Diário de classe

A decisão judicial e o princípio da boa fé do artigo 49, § 3º, do CPC

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20 de agosto de 2022, 12h03

O art. 489, § 3º, do CPC tem o seguinte texto: "A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé." O que se entende, então, por princípio da boa-fé no contexto do referido artigo?

Para compreender o artigo foi feita uma pesquisa dividida em (i) acórdãos do STJ que utilizam expressamente o art. 489, § 3º, do CPC no julgado, tendo em vista que uma de suas funções constitucionais é a de uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional; (ii) literatura jurídica sobre o mencionado artigo.

Da análise dos 91 (noventa e um) acórdãos do STJ, cujo critério de pesquisa foi: "art. 489, § 3º, e CPC", conseguiu-se obter os seguintes sentidos atribuídos pelo Tribunal acerca do mencionado artigo:

1 — RESP 1.987.106 — j. 03.05.2022: "a interpretação da decisão da origem deve considerar o conjunto dos pronunciamentos".

2 — RESP 1.538.489 — j. 06.04.2021: "Por fim, quanto às alegadas omissões no voto condutor da Relatora designada, vale destacar que, exclusivamente para fins de aferição delas, o Acórdão recorrido deve ser analisado em seu conjunto à luz do postulado da boa-fé (art. 489, § 3º, do CPC/2015). No caso presente, a decisão deve ser interpretada em seu todo, considerando a fundamentação per relationem do voto da Relatora designada (fls. 2.296, e-STJ) em relação ao voto do Relator originário da causa (fls. 2.248/2.283, e-STJ) — que dele divergiu em parte mínima —, além da integração havida por conta do acórdão dos Aclaratórios interpostos (fls. 2.352/2358, e-STJ)".

3 — AgInt no AREsp 1.552.655 — j. 09.03.2021: "à luz do art. 489, § 3º, do CPC, a interpretação da decisão da origem deve considerar o conjunto dos pronunciamentos".

4 — REsp 1.765.579 — j. 05.02.2019: "O exame da validade/nulidade da decisão que aplicar a técnica da ponderação deve considerar o disposto nos arts. 282 e 489, § 3º, do CPC/2015, segundo os quais a decisão judicial constitui um todo unitário a ser interpretado a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé, não se pronunciando a nulidade quando não houver prejuízo à parte que alega ou quando o mérito puder ser decidido a favor da parte a quem aproveite."

5 — HC 41.9677 — j. 06.02.2018: "Assim como as leis e os princípios, o ato processual decisório produto da ponderação entre tais elementos também deve ser objeto de interpretação pelo hermeneuta, a fim de se aquilatar o alcance e profundidade da norma de regência criada para equalização do caso concreto. A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé (art. 489, §3º, do NCPC c.c art. 3º do CPP)."

6 — AgInt no AREsp 571.017 — j. 15.09.2016: "Salienta-se que o Novo Código de Processo Civil consubstanciou tal entendimento no mesmo art. 489 supracitado, em seu § 3º, de que a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos, pois, analisar o contexto dos autos requer-se que o julgador permeie o universo dos acontecimentos e fundamentos jurídicos como um todo, atendendo aos fins sociais e às exigências do bem comum, sem afastar a necessidade de se resguardar os princípios da proporcionalidade e eficiência."

7 — AgInt no AREsp 567.352 — j. 01.09.2016: "Salienta-se que o Novo Código de Processo Civil consubstanciou tal entendimento no mesmo art. 489 supracitado, em seu § 3º, de que a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos, pois, analisar o contexto dos autos requer-se que o julgador permeie o universo dos acontecimentos e fundamentos jurídicos como um todo, atendendo aos fins sociais e às exigências do bem comum, sem afastar a necessidade de se resguardar os princípios da proporcionalidade e eficiência."

