Opinião

Estatuto da advocacia e as buscas e apreensões em escritórios

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25 de agosto de 2022, 7h10

Desde o ano de 2008, importantes vozes da advocacia questionavam: "afinal, por que são necessárias regras disciplinando a busca e apreensão nos escritórios de advocacia?" [1]. Na época se comemorava a aprovação da lei que assenta a inviolabilidade do local de trabalho do advogado, com orientações específicas para eventual quebra da prerrogativa assegurada no Estatuto da Advocacia (Lei 11.767/2008), motivada por uma série de abusos cometidos contra advogados. Diante disso, apesar da existência de legislação sobre o tema e o transcurso de quase quinze anos da modificação legal, o assunto ainda permanece atual e digno de reflexão.

O artigo 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) estabelece uma série de direitos e prerrogativas aos advogados visando assegurar o livre exercício profissional. Dentre as previsões, merece destaque o artigo 7º, II, que determina a inviolabilidade do escritório ou local de trabalho do advogado, conferindo especial proteção aos instrumentos de trabalho, correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática que estejam vinculados com o exercício da advocacia.

Em complemento ao dispositivo mencionado, vislumbra-se o artigo 7º, § 6º, que autoriza a quebra da inviolabilidade descrita, desde que presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte do advogado, exigindo-se para tanto a observância dos seguintes requisitos para a validação da medida cautelar probatória: 1) decisão motivada; 2) mandado específico e pormenorizado; 3) presença do representante da OAB; 4) vedação de acesso às informações relativas aos clientes do advogado.

Trata-se de especial proteção que merece ser dada à advocacia em razão da relevância de sua atividade, nos moldes do que prevê o artigo 133 da Constituição que a classifica com indispensável à administração da justiça. Por isso, "a previsão coaduna-se com a necessária intervenção da nobre classe dos advogados na vida de um Estado democrático de direito" [2], sempre objetivando a proteção de toda a sociedade e não da figura individual do profissional.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, a Lei 14.365/2022 efetuou importantes modificações na Lei 8.906/94, definindo parâmetros ainda mais seguros aos casos de quebra da inviolabilidade do escritório ou local de trabalho (cf. artigo 7º, §§ 6º-A a 6º-H), com o escopo de se evitar indesejáveis abusos estatais. A partir daí, importante traçar breves considerações a respeito dos novos dispositivos e suas repercussões.

Inicialmente, o artigo 7º, §§6º-A e 6º-B reforça a excepcionalidade da medida, principalmente em razão da gravidade da cautelar probatória, que somente poderá ser adotada se outros meios não forem capazes de alcançar fontes ou elementos de prova necessários à persecução penal. Ou seja, a orientação jurisprudencial de excepcionalidade de medidas investigativas mais invasivas, como, por exemplo, interceptação telefônica, quebras de sigilo bancário e fiscal, agente infiltrado etc [3], foi incorporada ao Estatuto da Advocacia, cabendo ao magistrado motivar a efetiva necessidade da medida investigatória de caráter subsidiário.

Da mesma forma, com o objetivo de evitar qualquer discussão quanto às restrições ou não da Lei 12.850/13, não mais é possível autorizar buscas e apreensões somente com base em declarações incriminatórias de colaboradores. Isso porque a Lei do Crime Organizado proíbe medidas cautelares pessoais e reais com base apenas tais elementos (artigo 4º, § 16), exigindo-se, para tanto, que as declarações de delator venham acompanhadas de prova de corroboração que não sejam produzidas pelo próprio delator [4].

No entanto, com o advento do novo dispositivo, o debate se buscas e apreensões estariam compreendidas no conceito da citada lei se mostra superado, em consonância, inclusive, com posição já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça [5]. A vedação do legislador se dá evidentemente por se tratar de prova altamente duvidosa, exigindo-se, portanto, corroboração da versão do delator para que se operem efeitos contra terceiros.

Já o artigo 7º, § 6º-C oferece maiores detalhes quanto à presença do representante da OAB. A primeira alteração diz respeito à obrigação dos agentes públicos respeitarem o membro da OAB que acompanha o fiel cumprimento do mandado judicial. A previsão tem o objetivo de evitar qualquer espécie de restrição às exigências do representante, que zelará pelo cumprimento do objeto da investigação, além de impedir que documentos que estejam foram do escopo da ordem judicial sejam acessados e apreendidos pelas autoridades públicas. A previsão seria até mesmo desnecessária se houvesse, como regra, a compreensão, pelos agentes públicos, de que o membro da OAB exerce apenas o papel de defesa da advocacia e todas suas prerrogativas. De toda sorte, qualquer espécie de questionamento e objeção pelo representante não poderá ser classificada como óbice ou empecilho à investigação policial, mas, sim, exercício regular do direito disposto no Estatuto da Advocacia.

