Opinião

Importância da convivência da LGPD com demais normas legais

Autor

  • Martha Leal

    é advogada especialista em proteção de dados pós-graduada em Direito Digital pela Fundação Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul mestre em Direito e Negócios Internacionais pela Universidad Internacional Iberoamericana Europea del Atlântico e pela Universidad Unini México pós-graduanda em Direito Digital pela Universidade de Brasília—IDP data protection officer ECPB pela Maastricht University certificada como data protection officer pela Exin e pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e presidente da Comissão de Comunicação Institucional do Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD).

23 de agosto de 2022, 19h19

No último dia 14 de agosto, comemorou-se o aniversário de quatro anos de publicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) [1]  Lei 13.709/2018, e que está em vigor há quase dois anos. E, sem dúvida, é possível constatarmos consideráveis avanços em relação à Proteção de Dados ao longo desse período. A sociedade brasileira, até então, raramente discutia e priorizava questões afetas à proteção de dados, ficando a resolução da controvérsia relacionada ao tema restrita ao ambiente judicial.

Nesse ínterim, entre a vigência da LGPD e o presente momento, tivemos significativos progressos. A nomeação da Diretoria da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) [2], a publicação do seu Regimento Interno, o início das sanções administrativas e a nomeação da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), a Resolução do Processo de Fiscalização e o Processo Administrativo Sancionador, a Resolução para Aplicação da LGPD para Agentes de Pequeno Porte e o Guia Eleitoral em conjunto com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Além disso, citemos ainda a Emenda Constitucional nº 115 [3], que alterou a Constituição e incluiu a Proteção de Dados no rol dos Direitos Fundamentais, passando a integrar o artigo 5º, inciso LXXIX.

Destaquemos ainda que nos encontramos na fase da chamada de subsídios para a definição de pautas de extrema relevância, a exemplo da transferência internacional, entre outros, confirmando o amadurecimento gradativo da cultura da proteção de dados no país.

Incontroverso que há um longo caminho a ser percorrido para alcançarmos um nível satisfatório de conscientização e responsabilidade sobre o tema, mas já há muito a ser comemorado, considerando a ascensão observada até aqui. Entretanto, temos nos deparado frequentemente com alguns desafios na aplicação da LGPD [4], sem a devida consideração de outras normas legais de igual valor e que justificam na maioria das vezes o tratamento de dados em conformidade com a lei protetiva de dados pessoais.

Pensar exclusivamente na LGPD sem observar o ecossistema de leis do ordenamento jurídico e, em especial, os princípios constitucionais da publicidade e da informação, poderá acarretar retrocessos em garantias constitucionais já consolidadas.

Recentemente, o procurador-geral da República do Superior Tribunal Federal (STF) emitiu parecer nos autos do Recurso Extraordinário de nº 307.386 cc em que se discute a legalidade das consultas processuais a partir do nome das partes em processos judiciais através de buscadores da internet. Concluiu pela ilicitude do tratamento de dados pessoais de acesso público, realizado no caso em concreto, pelos buscadores, por violação aos direitos constitucionais à privacidade, à intimidade, à inviabilidade de dados e à autodeterminação informativa e ausência de finalidade legítima exigida pela LGPD. O referido processo encontra-se suspenso por pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes.

Nessa mesma linha, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na análise ao processo administrativo nº 06000231-37 [6], que trata da aplicação da LGPD no processo de registro de candidaturas, o relator, ministro Edson Fachin, apresentou o seu voto pela manutenção da transparência como regra pela plataforma DivulgaCandContas, condicionando a realização de adequações para proteção de elementos não essenciais para a fiscalização das candidaturas. Outra vez, verificamos a importância de interpretarmos a LGPD sem desconsiderarmos as demais legislações setoriais e a indispensabilidade de sopesar os princípios constitucionais.

No caso específico, admitirmos a supressão de dados sob a equivocada argumentação de que os dados dos candidatos que concorrem a cargos eletivos em detrimento do princípio da transparência e do direito à informação seria um desserviço ao processo democrático e à própria legislação, uma vez que, certamente, a LGPD [7] tem como foco restabelecer o equilíbrio no uso dos dados.

Conforme palavras de Danilo Doneda, professor e diretor do Centro de Direito, Internet e Sociedade do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), e integrante do Conselho Nacional de Privacidade e Proteção de Dados do Brasil, "usar a norma para diminuir a transparência é contraproducente e vai contra o espírito da lei. Ela não foi feita para estabelecer privilégio, mas para equilibrar poderes" [8].

Nessa toada, também vivenciamos disputas envolvendo relações de trabalho, onde algumas organizações reclamadas têm obtido êxito no requerimento de envio de ofícios às empresas de Tecnologia para que entreguem dados de geolocalização dos reclamantes como prova digital consubstanciado na base legal do artigo 7, inciso VI, o exercício regular do direito em processo judicial [9].

