Improbidade em Debate

Julgamento do Tema 1.199 e retroatividade da Lei nº 14.230

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19 de agosto de 2022, 14h39

O Supremo Tribunal Federal concluiu na tarde desta quinta-feira (18/8) o julgamento do Tema 1.199 de Repercussão Geral (ARE 843.989). Em que pese a diversidade de argumentos e de posições reforçarem as já conhecidas complexidade e riqueza do tema, fato é que, ao fim e ao cabo, o Tribunal convergiu em favor das seguintes teses:

Spacca
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se — nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA  a presença do elemento subjetivo  dolo;

2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021  revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa , é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada, nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;

3) A nova lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos, praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior, devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente.

4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.

A despeito de definido o tema em sede de jurisdição constitucional, temos por bem tecer algumas considerações sobre fundamentos extraídos dos diversos votos e externar nossa posição sobre a conclusão alcançada, o que fazemos de modo absolutamente objetivo e sempre deferente.

Em primeiro lugar, importante endereçar a questão da natureza da ação de improbidade administrativa, alçada a premissa de diversos desenvolvimentos por parte dos Ministros que votaram pela irretroatividade.

De nossa parte, fora de dúvida que a ação de improbidade é não penal. Isso, é verdade, potencialmente a classificaria de modo residual como cível "lato sensu", o que, por outro lado, não a coloca em pé de igualdade com demandas cíveis em sentido estrito — valendo o adendo de que a jurisprudência sobre o tema pode e deve ser dinâmica de sorte a considerar as mudanças, inclusive legislativas, oriundas do tempo.

Dito de outro modo, a despeito de não penal, situamos a ação de improbidade — inclusive com fundamento no artigo 17-D da Lei nº 8.429, com redação dada pela reforma — na seara administrativo-sancionadora, que, a exemplo do direito penal, retira seu fundamento de validade da matriz punitiva estatal.

Isso quer dizer que, inobstante não penal, a ação de improbidade partilha sim, com aquela rubrica sancionadora penal, diversas garantias constitucionais, a exemplo da vedação ao bis in idem, do contraditório, da não transcendência pessoal da pena e da presunção de inocência, elementos esses, de um modo ou de outro, presentes na aludida Lei e aplicáveis pela jurisprudência em facetas do direito administrativo sancionador bem menos gravosas que a improbidade.

É falar: não se cuida aqui de enquadrar o artigo 5º, XL, da Constituição, como elemento ínsito ao direito penal. Ao contrário, trata-se, antes, de garantia constitucional, de sorte que seu influxo sobre a seara administrativo-sancionadora não deflui, horizontalmente, de uma supostamente indevida ampliação do direito administrativo sancionador ou de sua identificação desmedida com o direito penal, senão, isto sim, de uma submissão vertical à Constituição.

Dessa feita, não coadunamos a tese de uma interpretação literal ou estrita do artigo 5º, XL. Em sentido diametralmente oposto, entendemos que a referida garantia, precisamente por se cuidar de garantia fundamental oponível primordialmente ao Estado, há de merecer, sob o signo da hermenêutica constitucional, eficácia extensiva, apenas limitável por direitos fundamentais outros, não alçada a tal a prerrogativa punitiva estatal.

Em segundo lugar, chamou nossa atenção o recorte que ressalvou a aplicabilidade da reforma a processos em curso. Entendemos que todo o debate residia em saber se as normas oriundas da reforma, quando benéficas ao réu, retroagiriam ou não para atingir fatos passados. A resposta, para tanto, para nós, haveria de ser sim ou não. Diversamente, sem embargo, a conclusão alcançada pelo Tribunal pareceu ser a de uma "retroatividade temperada", a não alcançar decisões transitadas em julgado e a prescrição geral — a rigor, em nossa visão, o que houve foi na verdade o reconhecimento da retroatividade, com modulação dos efeitos da decisão.

De toda sorte, quanto à revogação da modalidade culposa, não vislumbramos razões para que a retroatividade não alcançasse mesmo as decisões transitadas em julgado. A proteção constitucional à coisa julgada inegavelmente existe, mas encontra no próprio artigo 5º, XL, flexibilização, do que se depreende não ser ela absoluta.