Esse dispositivo também tem a pretensão de evitar a prática de fishing expedition [6], ou seja, o emprego da medida probatória para alcançar de forma especulativa dados relativos ou não à investigação. Vale dizer, que "a procura por elementos para além do objeto do mandado é modalidade de 'fishing expedition', em que o agente da lei procura 'pescar' alguma coisa que possa prejudicar o alvo, sem que tenha prévia autorização para tanto" [7].

Daí por que a vedação à apreensão de objetos não relacionados à investigação, inclusive de outros processos do mesmo cliente ou de outros processos que não sejam pertinentes à persecução penal é importante barreira à atividade de persecução do Estado. Não por acaso, os tribunais superiores têm decidido que o desvio de finalidade do mandado de busca e apreensão acarreta a ilicitude da prova [8]. Pode-se questionar, até mesmo, a legitimidade de eventuais encontros fortuitos de prova [9], sobretudo diante da compreensão jurisprudencial de que tais elementos válidos de prova.

Na sequência, o artigo 7º, §§6º-D, 6º-E  fixa obrigações relevantes quanto à cadeia de custódia [10], visto que se não for possível por questões de natureza ou volume separar a documentação, mídia ou objetos relacionados à investigação no momento da execução do mandado judicial, a análise do documento e equipamentos será feita posteriormente. A modificação é natural diante da procura de provas digitais [11], as quais oferecem dificuldades maiores quanto à localização, extração, armazenamento etc. ao Estado

Por sua vez, caso haja o descumprimento do comando acima, caberá ao representante da OAB elaborar relatório do ocorrido para fins de comunicação à autoridade judiciária e notícia de crime pelo órgão de classe, em especial diante do atual crime de violação às prerrogativas profissionais, disposto no artigo 7º-B do Estatuto da Advocacia e recentemente inserido por meio da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019). Aqui há dois objetivos, o primeiro de ilicitude da prova por conta de extrapolamento dos limites da ordem judicial e, segundo, de incriminação dos servidores públicos pela ofensa às proteções da advocacia.

Na mesma linha, o artigo 7º, §6º-F assegura ao membro da OAB e ao advogado investigado o direito de acompanhamento do exame dos documentos e dispositivos apreendidos, a fim de permitir que delimitem com os agentes responsáveis quais documentos, mídia e objetos dizem respeito à persecução penal, vedando-se, como já destacado, acesso às informações alheias ao objeto de apuração, no intuito de preservação do sigilo profissional.

Além disso, a mudança do artigo 7º, §§ 6º-G e 6º-H é importante para dirimir qualquer dúvida quanto à necessidade de comunicação da seccional da OAB quanto à data, horário e local, respeitando-se o prazo de 24 horas, a fim de se possibilitar o escorreito acompanhamento da análise dos documentos e equipamentos apreendidos pelo representante da OAB. Em caso de urgência motivada pelo juiz, o exame do material poderá ocorrer em prazo menor, respeitando-se a presença do membro da OAB e do investigado.

É importante frisar que o Provimento 201/2020, criado como norma complementar pelo órgão de classe, apresenta uma série de regras a serem observadas pelos representantes da OAB quando da execução da ordem judicial, tratando-se de importante instrumento de observação e fiscalização das diligências. Mesmo assim, a novidade legislativa surge em boa hora porque oferece mais detalhes quanto à forma de quebra da inviolabilidade de escritórios de advocacia, inclusive com a possibilidade de consequências legais  ilicitude da prova e/ou responsabilização dos agentes públicos  em caso de desrespeito pelas autoridades públicas.

Como bem ressaltado pelo ministro Gilmar Mendes, ao tratar das prerrogativas profissionais dos advogados, "não se trata de indevido privilégio profissional, mas sim de garantia à própria administração da Justiça, de defesa da ordem jurídica e das liberdades fundamentais" [12]. Não se desconhece o legítimo interesse estatal em efetuar suas investigações com todos os recursos disponíveis, no entanto, "o poder investigatório estatal é limitado pelo cânone da legalidade, sob pena de transmudar-se em ignominioso arbítrio e, em última análise, na negação do Estado democrático de Direito" [13].

Portanto, o detalhamento da quebra da inviolabilidade dos escritórios ou locais de trabalho pela Lei 14.365/2022 deve ser comemorado pela advocacia, em especial para que os velhos tempos de buscas indevidas em escritórios de advocacia não voltem a se repetir.


