Opinião

Ainda sobre a irrevogabilidade da resposta afirmativa ao quesito absolutório genérico

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23 de agosto de 2022, 6h34

Aguarda-se o julgamento, pelo STF, do ARE 1.225.185  com repercussão geral reconhecida , em que se debate e se decidirá acerca da recorribilidade da absolvição decorrente de resposta afirmativa ao quesito obrigatório e genérico pelo Tribunal do Júri ao fundamento de manifesta contrariedade à prova dos autos (CPP, artigo 593, III, "d"). Já tendo escrito sobre o tema noutras oportunidades, entendemos conveniente ainda mais um esforço em defesa de nossa tese.

Nesse sentido, cabe-nos inicialmente destacar que a verdade do Direito, não se tratando de saber empírico, está condicionada ao teste da coerência, à submissão das interpretações que se lhe aplicam ao princípio lógico da não-contradição. A tese ora defendida, segundo entendemos, serve primeiro a esse princípio e pode ser resumida na seguinte afirmação: é irrecorrível a decisão por resposta positiva ao quesito absolutório genérico e obrigatório por manifesta contrariedade à prova dos autos uma vez que a esta — à prova dos autos  a lei não vincula a decisão soberana dos jurados, consoante se infere do artigo 483, III, do CPP.

Posto isso, cumpre-nos relembrar que, no Tribunal do Júri, tanto julgadores, quanto julgados são soberanos, porque integrantes do mesmo povo de quem emana todo o poder, como prevê a cláusula democrática inscrita no parágrafo único do artigo 1º da CF.

Justamente por isso, de nossa ordem constitucional emerge o Tribunal do Júri como garantia, a plenitude de defesa a) não por acaso antecedendo a própria soberania dos veredictos b) e encabeçando as alíneas do inciso XXXVIII do artigo 5º da Carta Maior.

Essa precedência topológica é repleta de significação e reflete a assimetria estruturante de nosso sistema penal e processual penal, que tem por fundamento a presunção de inocência e os preceitos máximos do favor rei, favor libertatis. Tem-se, aí, a base de um Estado liberal de Direito: a proteção do sujeito e de suas liberdades face ao poder de punir estatal.

Dessa assimetria estruturante resulta que, frente à plenitude de defesa, não se supõe uma plenitude de acusação, assim como não se cogita uma ampla acusação em oposição à ampla defesa assegurada aos acusados em geral na dialética do contraditório previsto no artigo 5º, LV, da CF. Aliás, é justamente em razão dessa assimetria a qual pende em favor da inocência e da liberdade que, em nome da plena ou da ampla defesa, se reconhece, por exemplo, a validade defensiva de provas tidas como ilícitas, igual garantia não existindo para a acusação.

Ou seja, logicamente insustentável qualquer argumento no sentido de uma violação à paridade de armas quando, em atenção à abertura do quesito absolutório genérico e obrigatório previsto na lei, à plenitude de defesa e soberania dos veredictos, se reconhece a irrecorribilidade de decisão  absolutória  ao fundamento de manifesta contrariedade à prova dos autos. Afinal, e neste momento voltamos à lógica, esta decisão não está subordinada ao que demonstram as provas dos autos, mas tão somente à consciência e aos ditames de justiça que regem jurados soberanos em seus veredictos (CPP, artigo 472). Tanto que a eles somente se pergunta "se o acusado deve ser absolvido".

E a escolha legislativa é tão clara que esse quesito aberto e obrigatório emerge soberano e absolutamente distinto em meio a todos os outros expressamente vinculados a provas, decisões e debates realizados, como se infere dos incisos I, II, IV e V do artigo 483 do CPP.

Note-se que essa abertura proposital do quesito absolutório posto aos jurados conecta-se diretamente com o princípio da plenitude de defesa e a soberania dos veredictos, de modo a afastar a possibilidade de revisão da decisão de absolvição que nele se apoie por manifesta contrariedade à prova dos autos simplesmente porque a esta não está vinculado.

Se ao povo, fundamento máximo da democracia, é dado escolher quem em seu nome exercerá os poderes legislativo e executivo, maiores razões há para que se reconheça a irrevogabilidade de sua vontade soberana quando da escolha direta daqueles seus pares que entende devam ser inocentados frente ao poder de punir estatal. Aliás, se até mesmo diante de uma segunda condenação manifestamente contrária à prova dos autos a soberania dos veredictos se reveste de irrevogabilidade (CPP, artigo 593, §3º), a literalidade do quesito absolutório e a estrutura assimétrica de prevalência da inocência e da liberdade em que se insere bem demonstram que a resposta positiva que lhe seja dada não comporta sindicância, podendo a absolvição, no caso, decorrer das mais variadas razões, inclusive a clemência.

Em sua soberania, ao decidirem pela absolvição de seus pares submetidos apenas à sua consciência e aos ditames de justiça que a regem, os jurados, membros do povo de que emana todo o poder, não admitem tutores, são efetivamente soberanos. Assim preveem a Constituição e a lei.

No contexto lógico-normativo exposto, portanto, só podemos concluir, data maxima venia, que a prevalência do entendimento contrário ao ora defendido equivaleria a verdadeira usurpação do poder democrático a seus titulares primeiros.

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