Opinião

Defensoria Pública e indisponibilidade de defesa no processo penal

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10 de agosto de 2022, 7h04

"O primeiro advogado que iria assumir desistiu. Como é um processo penal, ele precisa de um advogado e, então, a Defensoria Pública vai cuidar do caso" [1] é a informação do caso do médico acusado de cometer violência sexual durante um parto.

De fato, é natural que alguns advogados não tenham interesse em defender uma pessoa que está sendo processada por um crime sexual de grande repercussão, pois é possível que o valor a ser recebido a título de honorários não compense a publicidade negativa que uma atuação pode vir a gerar.

A dúvida que surge é: uma Defensora Pública ou um defensor público pode se negar a atuar na mesma situação?

A resposta ao questionamento acima é o que se pretende analisar no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e descritiva.

1. Da autonomia funcional do defensor público
O inciso I do artigo 43, o Inciso I do artigo 89 e o Inciso I do artigo 127, todos da Lei Complementar número 80/94, preveem a independência funcional, respectivamente, do defensor público federal, do defensor público distrital e do defensor público estadual, estando os mesmos atrelados, tão-somente, aos mandamentos da Constituição, das leis, bem como às suas consciências.

Por outro lado, o artigo 44, XII, da Lei Complementar 80/94 (dispositivo referente à Defensoria Pública da União (DPU), com redação repetida no inciso XII do artigo 89 e VII do artigo 128, referentes respectivamente às Defensorias distrital e estaduais) prevê o seguinte:

"Art. 44. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União:
XII – deixar de patrocinar ação, quando ela for manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses da parte sob seu patrocínio, comunicando o fato ao Defensor Público­Geral, com as razões de seu proceder;"

Desse modo, com base em sua independência funcional, pode a Defensoria Pública deixar de patrocinar ações em duas situações, conforme será analisado a partir de agora.

Quanto à primeira delas, ser manifestamente incabível, o defensor público federal Frederico Rodrigues Viana de Lima comenta o seguinte:

"Na primeira hipótese, evita-se que se ingresse desnecessariamente com demanda da qual se sabe, de antemão, que culminará com resultado infrutífero. Inibem-se pretensões aventureiras e infundadas, e que, em última análise, poderiam conduzir a litigância de má fé" [2]

Assiste razão ao doutrinador acima mencionado, não entrar com a ação em casos infundados é uma das mais brilhantes formas de colaborar com o acesso à justiça.

As vantagens para o assistido são evidentes: evita-se a criação de falsas esperanças e o risco de uma condenação pecuniária por litigância de má-fé. As vantagens para a sociedade são tão importantes quanto: diminui-se o número de ações e, em consequência, o excessivo volume de trabalho das varas judiciais.

No entanto, é importante frisar não ser possível deixar de entrar com a demanda judicial em face de mera dúvida quanto ao direito do assistido, pois não tem o referido profissional o poder de dirimir dúvidas, ou seja: de dizer o direito(jurisdição). Em verdade, deve existir convicção quanto à inviabilidade da pretensão. Nesse sentido, afirma o defensor público estadual do Rio de Janeiro e professor Cleber Francisco Alves:

"De acordo com as normas legais vigentes no Brasil, somente em casos, digamos, 'teratológicos' será possível ao defensor público recusar-se a prestar a assistência jurídica — e consequentemente deixar de propor medida judicial pretendida — que lhe seja solicitada por um cidadão que se qualifique pessoalmente como destinatário do serviço" [3].

A segunda hipótese legal onde há permissão para a não propositura de demanda judicial, quando solicitada, é na hipótese de ela ser inconveniente ao interesse da parte. Aqui a importância da "não atuação" da Defensoria Pública é também de grande relevância. O termo está entre aspas por um único motivo: em verdade, a defensora ou defensor público não está postulando em juízo, porém está atuando de forma a proteger o próprio assistido, como, por exemplo, quando esse último pretende renunciar a um direito indisponível.

