Opinião

O STF, a coisa julgada e a ação rescisória em matéria tributária

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25 de agosto de 2022, 17h09

A segurança jurídica é valor fundamental do Estado democrático de Direito, e visa garantir à sociedade previsibilidade e coerência na aplicação da legislação ao caso concreto, além de evitar o desfazimento injustificado de ato jurídico perfeito. Não obstante, a segurança jurídica está sob iminente risco em virtude do julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários 949.297 e 955.227 (Temas 881 e 885 de Repercussão Geral, respectivamente), suspenso no último dia 12/5/22 em razão de pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

A questão controvertida em tais recursos gira em torno da flexibilização da coisa julgada em matéria tributária. Mais especificamente, diz respeito à possibilidade de se proceder à cobrança automática e imediata de tributo outrora declarado inconstitucional em decisão já transitada em julgado, em razão de superveniente declaração de constitucionalidade em controle concentrado ou, ainda, em razão de alteração de entendimento do Supremo Tribunal Federal em controle difuso, inclusive sob a sistemática da repercussão geral, quando a sentença, com efeitos declaratórios, for baseada na constitucionalidade ou inconstitucionalidade de um tributo oriundo de relação jurídico-tributária de trato sucessivo.

Em ambos os temas, embora submetidos a relatorias diferentes, vem prevalecendo o entendimento de que a declaração de constitucionalidade de tributo outrora tido como inconstitucional em controle difuso e/ou concentrado corresponde à criação de nova norma jurídica e, por conseguinte, à instituição de novo tributo, não havendo violação à coisa julgada. Sendo uma nova norma jurídica, a cobrança não pode retroagir para período em que o tributo não existia, entendendo ambos os relatores que os efeitos dos julgamentos só podem valer a partir da publicação da ata de julgamento, observando-se a noventena para os casos de contribuições sociais, e no caso dos demais tributos tanto a noventena quanto a anterioridade anual.

Para além da flexibilização da coisa julgada, pende discussão sobre a aplicação automática do novo entendimento do STF aos casos transitados em julgado, ou se haveria necessidade de propositura de ações rescisórias.

Os Temas 881 e 885 contam, respectivamente, com três e dois votos acompanhando o entendimento de seus respectivos relatores na tese pró-fisco. Inclusive sobre a desnecessidade de ação rescisória, aplicando-se automaticamente a novel interpretação, o que  a nosso ver  é passível de diversas críticas.

Tanto é assim que o ministro Gilmar Mendes abriu divergência sobre esse ponto específico, defendendo que na hipótese de o novo entendimento do STF ser anterior ao trânsito em julgado da sentença, a inexigibilidade poderá ser alegada por meio de petição simples em sede de cumprimento de sentença. No entanto, caso o novo entendimento da Suprema Corte seja proferido após o trânsito em julgado, imprescindível o ajuizamento de ação rescisória em respeito à legislação processual vigente [1] e à tese fixada no Tema 733 da Repercussão Geral [2].

Nem se alegue, tal qual feito por meio do Parecer PGFN/CRJ/Nº 492/2011 que "a cessação da eficácia vinculante da decisão tributária transitada em julgado opera-se automaticamente", na medida em que inexiste dispositivo legal no ordenamento jurídico nesse sentido.

Pelo contrário, a preocupação com a proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada é tamanha que o Código de Processo Civil determina expressamente prazo prescricional para o ajuizamento de ação rescisória, além de a própria Constituição Federal dispor em cláusula pétrea que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada" [3].

Além disso, é incontestável que o contribuinte é a ponta mais fraca da relação jurídico-tributária e que as fazendas públicas têm privilégios inerentes às suas atividades-fim. Portanto, se o contribuinte precisa recorrer ao Judiciário para ter seus direitos assegurados com base na legislação vigente, por que às fazendas públicas o procedimento seria outro, afastando-se a necessidade de ação rescisória revisional expressamente prevista na legislação?

Autorizar o restabelecimento automático e imediato de cobrança de tributo outrora tido como inconstitucional também pode abrir margem para vieses interpretativos. Existe o risco de os fiscos interpretarem os noveis julgados do Supremo de forma "mais" favorável aos seus interesses, sem necessariamente se aterem ao espírito dos referidos julgados e aos seus respectivos limites, podendo, na pior das hipóteses, estender seus efeitos para casos que não foram acobertados pelo STF ou até aplicações por analogia. A ação rescisória é relevante para justamente calibrar essas interpretações, assegurando que deflagrem precisamente o posicionamento da Corte Suprema, sem excessos ou distorções.

Em caso de eventuais excessos interpretativos que não são calibrados pelo contraditório e crivo judicial inerentes à rescisória, há o risco de, como consequência lógica, aumentar-se o número de processos administrativos que buscarão a desconstituição de lançamentos tributários alinhados a tais interpretações, o que pode, em última medida, desaguar em novo contencioso judicial.

Assim, diante da iminente insegurança jurídica que poderá resultar do deslinde da controvérsia ora debatida, espera-se que o plenário do STF, na retomada do julgamento dos Recursos Extraordinários 949.297 e 955.227, resguarde a aplicação dos princípios basilares do Estado democrático de Direito e de legislação processual expressa sobre a ação rescisória.


[1] Artigo 535, § 8º do CPC/15.

[2] A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do artigo 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, artigo 495).

[3] Artigo 5, inciso XXXVI.

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