão e repactuação de acordos de leniência

Autor

  • Vanessa Alvarez

    é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

19 de agosto de 2022, 6h10

Em 1997, os estados membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) — além de Brasil, Argentina, Bulgária, Chile e República Eslovaca — celebraram a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997.

A convenção foi ratificada em 15 de junho de 2000 pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 3.678/2000 [1]. Contudo, o acompanhamento periódico no país se iniciou apenas em 2003, quando se aferiu a adequação da legislação brasileira aos termos do documento.

No que concerne aos deveres relativos à Convenção da OCDE, a Câmara de Comércio Exterior do Brasil emitiu a Resolução Camex nº 81/2014 [2], na qual se determinou que o apoio oficial brasileiro à exportação está condicionado à assinatura da Declaração de Compromisso do Exportador.

Igualmente diversas foram as reverberações relativas à convenção celebrada em Paris, como a integração do mandado internacional de criminalização consistente no artigo 337-B do Código Penal, que tipifica crimes contra a administração pública estrangeira, abrangendo a corrupção de funcionário público estrangeiro e o tráfico de influência, ambos em transação comercial internacional.

Contudo, a consequência principal no âmbito civil foi a edição da Lei nº 12.846/2013 [3], denominada Lei Anticorrupção, que prevê a responsabilidade objetiva, nos âmbitos administrativo e civil, das pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional e estrangeira com a previsão inédita da responsabilidade objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

O artigo 9º da Lei Anticorrupção é expresso ao mencionar a Convenção sobre o Combate à Corrupção ao dispor que: "Competem à Controladoria-Geral da União — CGU a apuração, o processo e o julgamento dos atos ilícitos previstos nesta Lei, praticados contra a administração pública estrangeira, observado o disposto no Artigo 4 da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, promulgada pelo Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de 2000".

Por sua vez, o artigo 16 da lei dispõe que "A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo". Entretanto, é o artigo 7º da Lei que prescreve que as métricas e parâmetros de avaliação a serem adotadas na aplicação das sanções serão estabelecidos em regulamento do Poder Executivo federal.

Consequentemente, em 18 de março de 2015 foi editado o Decreto 8.420/2015 que regulamentou o processo administrativo de responsabilização (PAR) e dispôs em seu artigo 17 sobre as porcentagens relativas ao cálculo da multa aplicada em sede de acordo de leniência.

Contudo, em 12 de julho foi editado o Decreto nº 11.129/2022 que ab-rogou o Decreto nº 8.420/2022 e em respeito ao princípio Tempus Regit Actum o artigo 69 da novo regramento dispôs que: "As disposições deste Decreto se aplicam imediatamente aos processos em curso, resguardados os atos praticados antes de sua vigência" (regra de direito intertemporal).

O Decreto nº 11.129/2022 trouxe diversas inovações, dentre elas: a) A dispensa de designação de comissão, em caso de investigação preliminar (respeitando a vigência da Instrução Normativa CGU/CRG nº 8/2020); b) Prazo de 180 dias para a referida investigação; c) Agora, a portaria de instauração do PAR deverá trazer expressamente o nome da pessoa jurídica investigada com a possibilidade de apresentação de defesa em 30 dias; d) Igualmente, a pessoa jurídica será intimada do relatório final para apresentar alegações finais no prazo de 10 dias e cabe pedido de reconsideração da decisão final no prazo de dez dias da publicação da decisão; e) Além disso, foi prevista nova margem percentual (mais benéfica) relativa à atenuação da sanção no caso da existência de programa de integridade (compliance), que antes era de 1 a 4% e agora é de 1 a 5% e, f) E, a importante previsão da possibilidade de alteração ou substituição das obrigações pactuadas.

No que concerne ao programa de integridade, o critério minorante mais importante no cálculo da multa, o artigo 56 do novo decreto prevê um conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de: I – prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e II – fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional.

Contudo, é no artigo 57 em que se verificam os critérios de avaliação da existência e aplicabilidade do programa de integridade, exemplificando-se o comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, os procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer interação com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, como pagamento de tributos, sujeição a fiscalizações ou obtenção de autorizações, além do monitoramento contínuo do programa de integridade visando ao seu aperfeiçoamento na prevenção, na detecção e no combate à ocorrência dos atos lesivos previstos no artigo 5º da Lei nº 12.846, de 2013.

Contudo, o artigo 54 do Decreto nº 11.129/2022 pode ser considerada a inovação mais significativa, pois instrumentaliza as demais, vale dizer, é através de um pedido de alteração ou substituição de obrigações em que poderão ser concretizadas as alterações de fato ou de direito, supervenientes ao consenso celebrado colocando-se a questão: pacta sunt servanda x rebus sic stantibus.