8 — AgInt no AREsp 637.841 — j. 01.09.2016: "Salienta-se que o Novo Código de Processo Civil consubstanciou tal entendimento no mesmo art. 489 supracitado, em seu § 3º, de que a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos, pois, analisar o contexto dos autos requer-se que o julgador permeie o universo dos acontecimentos e fundamentos jurídicos como um todo, atendendo aos fins sociais e às exigências do bem comum, sem afastar a necessidade de se resguardar os princípios da proporcionalidade e eficiência."

Percebe-se que os 8 (oito) julgados que se aprofundaram na atribuição de sentido ao art. 489, § 3º, do CPC não trouxeram nenhum sentido atribuível à boa-fé, bem como que deve o(a) intérprete examinar "o conjunto dos pronunciamentos", "pois, analisar o contexto dos autos requer-se que o julgador permeie o universo dos acontecimentos e fundamentos jurídicos como um todo, atendendo aos fins sociais e às exigências do bem comum, sem afastar a necessidade de se resguardar os princípios da proporcionalidade e eficiência".

Dessa maneira, para o STJ quem decide deve analisar o conjunto de pronunciamentos dentro do universo jurídico dos acontecimentos e fundamentos jurídicos como um todo, com o objetivo de atender aos fins sociais, as exigências do bem comum e resguardar os princípios da eficiência e da proporcionalidade.

Indaga-se: o princípio da boa-fé posto no art. 489, § 3º, do CPC tem por conteúdo os fins sociais, as exigências do bem comum e o resguardo aos princípios da proporcionalidade e da eficiência? A literatura jurídica trouxe as seguintes balizas abaixo citadas de forma exemplificativa:

(i) A decisão judicial é um exemplo de enunciado normativo do qual se extraem normas jurídicas1 (princípios e regras) derivadas da análise da causa posta a julgamento pelo Tribunal competente, cujo conteúdo deve ser indene de dúvidas para fins de apreciação dos limites da coisa julgada na fase de execução da decisão judicial.

(ii) Nessa linha, a fundamentação da decisão judicial deve efetivar o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988 (CF/88), no art. 489 e no art. 926 do CPC, cuja norma jurídica advinda da decisão judicial possui um DNA, a sua ratio decidendi2, ou seja, o(s) princípio(s) que embasa(m) tal decisão e deve(m) ser aplicado(s) às causas futuras semelhantes, o que Thomas Bustamante denomina “norma precedente”3.

(iii) A fundamentação e o dispositivo devem guardar pertinência com os fatos jurídicos aventados na causa, sendo relevante a análise do conjunto de postulações das partes,4 na linha do decidido pelo STJ (ex.: RESP 1.987.106).

(iv) Nesse contexto, o STJ (RESP 818.614 e RESP 1.149.575) entendeu que eventual dúvida sobre o dispositivo da decisão judicial pode ser dirimida pela verificação da fundamentação e dos limites da lide a partir do pedido formulado na petição inicial. Por isso, é entendida como uma totalidade "(do todo para a parte e da parte para o todo – o que se chama de círculo hermenêutico), tendo como norte a boa-fé".5

(vi) Como se sabe, a boa-fé possui significados diversos no Direito brasileiro, podendo ser subjetiva, no caso de pedidos de usucapião de bens móveis ou imóveis (Código Civil [CC], arts. 1.242 e 1.260), objetiva (CC, arts. 113, § 1º, I-III, e 422 e CPC, art. 5º) — comportamentos stricto senso das partes em um negócio jurídico ou no âmbito do processo civil.

(vii) Uma primeira corrente, na linha do Direito processual português (ex: Supremo Tribunal de Justiça no Recurso de Revista 356/02), aponta que a boa-fé processual na "interpretação das sentenças obedece às regras da interpretação dos negócios jurídicos", ou seja, "para interpretarmos corretamente a parte decisória de uma sentença temos de analisar os seus antecedentes lógicos que a tornam possível e a pressupõem, dada a sua íntima interdependência. A interpretação da sentença exige, assim, que se tome em consideração a fundamentação e a parte dispositiva, fatores básicos da sua estrutura. De realçar, ainda, que, embora o objeto da interpretação seja a própria sentença, a verdade é que nessa tarefa interpretativa há que ter em conta outras 'circunstâncias', que funcionam como 'meios auxiliares de interpretação', na medida em que daí se possa retirar 'uma conclusão sobre o sentido' que se lhe quis emprestar (…)".6

