Opinião

Crime continuado: problemas e soluções

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11 de agosto de 2022, 7h04

O artigo 71 do Código Penal estabelece que "[q]uando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços".

O preceito encerra os requisitos para a admissão da continuidade delitiva ou crime continuado. Antes de mais, devemos dizer que no tocante ao crime continuado, o Brasil adotou a teoria objetiva, que preconiza para a sua caracterização a presença de todos os requisitos presentes no dispositivo legal, considerando-os puramente objetivos [1].

Primeiro requisito: a necessidade de que de uma única ação ou omissão decorram dois ou mais crimes da mesma espécie. Crimes da mesma espécie seriam os que possuem a mesma tipificação, sendo desimportante qualquer forma derivativa, simples, privilegiados ou qualificados, tentados ou consumados [2]. É o pensar que prevalece na doutrina e na jurisprudência nacionais. Não é o nosso.

O direito penal tem na linguagem o limite do exercício da competência punitiva [3]. A lei penal não estabeleceu essa hermética. Mesma espécie deve significar mesma natureza. Igual conceito encontra-se na definição de reincidente específico [CP, artigo 83, V  livramento condicional; Lei Federal 7.210/1984, artigo 112  progressão de regime].

O critério aceito, portanto, é o da mesma natureza. Tratando-se de direito penal do fato, democrático e permeado de garantias constitucionais, crimes da mesma espécie são os crimes de agridem o mesmo bem jurídico, são crimes relacionais, próximos. O próprio preceito do artigo 71 do Código Penal assim determina, quando salienta o critério de exasperação: "aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços".

Penas diversas indiciam crimes diversos, que, por sua vez, afasta completamente a ideia de identidade matemática de crimes, máxime porque mesma espécie e penas idênticas encontram-se no mesmo preceito legal. É preciso perceber isso. Tomemos por exemplo, guardadas as devidas proporções, o que diz o artigo 85 do Código Civil [Lei Federal 10.406/2002], quando estabelece a fungibilidade de bens: são fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Igual regramento encontra-se presente no artigo 784, parágrafo único, e artigo 1.446, do mesmo diploma.

Não são despiciendas as considerações maiores a respeito do direito penal do fato. As raízes são sólidas. É inaceitável adotar regime exclusivo, contra a letra da norma jurídica. O regime é o constitucional, é de inclusão de garantias. É de se dizer, sim, alto e bom som, que a Constituição é norma que a todos colhe, não escolhe. Dizia corretamente Roberto Lyra que ninguém poderá ser indiferente ao direito penal pelo endereço [4]. Se a lei não diz expressamente que a punibilidade do autor do fato-crime está atrelada ao cometimento de crimes idênticos, não se revela possível que o intérprete assim escolha, porque enfraquece norma de garantia, que é a fisiologia do crime continuado.

Dessa forma, não há razão para afastar o preceito dos casos de furto e estelionato ou deste ou daquele de furto de coisa comum. É por essa premissa mesma, de ofensa ao mesmo bem jurídico, que se deve permitir a continuidade entre furto e roubo, pois ainda que pertencentes a tipos penais diversos, produzem lesão ao patrimônio.

Segundo requisito: que os crimes tenham sido cometidos nas mesmas condições de tempo. Prevalece o entendimento de que o intervalo seria de no máximo trinta dias [STF, HCs 107636, 69896 e 62.451]. Parece razoável considerar uma escala temporal, todavia, não parece proporcional a adoção do número rígido, sem a possibilidade de ponderações, dado que o casuísmo é próprio do direito penal. Aqui, as condições semelhantes de tempo devem ser aceitas com elasticidade no exame de cada caso, a orientar que a questão matemática (trinta dias) pode ser superada para reconhecimento da continuidade delitiva.

No entanto, sob pena de cairmos em contradição, deve ser apresentada uma saída ao problema da rigidez do tempo. Abramos a ideia para o ladrão em série. Suponhamos agora que o autor cometa dez crimes de roubo. A sequência, a partir do terceiro, ultrapassa o limite de trinta dias, por razões de estratégia criminosa, plano de ação comum, escolha de pontos diversos, bairros distintos, levando, ele, o autor, a dinâmica das vítimas, com menor incidência do aparato policial. Não nos é razoável supor que a extrapolação dos trinta dias deva servir isoladamente como fiel para afastar a incidência da continuidade delitiva, porque, nesta hipótese, nos parece claro que a modulação temporal se deu  exclusivamente  em decorrência da estratégia criminosa, preenchendo o requisito do artigo 71 do Código Penal.