Neste sentido, o artigo 54 do Decreto prescreve que de forma excepcional, as autoridades signatárias poderão deferir pedido de alteração ou de substituição de obrigações pactuadas no acordo de leniência, desde que observados os seguintes objetivos: I – manutenção dos resultados e requisitos originais que fundamentaram o acordo de leniência, nos termos do disposto no artigo 16 da Lei nº 12.846, de 2013; II – maior vantagem para a administração, de maneira que sejam alcançadas melhores consequências para o interesse público; III – imprevisão da circunstância que dá causa ao pedido de modificação ou à impossibilidade de cumprimento das condições originalmente pactuadas; IV – boa-fé da pessoa jurídica colaboradora em comunicar a impossibilidade do cumprimento de uma obrigação antes do vencimento do prazo para seu adimplemento; e V – higidez das garantias apresentadas no acordo.

O parágrafo único do mesmo artigo menciona que a análise do pedido considerará o grau de adimplência da pessoa jurídica com as demais condições pactuadas, inclusive as de adoção ou de aperfeiçoamento do programa de integridade, condicionando a aplicação do artigo 54 aos critérios objetivos do artigo 57 do decreto.

Ora, considerando-se o acordo de leniência como um negócio jurídico processual personalíssimo, bilateral e sinalagmático, (HC 127.483/PR, rel. min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe 4/2/2016), ou seja, nos mesmos termos em que um contrato (um instrumento de consenso em que se estipula obrigações para ambas as partes), verifica-se que a inovação do artigo 54, inciso III do Decreto nº 11.129/2022 recorda o que prescrevem os artigos 317 e 478 do Código Civil.

No âmbito do Código Civil, o artigo 317 dispõe a respeito da possibilidade de revisão judicial do contrato com base na cláusula rebus sic stantibus (teoria da imprevisão) e o artigo 478 prescreve sobre a resolução do contrato por onerosidade excessiva.

O artigo 317 do Código Civil prevê a teoria da imprevisão ao dispor que, quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. Aqui a imprevisão resulta na "correção" com a manutenção da obrigação.

Por sua vez, o artigo 478 do Código Civil dispõe sobre a resolução do contrato em caso de onerosidade excessiva e prescreve que: "Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato".

O artigo supramencionado trata da teoria da onerosidade excessiva, prevista no artigo 478, título V (Dos contratos em geral) e prescreve justamente a respeito do adimplemento de obrigações contratuais cuja impossibilidade de execução é superveniente e manifesta.

Impõe considerar que a previsão de um microssistema concernente à Lei nº 8.429/1992, Lei nº 12.846/2013, Lei nº 7.347/1985, Lei nº 8.078/1990, Código Civil e de Processo Civil, não deve ser utilizado apenas em prejuízo dos investigados (como a criação da legitimidade extra legem do Parquet para a celebração do acordo de leniência, considerada a inexistência da previsão expressa na Lei nº 12.846/2013 e no Decreto nº 11.129/2022), haja vista que o direito administrativo sancionador (com reverberações civis) possui consequências severas para os investigados, o que demandaria uma interpretação estrita da lei.

Neste sentido, é importante ressaltar que o artigo 57 do Decreto nº 11.129/2022 deve ser analisado contextualmente, considerando que o inciso III do artigo 54 prevê expressamente a imprevisão como causa ao pedido de modificação (artigo 317 do Código Civil) ou à impossibilidade de cumprimento das condições originalmente pactuadas (artigo 478 do Código Civil), assim, pode ser considerada causa para a alteração ou substituição das obrigações pactuadas no acordo de leniência.

Além disso, o artigo 479 do Código Civil dispõe que a resolução pode ser evitada, oferecendo-se ao devedor a possibilidade de modificar de forma equitativa as condições do contrato, pleiteando a sua redução ou alteração no modo de execução a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Neste sentido, é salutar invocar o Enunciado 176 da III Jornada de Direito Civil do CJF-STJ que dispõe: "Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual".

Ora, é importante lembrar que o cenário de desenvolvimento econômico sofreu graves consequências com a decretação da pandemia em março de 2020, o que ocasionou a revisão e a repactuação de diversos contratos, além da decretação de calamidade pública, vide o Decreto nº 64.879/2020, editado pelo Governo do Estado de São Paulo que reverberou na esfera pública e privada.

Portanto, defende-se que o inciso III do artigo 54 do Decreto nº 11.129/2022 dialoga diretamente com a teoria da imprevisão (artigo 317 do Código Civil) e com o instituto da onerosidade excessiva (artigo 478 do Código Civil), pois menciona expressamente a "imprevisão da circunstância visando a modificação ou a resolução do acordo", impondo-se, consequentemente, uma abertura dialógica do microssistema a fim de manter o equilíbrio entre as partes do acordo de leniência.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!