Opinião

Prescrição da pretensão executória e o Supremo Tribunal Federal

Autor

  • José Carlos Abissamra Filho

    é advogado criminal doutor e mestre pela PUC-SP ex-diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e autor de Política Pública Criminal - Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais (Juruá Editora).

18 de agosto de 2022, 6h37

O termo inicial para a contagem da prescrição da pretensão executória do Estado — se a partir do trânsito em julgado para a acusação ou a partir do trânsito em julgado para ambas as partes  está na ordem do dia do C. Supremo Tribunal Federal. A matéria teve reconhecida repercussão geral no ARE 848.107/DF (Tema nº 788) e tem previsão de julgamento para 31/8/2022.

Diante disso, impõe-se fazer alguns apontamentos, esperando que cheguem até a Suprema Corte e contribuam com o julgamento de matéria tão relevante.

O artigo 112, inciso I, do Código Penal, ora sub judice, é claro ao dispor que "No caso do artigo 110 deste Código, a prescrição começa a correr: I – do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação". O texto é claro e não gera qualquer dúvida ao intérprete, sendo vedada qualquer interpretação, pois a interpretação, no Direito Penal, somente é cabível quando houver dúvida e segundo o princípio do favor rei, ou seja, apenas para favorecer o acusado. Pelos princípios da legalidade e taxatividade da lei penal é absolutamente vedada a interpretação em prejuízo do acusado.

O artigo sub judice, bem se vê, dispensa interpretação, dado que não existe dúvida a respeito do seu sentido. Em outras palavras, a matéria em discussão não envolve interpretação jurídica  pois o texto legal é claro , mas uma vontade institucional de mudar a lei pela via do Poder Judiciário em razão de discordância quanto ao seu conteúdo, o que torna absolutamente vedada a interpretação in malam partem.

A rigor, nem de interpretação se trata; o que pretende a corrente que busca alterar o regime de prescrição hoje vigente no país  via Poder Judiciário  é uma alteração legislativa, o que torna a ilegalidade ainda mais evidente.

Mas não é só.

Se o legislador tivesse alguma dúvida a respeito do que legislou, ou, se tivesse legislado mal, não teria repetido a mesma expressão na alteração legislativa promovida em 2010 e que alterou a redação do artigo 110 do Código Penal. Vejamos o teor do artigo 110 do Código Penal:

"Artigo 110 – A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.
§1o A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa. (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010)".

Ou seja, há inclusive dúvida a respeito do acerto da tese que pretende mudar a legislação sob o fundamento de que o artigo 112, inciso I, do Código Penal não teria sido recepcionado pelo texto Constitucional de 1988. Com efeito, no ano de 2010 houve mudança legislativa no artigo 110 do Código Penal, tendo sido adotado o mesmo marco inicial da prescrição constante do artigo 112. Nesse quadro fica evidente que a fixação do trânsito em julgado para a acusação como marco inicial da prescrição da pretensão executória foi uma opção legislativa, sendo vedado ao Poder Judiciário alterar o seu conteúdo, excetuadas as hipóteses de reconhecimento de inconstitucionalidade da norma.

Assim, conclui-se:

1) não há dúvida a respeito do conteúdo da previsão contida no artigo 112 do Código Penal, o que torna vedada a interpretação;

2) ainda que houvesse dúvida acerca do conteúdo do texto legal, a interpretação da norma não poderia ser feita in malam partem, mas somente observando o princípio do favor rei.

E sobre os casos que estão em andamento enquanto a Suprema Corte não decide a matéria?

O artigo 112, inciso I, do Código Penal não foi declarado inconstitucional ainda e a matéria não foi decidida pelo E. Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, compete ao Poder Judiciário aplicar a lei em vigor, ou, nos termos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, "cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais" (artigo 35, I). Em outras palavras, enquanto a matéria não for decidida pela Suprema Corte, não cabe ao intérprete deixar de aplicar aquilo que está previsto em lei, ou seja, deve reconhecer a prescrição da pretensão executória nos termos do artigo 112 do Código Penal.

E na hipótese de o E. Supremo Tribunal Federal decidir pela sua inconstitucionalidade?

Nesse caso, tal decisão não poderá retroagir para atingir fatos pretéritos, sendo necessário, inclusive, a modulação de seus efeitos. Com efeito, redefinir os termos de uma norma penal equivale à edição de uma nova norma penal e, como tal, somente é aplicável aos fatos posteriores. Isso porque, pelos princípios da legalidade e da anterioridade da lei penal, novos regramentos penais que agravem a situação do acusado somente se aplicam a fatos posteriores, sob pena de violação aos princípios básicos do Estado de Direito.

O regramento sobre prescrição é um regramento clássico de Direito Penal, somente podendo ser aplicado para fatos posteriores à sua edição. A previsibilidade e segurança jurídica (artigo 5º, XXXVI, da CF/88) são institutos jurídicos dos quais não podemos abrir mão, sob pena do Direito transformar-se em mero arbítrio dos ocupantes do cargo do momento.

Autores

  • é advogado criminal e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Membro das comissões especiais de Processo Penal, de Direito Penal e de Política Criminal e Penitenciária da OAB-SP.

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