Terceiro requisito: que os crimes tenham sido praticados nas mesmas condições de lugar. Este item, ou requisito, vem pouco trabalhado em doutrina. O raciocínio é igual. A lei penal não diz que os crimes devem ser cometidos com identidade de lugar, um lugar específico, desde que eles guardem entre si uma ordem lógica. Já se viu aqui que não concordamos com a hermética que provoca a exclusão de direitos e/ou garantias. O regime é inclusivo. E neste requisito não se fazem ricos e suficientes os pronunciamentos judiciais a respeito da rigidez da identidade do lugar. Tampouco a doutrina que a defende. Miudemos a questão.

Consideramos o crime continuado um direito da pessoa humana. Embora à pena seja acrescida fração, tal glosa não satisfaz a ontologia de uma causa de aumento. Demais, funciona a rigor como causa de atenuação da responsabilidade criminal, daí que a tese doutrinal predominante seja a da ficção jurídica. Nesse sentido, são preciosas as lições de Zaffaroni e Pierangeli, quando dizem que o crime continuado busca estabelecer uma atenuação nos casos de menor culpabilidade, por causa da unidade ou condições objetivas, que fundamentam o juízo de culpabilidade [5].

A ideia de mesmas condições de lugar deve encerrar a de crimes praticados na mesma rua, mesmo bairro, mesma cidade ou até mesmo em cidades limítrofes? Parece que sim, ao menos a questão deve se ater ao limite. Limite territorial das ações delitivas, sempre com olhos voltados à razão única de existência do artigo 71 do Código Penal, que, como dito acima, é de a de atenuação da responsabilidade criminal, amenizando a figura jurídica do concurso material.

Não nos parece adequada a ideia da limitação entre cidades, ou seja, o parâmetro espacial máximo de cidades contiguas. Fundada na estratégia, plano de ação comum, fatos delitivos podem ser desenvolvidos entre cidades de estados diversos, contíguos ou não. Nada mais perigoso do que excluir normas inclusivas. Imaginemos o caso do crime de tráfico ilícito de drogas [artigo 33 da Lei Federal 11.343/2006]: o cidadão é processado e condenado criminalmente por três fatos distintos, mas nas mesmas circunstâncias de lugar: a rodovia Rio-Santos, porque escolhido esse caminho para escoar cocaína. O primeiro fato-crime consumou-se na cidade de Angra dos Reis (RJ); o segundo em Sebastião (SP); o terceiro em Santos. Angra a São Sebastiã são 238,4 km, até Santos, mais 161 km. Trata-se apenas de um exemplo, que não exclui outros, com variação de distância, como ocorre, por exemplo, nas rodovias federais.

Exemplo interessante, dentro da perspectiva do crime de tráfico ilícito de drogas, é o da BR-163, que corta o Brasil, começando em Oriximiná (PA) [extremo norte] e terminando em Tenente Portela (RS) [extremo sul]. Imaginemos, novamente. Não mais três, mas seis ações penais pelo cometimento de tipos penais do artigo 33 da Lei Federal 11.343/2006 [consumação de seis crimes praticados na mesma rodovia federal, mas em cidades totalmente distintas, em estados distintos].

Qualifica-se ainda mais o exemplo: primeiro crime praticado em Oriximiná, com apreensão de drogas; o segundo em Cuiabá; o terceiro em Campo Grande (MS); o quarto em Cascavel (PR); o quinto em São Miguel do Oeste (SC); o sexto em Tenente Portela (RS).

Percebamos, então, o rigor da discussão. A estratégia delitiva liga-se propriamente ao conceito de culpabilidade, vetor que deve ser levado em consideração para a aceitação do crime continuado, porque os caracteres assim estão dispostos pelo artigo 71 do Código Penal. A BR-163 possui mais de três mil quilômetros de extensão. A nosso ver, em termos técnicos, considerando o preceito como lei inclusiva, de atenuação da responsabilidade criminal, não há razão para afastar a incidência do crime continuado no exemplo acima referenciado, porque presentes os requisitos. Naturalmente!

A este problema, das mesmas condições de lugar [que, já se disse, não se qualifica como identidade de lugar, mesmo lugar], liga-se o da possibilidade da aplicação do crime continuado em execução criminal, pelo Juízo das Execuções Criminais. À questão acima: imaginemos que o caso tenha sido julgado por seis juízos distintos, mas reunidos para fins de execução da sanção criminal, fixada, em cada ação, em cinco anos de reclusão. Teremos uma execução de 30 anos? Ou poderemos  em execução criminal — aplicar a norma prevista pelo artigo 71 do Código Penal? As respostas, a nosso ver, são não e sim. A rigor, os processos deveriam ser reunidos, sendo competente o juízo que primeiro proferisse ato decisório [CPP, artigo 83]. Essa seria a providência ideal. No entanto, o juízo das execuções criminais não pode se furtar da regra do crime continuado, sob pena de violação de princípio basilar do regime de direito penal, que é a culpabilidade, possibilitando apreciar os requisitos do crime em continuidade [CP, artigo 71].