O debate entre os limites da Proteção de Dados e a privacidade do titular, também nesses casos, está apenas começando e ainda há muita estrada a ser percorrida. Entretanto, a devida ponderação das demais legislações e dos princípios de garantias fundamentais que orbitam o nosso sistema jurídico são indispensáveis para o avanço do amadurecimento da LGPD [10] como instrumento eficaz para fazer valer os fundamentos aos quais se propõe dispostos na LGPD em seu artigo 2 [11], quais sejam, o respeito à privacidade, a autodeterminação informativa, a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação, a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor e os direitos humanos.

Portanto, não podemos olvidar de que o tratamento de dados pessoais disposto no artigo 3, excetuando-se os tratamentos de dados relacionados no artigo 4, exigem para a sua licitude a observância dos princípios legais do artigo 6 e a adequada alocação da base legal do artigo 7 ou 11, a depender da categoria do dado pessoal envolvido. Sendo assim, a depender da base legal que justifique o processamento de dados pessoais, impõe-se que se considere as normas legais que coexistem juntamente com a LGPD [12].

Isolar a LGPD do contexto normativo legal enfraquece o seu propósito e fomenta judicializações desnecessárias.

Notas
[1] BRASIL. Presidência da República. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm. Acesso em: 15 ago. 2022.

[2] Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). [Site institucional]. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br. Acesso em: 03 jan. 2022.

[3] BRASIL. Emenda constitucional nº. 115, de 10 de fevereiro de 2022. Altera a Constituição Federal para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e para fixar a competência privativa da União para legislar sobre proteção e tratamento de dados pessoais. Brasília, 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc115.htm. Acesso em: 15 ago. 2022

[4] BRASIL. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm. Acesso em: 15 ago. 2022.

[5] STF discute responsabilidade por divulgação de dados de processos em sites. In: Consultor Jurídico — ConJur, 10 maio 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-10/stf-discute-responsabilidade-informacoes-processuais-sites. Acesso em: 15 ago. 2022.

[6] BRASIL. TSE determina a retirada, do sistema DivulgaCandContas, de dados pessoais de suplente de vereador. Brasília: Tribunal Superior Eleitoral, 30 nov. 2021. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Novembro/tse-determina-a-retirada-do-sistema-divulgacandcontas-de-dados-pessoais-de-suplente-de-vereador. Acesso em: 15 ago. 2022.

[7] BRASIL. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm. Acesso em: 15 ago. 2022.

[8] DONEDA apud FARIAS, Victor. TSE reduz transparência sobre bens de candidatos; entidades criticam decisão. Portal G1, 02 ago. 2022. Disponível  em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/noticia/2022/08/02/tse-reduz-transparencia-sobre-bens-de-candidatos-entidades-criticam-decisao.ghtml. Acesso em: 15 ago. 2022.

[9] BRASIL, loc. Cit.

[10] Ibidem.

[11] BRASIL. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm. Acesso em: 15 ago. 2022.

[12] Ibidem.

Referências
Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD. [Site institucional]. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br. Acesso em: 03 jan. 2022.

BRASIL. Emenda constitucional nº 115, de 10 de fevereiro de 2022. Altera a Constituição Federal para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e para fixar a competência privativa da União para legislar sobre proteção e tratamento de dados pessoais. Brasília, 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc115.htm. Acesso em: 15 ago. 2022.

BRASIL. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm. Acesso em: 15 ago. 2022.

BRASIL. TSE determina a retirada, do sistema DivulgaCandContas, de dados pessoais de suplente de vereador. Brasília: Tribunal Superior Eleitoral, 30 nov. 2021. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Novembro/tse-determina-a-retirada-do-sistema-divulgacandcontas-de-dados-pessoais-de-suplente-de-vereador. Acesso em: 15 ago. 2022.

FARIAS, Victor. TSE reduz transparência sobre bens de candidatos; entidades criticam decisão. Portal G1, 02 ago. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/noticia/2022/08/02/tse-reduz-transparencia-sobre-bens-de-candidatos-entidades-criticam-decisao.ghtml. Acesso em: 15 ago. 2022.

STF discute responsabilidade por divulgação de dados de processos em sites. In: Consultor Jurídico  ConJur, 10 maio 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-10/stf-discute-responsabilidade-informacoes-processuais-sites. Acesso em: 15 ago. 2022.

Autores

  • é advogada especialista em proteção de dados, pós-graduada em Direito Digital pela Fundação Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, mestranda em Direito e Negócios Internacionais pela Universidad Internacional Iberoamericana Europea del Atlántico e pela Universidad Unini México, pós-graduanda em Direito Digital pela Universidade de Brasília, data protection officer ECPB pela Maastricht University, certificada como data protection officer pela Exin e pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e fellow pelo Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!