(ix) Existe literatura jurídica no Brasil que segue essa linha e aplica o art. 113, § 1º, I, II e III, do CPC na interpretação da sentença de acordo com o art. 489, § 3º, do CPC,7 entendendo que exista um "princípio da caridade na interpretação, segundo o qual os textos devem ser interpretados a partir da premissa de que o seu autor agiu com racionalidade e com lealdade (…) enfim, que tenha seguido as regras do modo de vida social e histórico no qual estava inserido".8

(x) Uma segunda corrente, que nos parece correta, capitaneada por Lenio Streck, aponta que a compreensão do termo boa-fé para fins de aplicação do art. 489, § 3º, do CPC não se refere aos mencionados comportamentos negociais ou processuais e sim "de como devem os destinatários interpretar o que foi decidido", isto é, boa-fé "é posta, assim, no patamar de princípio, um padrão pelo qual, em princípio, devem os destinatários interpretar".9

(xi) A função da boa-fé, nesta hipótese, é hermenêutica, pois a compreensão da decisão (fenômeno) procura evitar, com lastro no fairness de Dworkin, "as atitudes subjetivistas lato sensu, como interpretação por partes, usos descontextualizados de palavras etc., e, por fim, cria um dever de agir. O CPC estabelece apenas que o produto final de um processo exige o cumprimento de um padrão ético, cujo vetor é a boa-fé".10

Conclui-se, portanto, pelo acerto da segunda corrente por contextualizar o conteúdo da boa-fé nas duas perspectivas retrocitadas de comportamento negocial ou processual dirigido às partes e a quem participa do processo daquele direcionado a quem tem o dever de interpretar o conteúdo processual.

Nessa senda, torna-se necessário que os nossos Tribunais densifiquem de forma mais adequada o que entendem por princípio da boa-fé posto no art. 489, § 3º, do CPC, visto que as duas correntes trazidas acima pela literatura jurídica sequer são citadas nos aludidos julgados do STJ, o que fragiliza a interpretação de tão relevante artigo do CPC, assim como o próprio papel da literatura jurídica no Direito brasileiro, cujo resultado estamos vendo com o direito sendo aplicado de forma divorciada do Direito….


1 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno.; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 17.ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 522.

2 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Precedente vinculativo e persuasivo e a ratio decidendi. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-13/diario-classe-precedente-vinculativo-persuasivo-ratio-decidendi Acesso em 19ago2022.

3 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do precedente judicial – a justificação e a aplicação das regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 259. Sobre precedentes veja: STRECK, Lenio. Precedentes. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais de acordo com a crítica hermenêutica do direito. 2.ed. Belo Horizonte: Letramento, 2021, p. 360-367.

4 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno.; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil., p. 525-526.

5 STRECK, Lenio. Art. 489. In: STRECK, Lenio; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da (Orgs.). FREIRE, Alexandre (Coord. Exec.) Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2016, edição eletrônica.

6 TUCCI, José Rogério Cruz e. Art. 489. In: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIEIRO, Daniel (Coords.). Comentários ao código de processo civil. São Paulo: RT, v. 8, edição eletrônica.

7 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno.; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil., p. 527 e TUCCI, José Rogério Cruz e. Art. 489.

8 KEMMERICH, Clovis Juarez. A interpretação da sentença judicial no processo judicial no processo civil. In: FREIRE, Alexandre; BURIL, Lucas; PEIXOTO, Ravi (Coord.). Novo CPC – Doutrina selecionada. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 2, p. 486.

9 STRECK, Lenio. Art. 489. Comentários ao código de processo civil.

10 STRECK, Lenio. Art. 489. Comentários ao código de processo civil.

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