Improbidade em Debate

O início do julgamento do Tema 1.199 de repercussão geral

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12 de agosto de 2022, 16h09

Como amplamente noticiado, teve início o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Tema 1.199 de repercussão geral (ARE 843.989), no qual se discute a (ir)retroatividade das mudanças promovidas pela Lei nº 14.230/2021 em sede de improbidade administrativa, particularmente a eliminação da modalidade culposa e as regras de prescrição, geral e intercorrente.

De nossa parte, já registramos neste espaço reiteradamente nossa posição no sentido da retroatividade das normas benignas e de sua plena aplicabilidade em matéria de direito sancionador, conquanto reconheçamos que a discussão é rica e pródiga em argumentos de lado a lado. Sem embargo, nosso móvel neste escrito se prestará a tecer algumas considerações sobre as manifestações já ocorridas até o momento.

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À partida, cumpre-nos dizer que, diferentemente do que sustentamos em nosso último texto, a manifestação oral dos amici curiae poderia ter merecido divisão de tempo mais equilibrada. Isso porque, em nosso sentir, a o partilhar regimental haveria de observar não indistintamente o número de amici, como acabou ocorrendo, mas sim a paridade entre as duas posições defendidas: retroatividade e irretroatividade.

É dizer: do modo como se deu a dinâmica das sustentações, a tese a sustentar a retroatividade acabou por exceder a posição pela irretroatividade em dez minutos. De toda sorte, ainda que o ponto possa soar preciosismo, trata-se, em nosso sentir, de lacuna digna de atenção em casos vindouros.

No que toca ao teor das manifestações, pinçamos em particular o memorial apresentado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, que se fez acompanhar de estudo jurimétrico que avaliou o potencial impacto do julgamento sobre casos em curso e findos naquela unidade da Federação. Em primeiro lugar, louvamos a iniciativa, que em nossa visão bem ilustra o tipo de abordagem justificadora da figura do amicus curiae. Nada obstante, temos algumas ressalvas a respeito do conteúdo da peça em si.

É que, nos dizeres daquele órgão ministerial, teriam sido identificadas (1) 1.346 ações de improbidade transitadas em julgado, com decisões envolvendo perda de cargo e/ou suspensão de direitos políticos, (2) 8.130 ações, com acórdãos já prolatados e sem trânsito em julgado, e (3) 5.383 ações extintas ou arquivadas definitivamente, todas elas, nos dizeres do MP-SP, com potencial de serem atingidas pelas mudanças da nova lei.

Os números, todavia, e a nosso juízo, estariam superestimados. Isso porque — e sempre rememorando que o tema de repercussão geral se centrou na revogação de atos culposos e nas regras de prescrição — não houve, entre as 1.346 decisões transitadas, um recorte sobre em quantas delas a condenação teria se dado na modalidade culpa, sendo inverossímil que, feito esse filtro, se alcançassem cem por cento das condenações. Adicionalmente, a mesma omissão se deu quanto às 8.130 ações ainda em curso, com o agravante da ausência de uma cisão dos casos em que nem sequer haja condenação. Sobre as 5.383 ações extintas ou arquivadas, ademais, o relatório foi ainda mais lacônico, admitindo-se que o fundamento aqui haja sido processual e que, por isso, o potencial de atingimento pela nova lei na verdade seja zero.

Em resumo: em nosso sentir, mais adequado teria sido a indicação pelo MP-SP do número de condenações, transitadas ou não, por atos de improbidade culposos, o que talvez não revelasse um número tão expressivo. Seja como for, a ótica que adotamos é diversa: qualquer número a que se chegasse revelaria o quantitativo de pessoas que, a prevalecer a irretroatividade, se prestariam como mártires de um sacrifício da isonomia, eis que mereceriam destino diverso de agentes cujas condutas — pela diferença, às vezes, de dias — fossem posteriores à reforma.