Além disso, a segunda hipótese também colabora com a diminuição do número de demandas perante o Poder Judiciário e, em consequência, com toda a sociedade, pois os demais litigantes, os que necessariamente ou preferencialmente procuram o referido poder, poderão usufruir das benesses inerentes a menos feitos.

Em suma, não há como a defensora ou o defensor agir de forma arbitrária ou macular um erro profissional (como perder um prazo) quando não entrar com determinada demanda, haja vista a obrigatoriedade de comunicar, de forma fundamentada, ao defensor público-geral a sua decisão.

A medida acima mencionada não diminui a autonomia funcional da defensora ou do defensor público, em face da impossibilidade de o defensor-geral obrigar a patrocinar a ação, porém traz a garantia para o assistido pelo órgão defensorial da lisura do procedimento adotado e do grau de comprometimento do profissional com o seu labor social.

Entretanto, as questões abordas até aqui se referem a direitos disponíveis. Seria a mesma lógica aplicada ao Direito Penal? A Defensoria Pública pode se recusar a defender alguém em um processo penal? É o que passaremos a analisar no próximo tópico.

2. A defesa no âmbito penal
Na seara penal, assim como acontece, como regra, no âmbito civil e diferentemente do que acontece na justiça laboral, a defesa só pode ser realizada por uma advogada ou advogado ou por uma defensora pública ou defensor público, não possuindo as partes capacidade postulatória. Cabe aos membros e membras da Defensoria Pública prestarem a assistência jurídica gratuita no âmbito criminal.

A peculiaridade no presente caso é que no processo penal brasileiro o direito de defesa é indisponível, não havendo o que se falar em efeitos da revelia, conforme norma que se extrai do artigo 261 do Código de Processo Penal, in verbis: "Art. 261. Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor".

Nesse sentido, afirma Tourinho Filho:

"Aliás, em todo processo de tipo acusatório, como o nosso, vigora esse princípio, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa em relação à qual se propõe a ação penal, goza de direito 'primário e absoluto' da defesa. O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la, evitando, assim, possa ser condenado sem ser ouvido" [4]. (Grifos do autor)

O STF, por seu turno, editou a Súmula 523 com o seguinte teor: "No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova do prejuízo para o réu".

Frise-se, ainda, que o entendimento agora exposto decorre também do previsto no Pacto de San Jose da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992, ao afirmar ser "direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor".

Desse modo, caso a parte intimada não ofereça defesa em um processo penal ou simplesmente não constitua uma advogada ou um advogado, caberá à Defensoria Pública, independentemente da condição econômica do réu, apresentar a defesa cabível, sob pena de nulidade, garantindo, assim, o contraditório e a ampla defesa, que são princípio constitucionais [5].

Conclusão
É completamente compreensível que advogadas e advogados da área penal optem por não aceitar uma causa em face do apelo midiático negativo que ela possa vir a causar, tal como também devemos aceitar quem opta por defender a pessoa acusada do crime mais cruel, pois contraditório e a ampla defesa são direitos fundamentais de todas e todos.

Entretanto, a referida escolha não existe para quem integra a Defensoria Pública, pois o direito de defesa penal no Brasil é indisponível. Assim, toda pessoa que responde por um crime e que não tem advogada e advogado será necessariamente defendida pela Defensoria Pública.

Por pior que seja o crime, uma pessoa só pode ser condenada por meio de um processo justo e regular, o que inclui no Brasil necessariamente a existência de uma defesa técnica.

No mais, integrar a Defensoria Pública é seguir uma carreira belíssima, mas que tem alguns ônus, dentre os quais está justamente defender as pessoas que não querem ser defendidas por mais ninguém.

REFERÊNCIAS
ALVES, Cleber Francisco Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2006.

DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito processual constitucional. São Paulo: Atlas, 2009.

LIMA, Frederico Rodrigues Viana de. Defensoria Pública. Salvador: JusPodivm, 2010.p.360.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

 


[2] LIMA, Frederico Rodrigues Viana de. Defensoria Pública. Salvador: JusPodivm, 2010.p.360.

[3] ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.p.272.

[4] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.p.23.

[5] DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito processual constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p.33-35.

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