Os institutos da revisão criminal e da rescisória fundada em causa superveniente de inexigibilidade da obrigação igualmente são tributários do fato de que a preservação da coisa julgada como corolário da segurança jurídica há de ceder quando essa própria preservação implicar maior insegurança que a sua relativização, que é o que se dá, segundo pensamos, com a vulneração da isonomia resultante do tratamento distinto a separar condenados com e sem trânsito em julgado. Isto é, quiçá por uma diferença de horas, pessoas em idêntica situação poderão merecer destinos diversos, o que em si patrocina uma situação de insegurança e de instabilidade.

O mesmo se dá com relação à prescrição geral, norma de direito material — não ignoramos a inclinação doutrinária a tratar a prescrição intercorrente como norma processual. Ainda que se pudesse conceber um regime de transição, é curioso que a retroatividade contemple a revogação da culpa, mas não alcance a prescrição…

Seja como for, ao menos da tese acabou por constar que, quanto à revogação da culpa e quanto aos processos em curso, o que se dá é, de fato, retroatividade. Não se tratava mesmo de não ultratividade, predicado que designa a aplicabilidade de lei revogada a fatos praticados ao tempo de sua vigência. A hipótese é de retroação de lei revogadora a fatos praticados antes de sua vigência, o que firma um legado deixado pelo julgado a ser considerado em casos futuros, como, por exemplo, a ADI 7.156.

Igualmente digna de registro positivo a extirpação, na tese, da ressalva que havia sido inicialmente proposta no sentido de conferir ao juízo a prerrogativa de avaliar eventual má-fé ou dolo eventual para o prosseguimento da ação. O ponto era capaz de gerar confusão e leituras repristinatórias da modalidade culposa e do dolo genérico, com o que se houve bem a Corte. No ponto, adicionalmente, temos que o juízo haverá de considerar a capitulação inicial da pretensão punitiva deduzida, não se admitindo emendatio ou mutatio libeli. Enfim, o crivo judicial haverá de examinar as manifestações precedentes, e não eventual tentativa de reenquadramento de fatos como forma de se buscar o prosseguimento do feito.

Ainda no particular, caso os feitos em curso estejam em sede recursal extraordinária, advogamos a posição de que, admitido o recurso, seja ele especial ou extraordinário, deve se aplicar o direito à espécie, inclusive o direito superveniente, não se podendo, sob o pálio da exigência de prequestionamento, chancelar condenações fundadas em atos culposos — no STJ, bem a propósito, o ministro Og Fernandes vinha, a nosso ver corretamente, instando as partes a se manifestar sobre a potencial incidência da reforma.

Como derradeiro ponto, tratamos da questão prescricional, particularmente a intercorrente. Foi recorrente o argumento de que a retroação não poderia "sancionar" uma não inércia do titular da pretensão sancionatória. Em nosso sentir, todavia, o raciocínio há de ser outro: quando a pretensão é punitiva, não se considera o Estado personificado apenas na figura do Ministério Público, senão também no Judiciário. Se vale a presunção de inocência, aquele ainda não definitivamente julgado culpado não pode ficar à mercê indefinidamente do Estado, numa situação de incerteza sobre seu processamento ou sobre sua culpa.

A pretensão punitiva é limitada, pois, pela prescrição geral e, no caso da intercorrente, pela razoável duração do processo, sob pena de converter-se em constrangimento ilegal e de diluir um contraditório e uma ampla defesa num mar de anos. Sob esse prisma a prescrição intercorrente foi introduzida no processo penal; sob esse mesmo color haveria de ser lida na seara administrativo-sancionadora. Seja como for, o item 4 da tese assentou que "O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei". Reputamos, forçosa a reflexão, que a tese diga respeito apenas à modalidade intercorrente, sob pena de pretensões anteriores à lei, sendo alcançadas pela majoração da prescrição geral, acarretarem uma retroação da norma mais gravosa.

Em conclusão: se pudermos lançar um olhar positivo sobre o julgado, entendemos que andou bem o Tribunal ao garantir alguma retroatividade às normas benéficas trazidas pela reforma, somente limitada pelo sensível argumento da segurança jurídica, a avultar nas hipóteses da coisa julgada e da prescrição. Adicionalmente, e implicitamente, vemos com bons olhos o fato de a Corte, incidentalmente, haver reconhecido a constitucionalidade das mudanças, em alguma medida rechaçando a tese de proteção deficiente ou de retrocesso no combate à improbidade.

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