Defesa da Concorrência

Autorização precária ou liminar do ato de concentração

Autor

  • Mauricio Oscar Bandeira Maia

    é advogado parecerista na área de Direito Concorrencial e auditor do Tribunal de Contas da União. Foi Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica entre 2017 e 2021. É Mestre em Direito pelo Instituto de Direito Público (IDP).

22 de agosto de 2022, 8h00

Em recente evento em comemoração aos dez anos de vigência da Lei 12.529/2011, tive a oportunidade de discorrer um pouco sobre o instituto da autorização precária de ato de concentração sob a ótica de sua criação, utilidade e requisitos, pois julgo oportuno conhecer um pouco mais dessa figura, tão pouco explorada pela doutrina e até mesmo pela jurisprudência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Spacca
A autorização precária foi instituída pelo novo diploma concorrencial em virtude da alteração do regime de apreciação dos atos de concentração, que passou de a posteriori, na lei passada, para, com a nova lei, controle preventivo.

Sob a sistemática anterior, uma operação podia ser consumada e o ato notificado ao Cade em até 15 dias úteis de sua realização, para posterior deliberação sobre o seu mérito [1]. Já sob o sistema novo, a notificação deve sempre ocorrer antes, só se podendo consumar a operação após a adjudicação da autoridade concorrencial [2].

E essa forma de análise estabelecida pela lei passada trazia complicações relevantes, eis que, uma vez consumada a operação, desfazê-la tornava-se tarefa bastante difícil, ou até mesmo impossível em certos casos. Um ex-conselheiro do Cade fazia uma interessante comparação entre as referidas operações de fusão/aquisição e a mistura do café com leite, servindo para ilustrar que determinadas combinações de elementos, após misturados, passam a formar um terceiro e novo componente, distinto daqueles que o originaram. Para além disso, o exemplo é didático a revelar a dificuldade, em certas e determinadas ocasiões, de se retroceder ao estado anterior, tal qual ocorre com a mistura do café com leite. A fusão prévia, sem condicionantes, por vezes tem impactos semelhantes ao ilustrado entre as empresas.

E, com vistas a resolver essa questão, o legislador pátrio cogitou da introdução da análise prévia, na época já adotada em praticamente todas as jurisdições antitruste internacionais. Todavia, é bom lembrar, um dos grandes receios quando da modificação do sistema de análise dos atos de concentração consistia justamente na desconfiança acerca da capacidade e agilidade da autoridade concorrencial em lidar com operações em tempo hábil a não se tornar mais um gargalo burocrático e, com isso, prejudicar o ambiente de negócios no país. Essa preocupação levou a que diversas empresas, pouco tempo antes da entrada em vigor da nova lei, apresentassem ao Cade um número incomum de notificações, todos na expectativa de ainda se valerem da regra então vigente e fugirem da novel legislação, para não ficarem com suas operações suspensas por prazo até então desconhecido.

Em função dessa incerteza, o parecer emitido em 2008 pelo então deputado Ciro Gomes sobre o projeto de lei que se converteu na lei concorrencial previu uma transição "suave" para o exame prévio, estabelecendo ressalva que permite ao conselheiro-relator a autorização precária e liminar da realização de ato de concentração, com a imposição de condições que visem à preservação e reversibilidade da operação.

O dispositivo em questão é disciplinado pelo artigo 59, parágrafo 1º, da Lei 12.529/2011, o qual dispõe que o conselheiro-relator poderá autorizar, conforme o caso, precária e liminarmente, a realização de ato de concentração econômica, impondo as condições que visem à preservação da reversibilidade da operação, quando assim recomendarem as condições do caso concreto.

A regra foi criada, portanto, com o nítido propósito de aplacar a incerteza do mercado quanto ao tempo de análise do ato pelo Cade e, ao mesmo tempo, de propiciar mecanismos a se possibilitar, expeditamente, a realização de operações de aquisição/fusão sem prejuízo ao ambiente concorrencial, ainda que de forma precária.

Para alguns, a autorização precária é uma hipótese de exceção à vedação de aprovação prévia dos atos de concentração, justamente por se viabilizar a realização da operação antes mesmo de aprovada em definitivo pelo órgão antitruste.