O exemplo descrito acima não é uma simples enunciação. Acontece. Presentes os requisitos do crime continuado, ainda que os casos criminais já estejam julgados, com trânsito em julgado, devem receber o mesmo tratamento quando pendentes, devendo ser reunidos e novamente julgados, dentro da perspectiva da execução, que importa em novo cálculo da sanção criminal e, sobretudo, a determinação do regime de cumprimento [CPP, artigo 82 c/c Lei Federal 7.210/1984, artigo 111 c/c STJ, Súmula 83]. Assim, no exemplo posto, retratado plano de ação comum, existindo relação de contexto entre o primeiro crime de tráfico e os subsequentes, sobram razões para a incidência do artigo 71 do Código Penal, tomando apenas uma sanção [cinco anos], o juízo das execuções criminais, na competência do artigo 66, III, "a", da Lei Federal 7.210/1984 [cinco anos], fazendo-lhe acrescer a glosa do artigo 71 do Código Penal [um sexto a dois terços]. Nesse sentido é a recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

"AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONTINUIDADE DELITIVA. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO NA EXECUÇÃO PENAL APENAS EM RELAÇÃO A PROCESSOS DISTINTOS, QUE TRAMITARAM SEPARADAMENTE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. É possível, na fase da execução, a unificação das penas aplicadas em processos diferentes, que tramitaram em distintas competências, pelo reconhecimento da continuidade delitiva. Entretanto, se na mesma sentença o réu foi condenado por dois ou mais crimes, em concurso material ou formal, não cabe ao Juiz das Execuções reexaminar e alterar o título definitivo para identificar a ficção jurídica do delito único (artigo 71 do CP), sob pena de ofensa à coisa julgada.
2. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 1.422.493/DF, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 11/5/2021, DJe de 21/5/2021)".

Em seu voto, o ministro Schietti: "[a] continuidade delitiva passível de ser decidida na fase da execução é somente aquela relacionada a processos diferentes, que tramitaram em distintas competências, quando os juízes de conhecimento que prolataram duas ou mais sentenças condenatórias não examinaram e rechaçaram a tese de eventual encadeamento de condutas ilícitas".

Quarto requisito: que o modo de execução dos crimes seja semelhante. Ou seja, semelhança do modus operandi do agente ou do grupo criminoso. O Código Penal é claro ao sustentar que deverá haver semelhança na maneira de execução e não identidade ao realizar a conduta. Não faz sentido desconsiderar o critério da continuidade delitiva, contando como variação do modus operandi, a diversidade de parceiros de crime, por exemplo. Dessa forma, deve ser aplicado o artigo 71 do Código Penal, na estrita exigência da semelhança da maneira da execução do crime.

Quinto requisito: que os crimes subsequentes sejam tidos como continuação do primeiro. O legislador exige que as ações subsequentes devam ser tidas como desdobramento lógico da primeira, demonstrando a existência da denominada unidade de desígnios. É a estratégia criminosa, o plano de ação comum. Dito de outro modo, para que haja a caracterização do crime continuado, é necessário que as ações isoladas se apresentem enlaçadas ou de alguma forma ligadas às condutas primitivas [devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro  artigo 71].

O entendimento no sentido da exigência de elementos subjetivos deve ser visto como uma interpretação contra legis. Isto porque o Código Penal brasileiro adota, como já mencionado, apenas critérios objetivos  adoção da teoria objetiva — para caracterização do crime continuado. É dizer, preenchidos os requisitos do artigo 71, do Código Penal, há de se reconhecer a continuidade delitiva, independentemente da análise de elementos de ordem subjetiva, visto que a interpretação dada pelo autor não é determinante segundo do Código Penal para o reconhecimento da fictio juris em estudo.

Não se pode perder de vista que o instituto do crime continuado é modalidade de concreção da garantia constitucional de individualização da pena e considerado benefício de política criminal a permitir a atenuação da sanção criminal para aqueles que praticam crimes da mesma espécie nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar de execução.


[1] No mesmo entendimento ver: PACELLI, Eugênio. Manual de Direito Penal. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 414.

[2] SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença Penal Condenatória: Teoria e Prática. 13ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 315.

[3] Direito penal da perseguição: a incoerência da interrupção da prescrição criminal diante de acórdão que confirma a condenação penal. Faria, Fernando Cesar de Oliveira; Nunes, Filipe Maia Broeto. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 21, nº 121, p. 75-98, abr./maio 2020.

[4] LYRA, Roberto. Nôvo direito penal. Volume I. Rio de Janeiro, Editor Borsoi, 1972, p. 19.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 626.

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