Interesse Público

Devido processo sancionador e os ônus probatórios do controlador público

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

25 de agosto de 2022, 9h26

"A burocracia como universo feliz e culpado"

Pierre Legendre, sob o ângulo da psicanálise e da historiografia, observa que "a primeira função de uma burocracia é produzir lugares, fazer entrar, proteger, mediante submissão"[1]. Não por acaso, segundo a tradição, ser funcionário é ocupar um lugar, exercer um papel "na aprendizagem e na repetição do conflito"[2].  A Administração — explica — é a mãe-nutriz que alimenta e deve ser protegida, assim como a Mãe Igreja oferecia apoio e exigia submissão dos seus sacerdotes. Os controladores velam para que este Estado-nutriz conserve a representação de eficiência e impessoalidade. Para Legendre, "a grande obra do Poder consiste em fazer-se amar"[3] enquanto encobre a simples imposição de adestramento.

Spacca
O processo é um dos meios para assegurar a empatia do poder, pois teatraliza os interesses em disputa e oferece ao acusado ou interessado a esperança da vitória. Porém, é correto dizer que hoje o processo exige mais do controlador público do que no passado.  O controle administrativo não é mais admitido como simples exercício encantatório ou cerimonial do poder e sim como relação jurídica.

O controle público da atividade administrativa é relação jurídica que exige boa-fé, cooperação, segurança jurídica e motivação de ambos os polos do vínculo processual. Também os órgãos de controle possuem ônus argumentativos, deveres de motivação, e não devem substituir prognoses e decisões públicas primárias sem critério preciso de fundamentação. Podem ser questionadas, por violação à segurança jurídica, ordens ou instruções de controle excessivamente indeterminadas, imprecisas ou sem fundamentação explícita e consistente.[4] Imputações de responsabilidade e sanções exigem suporte fático e análise concreta da reprovabilidade, vedada a imputação automática de sanções e declarações de dano presumido.

Emergência da responsabilidade contextual: contribuição da Lindb
O direito administrativo não é lógica e sim experiência, sendo aplicação de direitos e deveres dentro de marcos contextuais reais. Esse aspecto foi objeto de atenção do legislador no artigo 28 da Lindb, que admitiu a imputação de responsabilidade pessoal do agente público apenas em caso de dolo ou erro grosseiro, conceito que exige um grau de reprovabilidade elevada e refere o incumprimento grave de deveres de diligência e de deveres de cuidado exigíveis no plano concreto da experiência de gestão. Gradua-se assim a responsabilidade pessoal de agentes públicos comuns de modo realista e em favor da segurança jurídica, à semelhança do previsto hoje para diversos agentes públicos: magistrados (artigo 143, I, do CPC/2015 e artigo 49 da LC 35/1979), membros do Ministério Público (artigo 181 do CPC/2015), advogados públicos (artigo 184 do CPC/2015) e defensores públicos (artigo 187 do CPC/2015).

O artigo 28 da Lindb (introduzido no Decreto-Lei 4.657/1942 pela Lei 13.655/2018) deve ser harmonizado com o artigo 22 da mesma lei. Essa segunda norma dispõe que, na análise da regularidade da conduta do gestor ou na avaliação da validade do ato, contrato, ajuste, processo ou norma estabelecida, sejam "consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente".

O artigo 22 da Lindb impõe ao controlador o dever de apuração de contextos empíricos de ação e recusa validade a presunções de gabinete, enunciados abstratos de autoridade, especialmente em matéria sancionatória ou que importem a imputação de responsabilidades.    

Para Eduardo Jordão, sem favor o maior estudioso de análise institucional comparativa sobre controle público no país, o artigo 22 da Lindb reage à "idealização dos fatos" no controle público (exige o primado da realidade) e, por outro lado, impõe que, "num contexto de indeterminação jurídica real, o controlador se limite a avaliar a razoabilidade da escolha interpretativa realizada pelo administrador público".[5]  Em outro dizer: o autor extrai do artigo 22 que o controlador "deverá prestar deferência a esta escolha interpretativa razoável da administração, mesmo que ela não corresponda à escolha interpretativa específica que ele próprio (controlador) faria, se coubesse a ele a interpretação em primeira mão". Nesse sentido, o artigo 22 completa o artigo 28 da Lindb, pois em casos de "indeterminação jurídica", incerteza ou demandas contraditórias, "para além do afastamento da responsabilidade pessoal do gestor, seja também admitida a validade jurídica dessa interpretação, com sua conseqüente manutenção"[6]