Ainda além, ponto bastante interessante revelado pelo relatório apresentado pelo MP-SP residiu no tempo médio de tramitação das ações de improbidade em primeiro e segundo graus no estado de São Paulo, que, no ano de 2021, teria sido de 2,22 e 3,41 anos, respectivamente. O dado em questão é absolutamente relevante porque demonstra, ao menos pro futuro, a razoabilidade dos critérios legislativos adotados para a prescrição intercorrente: se a partir da "primeira" interrupção com o ajuizamento da ação o prazo recomeçaria da metade (quatro anos), podendo ser novamente interrompido quando de eventual condenação em primeiro grau, há notável equilíbrio quando se analisam dados do maior tribunal do país, a evidenciar que, de fato, lapsos temporais superiores àqueles estabelecidos pela reforma teriam o condão de converter-se em constrangimento ilegal e em afronta à razoável duração do processo. De todo modo, e ainda no ponto, o relatório acabou por não trazer, quanto a ações com trânsito ou ainda em curso, um aprofundamento da análise capaz de evidenciar, a partir das regras de interrupção, qual seria o potencial impacto da retroatividade das regras de prescrição intercorrente.

Dando prosseguimento em nosso exame, outro aspecto relevante dos debates se deu com o parecer apresentado pela Procuradoria-Geral da República, a concluir pela proposição da seguinte tese:

"I – As alterações do caput do art. 10 da LIA apenas explicitam a vedação à responsabilidade objetiva do agente, que, sistematicamente, sempre foi proibida no sistema brasileiro, o qual prossegue permitindo a punição a punição do erro grosseiro. II – Os novos prazos de prescrição geral e intercorrente previstos pela Lei 14.230/2021, para atos de improbidade administrativa cometidos antes da referida lei, somente são computados a partir da data de sua promulgação"

O que chamou nossa atenção foi uma aparente transcendência do tema afetado. Dito de outro modo, no item I, em lugar de opinar sobre a retroatividade ou não da revogação da modalidade culposa, a posição advogada se deu no sentido de defender a não eliminação da culpa, que seguiria sendo em tese possível sob a roupagem do erro grosseiro.

Do ponto de vista formal, a investida parece inusual porque representaria uma espécie de interpretação conforme jamais afetada como parte da discussão proposta como tema de repercussão geral, faltando com a necessária adstrição. Nada obstante, sob um prisma meritório, respeitosamente discordamos da posição por entender que a alteração não representaria inconstitucionalidade a justificar um desapreço pela opção legislativa, democraticamente legitimada, que passou a exigir de forma bastante contundente e reiterada como indispensável elemento subjetivo a atrair improbidade o dolo direto voltado à prática das ilicitudes tipificadas na lei — conquanto siga sendo possível, noutras searas, a apenação por erro grosseiro.

Passando aos votos já proferidos, principiamos, como é natural, pelo voto do relator, ministro Alexandre de Morais, que propôs a seguinte tese:

"1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA — a presença do elemento subjetivo — DOLO;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa –, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) Aplicam-se os princípios da não ultra-atividade e tempus regit actum aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude de sua revogação expressa pela Lei 14.230/2021; devendo o juízo competente analisar eventual má-fé ou dolo eventual por parte do agente.
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, em respeito ao ato jurídico perfeito e em observância aos princípios da segurança jurídica, do acesso à Justiça e da proteção da confiança, garantindo-se a plena eficácia dos atos praticados validamente antes da alteração legislativa."

Quanto ao item 1 da proposta, e na esteira da mudança legislativa, o voto conta com nossa plena concordância. Já o item 2 — bem assim o item 4 —, amparado em ampla fundamentação contida no voto, tem ele nossa sempre respeitosa dissonância, já externada a contento. Mas ainda assim uma ressalva adicional de nossa parte se impõe: a revogação da modalidade culposa, elementar subjetiva do tipo, implica, ao fim e ao cabo, uma abolitio que, numa analogia com a revisão criminal, justificaria a flexibilização da proteção à coisa julgada. Em outras palavras, se o inciso XXXVI do artigo 5º é regra, o inciso XL é exceção, centrando-se o debate em questão em saber se esse último se aplica à improbidade. Positiva a resposta, não vislumbramos a possibilidade de uma retroatividade "temperada" tal como proposta e está mais a assemelhar-se a uma modulação.