[1] TORON, Alberto Zacharias; OLIVEIRA, Antônio Cláudio Mariz de; MACHADO, Rubens Approbato. Busca e apreensão em escritórios de advocacia. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 2008. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=85224. Acesso em: 16 ago. 2022.

[2] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 38 ed. Barueri: Atlas, 2022, p. 732.

[3] Para uma análise dos diversos meios de obtenção de prova elencados na Lei 12.850/2013, abordando o grau de afetação que seu emprego acarreta às liberdades públicas, além de estabelecer uma ordem de precedência entre eles cf. BADARÓ, Gustavo. Hipóteses que autorizam o emprego de meios excepcionais de obtenção de prova. In: AMBOS, Kai; ROMERO, Eneas (coord). Crime organizado  Análise da Lei 12.850/2013. São Paulo: Marcial Pons; CEDPAL, 2017. p. 13-49.

[4] BORRI, Luiz Antonio. Colaboração premiada e prova de corroboração. Belo Horizonte/São Paulo: D´Plácido, 2021.

[5] (…) 8. No que diz respeito à alegada carência de adequada fundamentação do decreto de busca e apreensão, em virtude de se embasar apenas em depoimentos contraditórios de colaboradores, registro, de início, que, de fato, o artigo 4º, § 16, da Lei nº 12.850/2013, estabelece que "nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador: I – medidas cautelares reais ou pessoais; II – recebimento de denúncia ou queixa-crime; III – sentença condenatória". 9. Na hipótese dos autos, verifica-se, sem necessidade de revolvimento de fatos e provas, mas pela simples leitura do decreto de busca e apreensão, que, realmente, a decisão que decretou a busca e apreensão em desfavor do paciente se encontra deficientemente fundamentada, porquanto embasada apenas em declarações de colaboradores, o que vai de encontro ao disposto no artigo 4º, §16, da Lei n. 12.850/2013.  Precedentes do STF e do STJ. 10. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para anular o decreto de busca e apreensão, bem como as provas dele derivadas, em virtude de sua deficiente fundamentação, sem prejuízo de que seja novamente decretada a medida, em observância ao regramento legal. (HC n. 624.608/CE, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 2/2/2021, DJe de 4/2/2021.)

[6] Segundo a doutrina trata-se da "apropriação de meios legais para, sem objetivo traçado, 'pescar' qualquer espécie de evidência, tendo ou não relação com o caso concreto. Trata-se de uma investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, e, de forma ampla e genérica, ‘lança’ suas redes com a esperança de 'pescar' qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação ou para tentar subsidiar uma ação já iniciada" (SILVA, Viviani Ghizoni da Silva; SILVA, Philipe Benoni Melo e; ROSA, Alexandre Morais da. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e apreensão: um dilema oculto do processo penal. Florianópolis: Emais, 2019. p. 41)

[7] LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. No cumprimento de mandado de prisão, policiais podem vasculhar tudo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-01/limite-penal-cumprimento-mandado-prisao-policiais-podem-vasculhar-tudo. Acesso em: 17 ago. 2022.

[8] HC n. 727.755/RJ, relator ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 15/8/2022; HC n. 663.055/MT, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 22/3/2022, DJe de 31/3/2022.

[9] ZACLIS, Daniel; PALAZZI, Leonardo; BORRI, Luiz Antonio; AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Conhecimentos fortuitos e apreensão de documentos. Revista dos Tribunais, v. 1004, São Paulo: RT, jun/2019, p. 187-216.

[10] A cadeia de custódia da prova foi introduzida por meio da Lei Anticrime (Lei 13.964/2019), com o objetivo de conferir maior confiabilidade à prova e, com isso, preservação de garantias individuais. Diante disso, foram introduzidas diversas obrigações quanto à cronologia probatória que vai desde a sua descoberta até o seu descarte, conforme arts. 158-A a 158-F, do Código de Processo Penal Cf. BITTAR, Walter Barbosa; SOARES, Rafael Junior. Capítulo 4 – Código de Processo Penal – Decreto-Lei 3.689/41. In: Comentários ao pacote anticrime: Lei 13.964/2019 (Org. Walter Barbosa Bittar). São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, p. 72-80.

[11] PRADO, Geraldo. Breves notas sobre o fundamento constitucional da cadeia de custódia da prova digital. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/artigo-geraldo-prado.pdf. Acesso em: 17 ago. 2022.

[12] Decisão monocrática na Rcl. 43479/RJ. Min. Gilmar Mendes. Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/gilmar-mendes-suspende-processo-marcelo.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.

[13] MALAN, Diogo. Da busca e apreensão em escritório advocatício, 2005. Da busca e apreensão em escritório advocatício. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=141937. Acesso em: 16 ago. 2022.

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