Em sintonia, Carlos Ari Sundfeld sustenta que "a nova Lindb pretende reverter, em caráter geral, o uso da responsabilização objetiva ou quase objetiva de agentes públicos por simples falhas na aplicação das normas administrativas". Para Sundfeld, "a finalidade dessa reversão é superar a ideia, forte entre controladores públicos, de que a incorreta aplicação dessas normas, além de ser corrigida por invalidação do ato resultante, deve levar à responsabilização do gestor, por suposto ilícito funcional" [7]

Se a responsabilidade objetiva é recusada, a régua da responsabilidade subjetiva do gestor deve ser a análise de sua reprovabilidade concreta a partir da avaliação dos atos reais de gestão, ou de sua omissão, reconstruída por documentos e elementos de instrução, presente o contraditório. Não cabe a invocação de standards de controle abstratos, figurinos prontos de gestor-médio ou gestor-ideal, desconsiderando-se que muitas normas administrativas possuem textura aberta, admitem pluralidade de escolhas válidas, e eventualmente escolhas concretas podem ser feitas em contexto de excepcionalidade e, no limite, em "estado de necessidade administrativa, substancial ou procedimental"[8]

Fernando Vernalha sublinha, sobre os standards de controle, que "o problema é que os standards que frequentam a jurisprudência dos controladores acabam prestigiando uma interpretação não apenas formalista e burocrática do direito, mas excessivamente restritiva da liberdade do administrador público (funcionando como um verdadeiro legislador)"[9] E exemplifica, em nota de rodapé no mesmo tópico, com  fragmento do voto condutor do Acórdão 834/2014-TCU-Plenário, que, no campo da contratação pública, decidiu: "a subcontratação deve ser tratada como exceção". "Só é admitida a subcontratação parcial e, ainda assim, desde que demonstrada a inviabilidade técnico-econômica da execução integral do objeto por parte da contratada, e que haja autorização formal do contratante."

Como bem anota o autor, a análise da conveniência da subcontratação é tarefa reservada ao gestor, não cabendo ao controlador impor exigências inexistentes na legislação, entre as quais a demonstração de "inviabilidade técnico-econômica da execução integral do objeto por parte da contratada".

A comparação da conduta do gestor com um modelo ideal concebido pelo controlador é expediente que apresenta diversos problemas. A rigor, constitui uma fuga da apuração da reprovabilidade em contexto real, pois adota uma régua formal, intolerante com erros que as circunstâncias podem explicar e justificar, e tende a concentrar atenção no resultado indesejado da ação e não em suas causas e circunstâncias. Por outro lado, é métrica incerta, pois pode ser aplicada de modo flexível e muitas vezes inconsistente perante o mesmo Tribunal, violando diretamente a previsibilidade do processo de controle.

Juliana Palma, em inventário paciente em 133 acórdãos do TCU, apurou que para o Tribunal, "o administrador médio é, antes de tudo, um sujeito leal, cauteloso e diligente (Ac. 1781/2017; Ac. 243/2010; Ac. 3288/2011)". "Sua conduta é sempre razoável e irrepreensível, orientada por um senso comum que extrai das normas seu verdadeiro sentido teleológico (Ac. 3493/2010; Ac. 117/2010). Quanto ao grau de conhecimento técnico exigido, o TCU titubeia. Por um lado, precisa ser sabedor de práticas habituais e consolidadas, dominando com mestria os instrumentos jurídicos (Ac. 2151/2013; Ac. 1659/2017). Por outro, requer do administrador médio o básico fundamental, não lhe exigindo exame de detalhes de minutas de ajustes ou acordos administrativos que lhe sejam submetidos à aprovação, por exemplo (Ac. 4424/2018; Ac. 3241/2013; Ac. 3170/2013; 740/2013). Sua atuação é preventiva: ele devolve os valores acrescidos da remuneração por aplicação financeira aos cofres federais com prestação de contas, e não se apressa para aplicar esses recursos (Ac. 8658/2011; Ac. 3170/2013). Não deixa de verificar a regularidade dos pagamentos sob sua responsabilidade (Ac. 4636/2012), não descumpre determinação do TCU e não se envolve pessoalmente em irregularidades administrativas (Ac. 2139/2010)."[10]