O item 3 da proposta, por seu turno, nos causa alguma preocupação. Conquanto pontue, na prática, a repercussão da revogação da modalidade culposa sobre os casos em curso, a ressalva sobre uma análise acerca de "eventual má-fé ou dolo eventual" pelo juízo inspira leituras repristinatórias da culpa grave e do dolo genérico, figuras extirpadas pela reforma.

Indo adiante, em seguida ao voto do ministro relator, abriu divergência o ministro André Mendonça, que propôs a seguinte tese:

"I) as alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 em relação ao elemento subjetivo apto a configurar o ato de improbidade administrativa, inclusive na modalidade do artigo 10 da LIA, aplicam-se aos processos em curso e aos fatos ainda não processados.
II) diante da proteção constitucional à coisa julgada, nos termos do art. 5º, XXXVI, da Carta de 1988, a aplicação da referida tese, quando cabível, aos processos já transitados em julgado, dependerá do manejo da respectiva ação rescisória, nos termos do art. 525, §§ 12 a 15 do CPC/2015.
III) as alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 em relação aos novos prazos de prescrição intercorrente aplicam-se de maneira imediata, inclusive aos processos em curso e aos fatos ainda não processados, tendo como termo inicial, nestes casos, a data de entrada em vigor da inovação legislativa;
IV) o novo prazo de prescrição geral tem aplicação imediata, inclusive aos processos em curso e aos fatos ainda não processados, devendo ser computado, contudo, o decurso do tempo já transcorrido durante a vigência da norma anterior, estando o novo prazo limitado ao tempo restante do lustro pretérito, quando mais reduzido em relação ao novo regramento."

Como já pudemos sustentar, a proposta acima, em sua essência, converge quase que integralmente com o nosso modo de enxergar a questão, merecendo nosso aplauso em especial no que toca à opção pela rescisória como solução intermediária a assegurar a retroatividade inclusive quanto a casos já definitivamente julgados, mas sem descurar da proteção à coisa julgada.

Acerca do item IV da proposta, particularmente, em que pese o encadeamento entre fundamentação e conclusão possa desafiar a adequada compreensão à primeira vista, nosso entendimento foi o de que, a despeito da menção à aplicação imediata do novo prazo de prescrição geral, na prática a proposta se deu, a rigor, no sentido de sua irretroatividade — na medida em que implica uma majoração, sendo por isso maléfica ao réu.

Mais bem explicando, em se tratando de fatos anteriores à sobrevinda da reforma, e independentemente de o possível prazo computado sob a vigência da regra anterior montar em um dia ou em quatro anos, fato é que a incidência da nova regra de oito anos ficaria limitada ao prazo quinquenal pretérito, de sorte que o efeito prático da proposta é o de impedir, com o que concordamos, a retroatividade da majoração do prazo geral.

Em suma, enfim, e a bem de alguma didática, a proposta contida no voto do ministro André Mendonça, em nossa leitura, teria a seguinte aplicação prática em situações hipotéticas:

(1) em processos em curso em primeiro grau, nos quais ainda pendente sentença, o prazo de quatro anos resultante do reinício da contagem prescrição pela metade se daria a partir da entrada em vigor da Lei nº 14.230/2021, ou seja, 26/10/2021;

(2) em processos em sede recursal, não relevaria o teor das decisões precedentes, se condenatórias ou não, eis que o início da recontagem, pela metade, do prazo prescricional se daria, de todo modo, a partir da entrada em vigor da Lei nº 14.230/2021, ou seja, 26/10/2021; e

(3) fatos pretéritos à sobrevinda da reforma, processados ou não, observariam a prescrição geral quinquenal; e

(4) fatos posteriores à sobrevinda da reforma, processados ou não, observariam o novel prazo de oito anos para prescrição geral.

No mais, a conferir os votos que virão…

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