Com as devidas vênias, não a vejo como uma exceção propriamente ao modelo de aprovação prévia dos atos de concentração, mas apenas como uma antecipação de alguns de seus efeitos, com natureza precária (e por isso incerta e mutável) e limitada a determinados atos, antes da definitividade da apreciação pelo Cade. Tais características, contudo, não são suficientes para desnaturar o regime de autorização prévia, pois mesmo para a autorização precária continua sendo imperiosa a manifestação da autoridade concorrencial antes da realização de quaisquer atos de consumação da operação pelas partes requerentes, sob pena de gun jumping.

Quanto à utilidade do instituto, sua principal vocação é a de viabilizar uma tutela de urgência em matéria de controle de estruturas, possibilitando às partes a realização de atos inerentes a uma operação de fusão/aquisição, porém, sem o principal inconveniente da sistemática da análise a posteriori dos ACs, qual seja, a irreversibilidade da operação, e sempre com o aval prévio do Cade.

Cumpre perceber que a autorização precária tem esse papel, de garantir que a operação não seja irreversível, daí porque ela não necessariamente importa em exceção ao sistema de aprovação prévia, mas tão somente potencial mitigação de seus efeitos. Exceção a essa regra seria se as partes requerentes a pudessem implementar — mesmo que precariamente —, independentemente de autorização do Cade, o que não é o caso.

No tocante ao seu cabimento, este se dá tanto no caso de impugnação da operação pela superintendência-geral quanto de aprovação pela SG. A propósito, poder-se-ia objetar o seu uso em casos de aprovação pela superintendência, questionando-se a sua utilidade. Todavia, se a autorização precária é possível no cenário pior, de rejeição do ato pela superintendência, com mais razão ainda é de se concluir que possa ser ela concedida em caso de aprovação pela SG, pois os efeitos eventualmente antecipados nessa situação serão presumivelmente menos lesivos à concorrência e ao mercado do que em um ato que se propõe a rejeição.

A título de conclusão parcial, pode-se afirmar que a autorização precária tem natureza de antecipação, total ou parcial, dos efeitos da aprovação. Mas quais seriam esses efeitos?

Temos então duas hipóteses, uma de impugnação pela SG e outra de aprovação também pela SG.

Na primeira, a autorização precária tem o condão de antecipar os efeitos de uma futura aprovação, conquanto impugnada a operação pela superintendência e, ainda, com o estabelecimento de condições para preservar a reversibilidade da operação, ou seja, para impedir que o que se está fundindo seja uma "mistura" do tipo "café com leite", vale dizer, irreversível. Nesse caso, a impugnação do ato é encaminhada ao tribunal, porém o relator poderá autorizar liminarmente a implementação da operação, ainda que limitando-a a determinados atos, a fim de preservar a reversibilidade da operação em caso de eventual futura rejeição pelo tribunal. Em outras palavras, antecipam-se efeitos que a SG não reconheceu em seu juízo monocrático.

Na segunda situação, o ato aprovado pela superintendência somente poderia ser implementado após o decurso do prazo para avocação e para recursos de terceiros [3], de modo que a autorização precária possibilitaria adiantar a prática dos atos tendentes à consumação da operação, sem que eventual posterior revogação dessa medida ou rejeição do ato de concentração pelo tribunal implique gun jumping pelas requerentes.

Prosseguindo na análise do instituto, tem-se que os requisitos para a sua concessão são os seguintes: (1) a inexistência de dano irreparável para as condições de concorrência no mercado, (2) a reversibilidade das medidas e (3) a iminente ocorrência de prejuízos financeiros substanciais e irreversíveis para as partes.

Compulsando os precedentes existentes no Cade até hoje, vislumbram-se dois julgados sobre essa autorização, um primeiro, da relatoria do conselheiro Paulo Burnier [4], em que a medida em tela foi negada, e um segundo, do qual fui relator [5], e que foi autorizada.

Esse segundo caso me parece bem exemplificativo de uma possibilidade de concessão da medida, sem prejuízo para o mercado ou para a concorrência, e com justificativas bastantes concretas e plausíveis para a sua concessão.

Tratou-se do caso da concessão do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, feita pelo poder público já há algum tempo e cujo consórcio vencedor era formado pela empresa Excelente, da Changi Airport, e a Odebrecht, ambos somados com o total de 51% do capital social, mantendo a Infraero 49% do controle acionário.