Esse "padrão fluido" do "administrador-médio" denota ninguém, e é vazio, por conter puras idealizações, mas é também um standard de poder: uma forma de imediatamente advertir a todos os gestores públicos federais para observarem como sacerdotes o entendimento do TCU sobre temas vários (contratos, licitações, concursos, gestão). É claramente violador dos artigo 22 e 28 da Lindb , ademais de provocar enorme insegurança jurídica. Não por acaso, Leonardo Coelho Ribeiro, com alguma ironia, destacou que com o conceito de administrador médio, o TCU parece supor a existência "de um ‘administrador médium’, dotado de presciência capaz de antecipar as visões futuras do controlador"[11]

A distribuição do ônus probatório no controle público de contas
Se as presunções perdem vigência e cedem à análise do contexto fático no controle público, a questão desloca-se para a distribuição do ônus da prova. Em princípio não há dificuldade, pois cabe o ônus da prova ao interessado na afirmação do cumprimento da obrigação ou na comprovação da veracidade da declaração a seu cargo.

Ocorre que o tempo pode ser fator decisivo para corroer elementos de prova. Ocupantes de cargos políticos sucedem a outros e documentos desaparecem, testemunhas falecem, bens são extraviados. Em se tratando de processos de prestação de contas, não é infrequente que anos tenham decorrido e o investigado sequer possua mais acesso aos dados necessários para a instrução do processo.

Segundo o Tribunal de Contas da União, consoante o Acórdão 1522/2016-Plenário, a distribuição do ônus probatório nos processos de fiscalização do TCU segue a disciplina do artigo 373 da Lei 13.105/2015 (CPC), competindo:

a) à unidade técnica do Tribunal demonstrar os fatos apurados nas fiscalizações, mediante a juntada das evidências que os suportam;
b) aos órgãos fiscalizados e aos terceiros interessados provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Estado de obter ressarcimento e/ou punir a prática de ato ilegal, ilegítimo e antieconômico que lhes fora atribuída pelo corpo instrutivo do Tribunal.

Em formulação semelhante, Fabrício Motta e Ismar Viana, sublinhando diferenças entre o processo de prestação de contas e  processos sancionatórios, afirmam que "o ônus da prova no âmbito dos processos de contas — que implicam no dever jurídico de comprovar a correta aplicação dos recursos públicos — é do gestor; ao contrário, nos processos de fiscalização (como auditorias e inspeções) o ônus é do próprio órgão de controle externo, como vem reconhecendo o TCU".[12]

Essa divisão estática do ônus probatório parece correta, se na fundamentação correspondente não há simples registro fatual formal, mas igualmente análise do contexto decisório, com vistas a apurar a reprovabilidade da conduta. Se o que de fato se apura não é apenas a transgressão formal de normas, mas o dolo ou o erro grosseiro do gestor, compõe o núcleo do ônus probatório a demonstração da reprovabilidade do ilícito. A sanção não é um efeito necessário do dano ou do incumprimento da obrigação administrativa – eventualmente o dano pode ter sido inevitável, escusável ou decorrente de ação de terceiros.[13]

A prova dessas excludentes de responsabilidade, entretanto, pode ser diabólica com o passar do tempo para o gestor ou ex-gestor público. Para situações assim, que praticamente inviabilizam o contraditório e o devido processo, pode-se cogitar a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova, prevista no artigo 373, §º1, do CPC/2015, tendo em conta a ausência de norma especial sobre o tema no âmbito administrativo e, por isso, a aplicabilidade do artigo 15 do CPC/2015, segundo o qual "na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhe serão aplicadas supletiva e subsidiariamente".

O preceito do artigo 373, §º1, CPC/15 autoriza que o julgador distribua motivadamente o ônus da prova de modo diverso do ordinário, especialmente em quatro hipóteses: (i) nos casos previstos em lei; (ii) diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade da parte cumprir o encargo; (iii) diante de peculiaridades da causa relacionadas à excessiva dificuldade de cumprir o encargo; (iv) diante de peculiaridades da causa relacionadas à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário.

