Senso Incomum

E o cara tentou suicídio e acabou processado por porte ilegal de arma!

Autor

18 de agosto de 2022, 8h00

1. A tentativa de suicídio que virou crime de porte ilegal de arma
Aquando procurador de Justiça nos anos 90, recebi um estranho processo em meu gabinete. Em uma comarca do interior ocorrera uma condenação cuja apelação estava aguardando parecer.

Spacca
Examinei e eis que descobri que um cidadão tentara suicídio com revólver. Falhara no intento. E o promotor de Justiça o denunciou por porte ilegal de arma. E o juiz o condenou.

Quase não acreditei. Fiz um contundente parecer. Acolhido na íntegra. Absolvição na veia. Achei que aquela bizarrice jamais se repetiria.

2. A tentativa de suicídio que virou crime de aborto
Passa o tempo. Em 2022, leio que um promotor de São Paulo denunciou (em 2020) uma mulher — que sofria de depressão — que tentou suicídio e, como estava grávida, o feto não resistiu.

Diz o promotor: "Verte dos autos que a denunciada queria cometer suicídio tomando veneno para matar ratos"… e assim, acabou abortando. E, por isso, ela teria cometido o crime — de aborto — com dolo eventual (sic).

Mas não verteu (sic) dos autos que ela queria (vontade de) cometer suicídio? Então, se ela tinha o "dolo" (vejam as aspas) de cometer suicídio, não tinha outro, certo? Ao tentar se matar, assumiu o risco de abortar? Mas como isso pode ocorrer no plano do direito penal? Ela tinha vontade de morrer. Assumir o risco de que modo? O que houve com a teoria do delito?

Aliás, é impossível exigir outra conduta a quem deseja se matar. Como evitar o aborto, se a mãe deseja o suicídio? Não tem como. Falei com o mestre Juarez Tavares sobre esse caso: é um caso clássico de exclusão de culpabilidade. Exemplo mais expressivo de inexigibilidade de outra conduta. Por isso minha estranheza pelo recebimento da denúncia. A denúncia não me surpreende. O seu recebimento, sim.

O caso é parecido com o do sujeito que relatei no início da coluna: o sujeito que tenta o suicídio e acaba processado e condenado por porte ilegal de arma.

Se a mulher essa tivesse tentado o suicídio com arma de fogo, seria processada duplamente, ao que dá para entender.

Querem mais? A denúncia foi recebida. E o processo está tramitando. Falta só ir a júri. Cartas para a coluna.

3. Por que as consequências "vêm sempre depois": onde foi que erramos?
Como se vê, há de tudo no direito brasileiro. Processo de um pingente que chega ao STF (houve condenação), preso que tem de fazer cartinha ao STF para receber um HC por identificação errada, precedentes do STJ ignorados para manter pessoas presas…

Há várias razões. Um deles diz respeito a um ensino jurídico fragmentado, prêt-à-porter. Um ensino desumanizado. Um direito que não é direito. Um torto direito. Um direito torto. Como dizia o Conselheiro Acácio, as consequências vêm sempre depois…!

Com tudo isso acontecendo — lembremos da prisão preventiva e audiência de custódia de um deficiente auditivo não oralizado sem auxílio de qualquer tradutor ocorrido no RJ há poucos meses —, insisto em minha luta para transformar o direito naquilo que a Constituição estabelece. Direito a ter direito.

E, a propósito, está na hora de fazer valer a Lei de Abuso de Autoridade. Ou colocar algumas autoridades no divã.

4. E aparece uma nova literatura na praça: o manual caseiro de direito
Há mais de 20 anos faço a seguinte pergunta em textos e palestras:

– Você se operaria com um médico que estudou cirurgia em livros como "Cirurgia Cardíaca Desenhada"?, "Manual Mastigado de Cirurgia"? "Cirurgia Estudada à Sombra e Água Fresca"? "Resumo do Resumo da Cirurgia de Cérebro"? "Seja F… em Cirurgia do Fígado"? "Anatomia Tuitada"? Ah, Não?

Pois no direito pode. Normal. Para quem acha que depois do "Seja F…" e "Direito Constitucional Desenhado" nada mais surgiria na área jurídica, agora apareceu o "Manual Caseiro de Direito Tributário". Pronto. Um amigo até pensou que havia um erro na capa do livro. Talvez fosse alguém chamado Manuel Caseiro e a falta de correção gráfica fez com que saísse Manual Caseiro… Mas, pelo jeito, não foi.

Vem aí o Master Chef do Direito. Tudo feito na hora e ao vivo.

Depois nos queixamos dos embargos.

Logo, logo, o Instituto Universal Brasileiro (lembram do velho IUB?) assumirá a coordenação da área jurídica do MEC. Na inscrição, ganha um kit de montar e desenhar. Algo como "Faça você mesmo a sua lei em casa" e "Os cinco passos para escrever seu próprio manual de direito facilitado"…!

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!