O consórcio tinha a obrigação de pagar uma quantia de cerca de R$ 1,5 bilhão ao concedente em maio de 2017, e buscava vender a participação da Odebrecht a outro grupo chinês que aguardava autorizações regulatórias naquele país para concluir a operação. Diante do não pagamento tempestivo, o concedente estabeleceu, em termo aditivo ao contrato de outorga, celebrado em setembro daquele ano, que o pagamento deveria ser integralmente quitado em 20 de dezembro de 2017, sob condição resolutiva do contrato.

Foram então adotadas outras providências pelas consorciadas, que culminaram na operação ora mencionada, consistente na aquisição, pela Excelente, das ações da Odebrecht, integralizando os 51% do capital social do Galeão na primeira empresa.

A operação foi aprovada sem restrições na SG e em nada alterou a atual estrutura de mercado relacionada à operação de aeroportos e campos de aterrissagem, mas tão somente a estrutura interna da empresa que já prestava serviços no Galeão, demonstrando a ausência de perigo irreparável à concorrência.

A reversibilidade da operação ficou caracterizada pela possibilidade posterior de alienação da participação societária da Excelente em caso de alteração do entendimento de aprovação. Aliás, frise-se que já havia autorização do Cade para a operação de venda dessa mesma participação ao grupo chinês HNA infrastructure.

Outrossim, restaram caracterizados também os iminentes prejuízos financeiros aos requerentes, caso não conseguissem autorização para a operação, pois poderiam perder definitivamente a outorga do aeroporto.

Por fim, também se demonstrou que as requerentes não agiram de má-fé ao notificarem a operação em data próxima ao vencimento do pagamento da primeira parcela da outorga, pois vinham adotando providências desde agosto daquele ano.

Importante notar que, no caso de a autorização precária recair sobre ato já aprovado pela SG/Cade, o processo do ato de concentração não necessariamente será submetido posteriormente ao crivo do conselho, visto que a aprovação pela SG somente será reapreciada pelo Plenário do Cade caso haja avocação ou recurso de terceiros interessados.

Esse caso, até hoje, é uma das poucas referências em termos de autorização precária na jurisprudência do Cade, por ser o único em que houve um julgamento positivo para o requerimento das partes. Seus elementos também se prestam a exemplificar e servir de guia para concessões futuras.

Observa-se, por fim, que o uso idealizado pelo legislador nacional para o instituto não se mostrou necessário, pois o Cade soube conduzir com maestria a mudança de sistemática de análise de atos de concentração, analisando celeremente sob os ritos sumário e ordinário as operações que lhe foram submetidas, daí a utilidade da autorização precária ter se reduzido a hipóteses bem mais restritas, nas quais não haja risco de dano irreparável ao mercado, possa-se retornar ao status quo ante sem maiores dificuldades, e as partes requerentes demonstrem a iminência de prejuízos financeiros substanciais e irreversíveis.

 


[1] Lei nº 8.884/1994. Art. 54, §4º: "§ 4º Os atos de que trata o caput deverão ser apresentados para exame, previamente ou no prazo máximo de quinze dias úteis de sua realização, mediante encaminhamento da respectiva documentação em três vias à SDE, que imediatamente enviará uma via ao CADE e outra à SPE".

[2] Lei nº 12.529/2011. Art. 88, §2º: "§ 2º. O controle dos atos de concentração de que trata o caput deste artigo será prévio e realizado em, no máximo, 240 (duzentos e quarenta) dias, a contar do protocolo de petição ou de sua emenda".

[3] Lei nº 12.529/2011, Art. 65, caput, incisos I e II:

"Art. 65. No prazo de 15 (quinze) dias contado a partir da publicação da decisão da Superintendência-Geral que aprovar o ato de concentração, na forma do inciso I do caput do art. 54 e do inciso I do caput do art. 57 desta Lei:

I – caberá recurso da decisão ao Tribunal, que poderá ser interposto por terceiros interessados ou, em se tratando de mercado regulado, pela respectiva agência reguladora;

II – o Tribunal poderá, mediante provocação de um de seus Conselheiros e em decisão fundamentada, avocar o processo para julgamento ficando prevento o Conselheiro que encaminhou a provocação."

[4] Processo 08700.007756/2017-51.

[5] Processo 08700.2699/2017-13.

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