Se os princípios da oficialidade e da verdade material no processo administrativo forem levados à sério, cabe a redistribuição dinâmica do ônus probatório também no controle de contas, por iniciativa do próprio órgão julgador, quando a situação evidencie a excessiva dificuldade de reunião dos elementos probatórios necessários para a defesa do agente ou administrado ou a conveniência para o exercício do controle da oitiva direta de testemunhas, a realização de audiências públicas ou a requisição da documentação pertinente aos atuais exercentes da função. É bom recordar que a revelia não existe em sentido próprio no processo administrativo (artigo 27 da Lei 9784/99), pois a omissão da defesa não importa o reconhecimento da verdade dos fatos, nem a renúncia a direito pelo administrado, razão pela qual não exonera a Administração do encargo de examinar os fatos, eventualmente sendo prevista a intervenção de defensor dativo (v.g, artigo 164 da Lei 8.112/90).

O processo de controle administrativo, embora possua uma dimensão sancionatória, é antes de tudo processo administrativo (não processo penal). Não é a sua função principal a expiação ou a retribuição de um dano, mas a promoção de correções, ajustes e incentivos que atendam e aperfeiçoem a gestão pública.

Por essa razão, Alice Voronoff, em síntese feliz, sublinha que o direito administrativo sancionador é instrumental e possui olhar prospectivo e conformativo, responsivo às condições institucionais de seu entorno.[14] Na prestação de contas não é diferente, pois como já ensinava Padre Antônio Vieira, citado por Pedro Dionísio: "Os erros e as ignorância, é certo que são muitos mais que as ciências, porque para saber e acertar, não há mais do que um caminho, e para errar, infinitos".

 


[1] LEGENDRE, Pierre. O amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Trad. Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Rio: Forense, 1983, p. 196.

[2] Idem, ibidem, p. 195.

[3] Idem, ibidem, p.

[4] MODESTO, Paulo. O erro grosseiro administrativo em tempos de incerteza. ConJur – Interesse Público, 30-07-2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-30/interesse-publico-erro-grosseiro-administrativo-tempos-incerteza e em  https://www.academia.edu/43749110

[5] JORDÃO, Eduardo. Estudos Antirromânticos sobre Controle da Administração Pública. São Paulo: Editora JusPodium, 2022, p. 55.

[6] Idem, ibidem, p. 55 e rodapé.

[7] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo: o novo olhar da LINDB. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 129-130.

[8] OTERO, Paulo. Direito do procedimento administrativo. Coimbra: Almedina, 2016, Vol. I. Pp. 127-134.

[9] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O Direito Administrativo como Controle. In: WALD, Arnoldo; JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar A. Guimarães. (org). O Direito Administrativo na Atualidade: estudos em homenagem ao centenário de Hely Lopes Meirelles (1917-2017). São Paulo: Malheiros, 2017, p. 396.

[10] PALMA, Juliana Bonacorsi de. Quem é o ‘administrador médio’ do TCU? Disponível em :https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/quem-e-o-administrador-medio-do-tcu-22082018  Acesso: 24/08/2022.

[11] RIBEIRO, Leonardo Coelho. “Vetos à LINDB, o TCU e o erro grosseiro dão boas-vindas ao ‘administrador médium’”. Conjur, 8.8.2018. https://www.conjur.com.br/2018-ago-08/leonardo-coelho-vetos-lindb-tcu-erro-grosseiro

[12] MOTTA, Fabrício e VIANA, Ismar. O dever de prestar contas e a distribuição do ônus da prova no controle externo. Conjur, Interesse Público, 29.102020: https://www.conjur.com.br/2020-out-29/interesse-publico-dever-prestar-contas-onus-prova-controle-externo

[13] Sobre o tema, ver MODESTO, Paulo. O controle público e o fetiche da culpa. Revista Colunistas de Direito do Estado, n. 114, 21/03/2016. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/paulo-modesto/o-controle-publico-e-o-fetiche-da-culpa

[14] VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil. Belo Horizonte: Forum, 2018, p. 315 e segs.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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