Opinião

Da impossibilidade de desclassificação do estupro de vulnerável

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7 de agosto de 2022, 13h28

No final de 2021, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da 3ª Seção, já havia afetado quatro processos com o objetivo de fixar tese, em recursos repetitivos, sobre a (im)possibilidade de se desclassificar o crime de estupro de vulnerável para o delito de importunação sexual [1].

O fato é que em 20 de julho de 2020 a 3ª Seção (sob o rito dos recursos repetitivos — Tema 1.121), fixou a seguinte tese:

"Presente o dolo específico de satisfazer a lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal – CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a sua desclassificação para o delito de importunação sexual" (artigo 215-A do CP) [2].

Nesse passo, há tempos tem-se articulado que os juristas devem realizar uma espécie de constrangimento epistemológico (STRECK) diante de julgados que de alguma forma contraíram o ordenamento jurídico, afinal, como disse Ronald Dorwkin "A doutrina é a parte geral da jurisdição, o prólogo silencioso de qualquer veredito" [3].

Não obstante, é válido apontar quando há acertos por parte dos Tribunais Superiores.

De início, é preciso ressaltar que a questão julgada pelo Tribunal da Cidadania seria facilmente solucionada pela teoria do direito, aplicando-se o critério da lex specialis derogat generali. Isso porque, o artigo 217-A possui um elemento especial (menor de 14 anos), de modo que o artigo 215-A deveria ser aplicado de forma subsidiária.

É cediço, porém, que a aplicação deste critério não afastaria o artigo 215-A [4], pois, conforme lição de Noberto Bobbio [5], o critério da especialidade não elimina a norma geral, mas apenas a derroga naquilo que é incompatível com a lei especial.

Desse modo, a referida "celeuma" estaria resolvida com uma simples aplicação do princípio da especialidade. O Superior Tribunal de Justiça, enquanto autoridade constitucional para interpretar a lei federal, poderia ter cessado a questão apenas com o supracitado critério.

No entanto, há uma tendência, quase uma "fixação jurídica", em transformar casos fáceis em casos difíceis. Tomando emprestado o termo do professor Oscar Vilhena, houve uma "hiperconstitucionalização" da questão [6].

De todo modo, todos os argumentos levantados pelo Superior Tribunal de Justiça merecem ser analisados, não só por amor a prolixidade, mas por elucidar questões óbvias para alguns e não tão evidentes para outros.

Dentre os vários argumentos destacados, em especial no voto do ministro-relator Ribeiro Dantas, há que analisar de forma conjunta dois deles: 1) a normatividade da Constituição no que diz respeito aos crimes contra crianças e adolescente; e 2) a escolha do legislador do critério biológico "menor 14 anos". Vejamos.

Como se sabe, a Constituição elenca modos de agir na tutela penal dos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescente. Por sua vez, o Congresso Nacional, como parte dos poderes da república, tem a obrigação de confeccionar estes tipos penais, com a liberdade constitucionalmente adequada.

Nesse diapasão, o Poder Legislativo, por meio do artigo 217-A, exercendo sua competência constitucional, positivou o estupro de vulnerável como sendo o seguinte tipo penal: "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos".

Dispõe a Carta Política Fundamental:

"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(…)
§ 4º. A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente."

Por oportuno, Martha Toledo Machado [7] traz a ideia de jurisdicionalidade protetiva, aplicável perfeitamente ao julgado em comento: "(…) veja-se que o artigo 227, caput, da Constituição Federal impõe ao Estado, um dever de proteção integral aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes (…) Quais sejam os exatos contornos desta jurisdicionalidade protetiva no campo dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes é, em certa medida, uma questão de valor. Mas em boa medida, é uma questão estritamente jurídica, posto que amplo espectro da questão de valor vem predefinido pela opção axiológica do Constituinte e do legislador ordinário".

Assim, a partir do momento em que o legislador confecciona o tipo penal, a questão deixa de ser valorativa e passa a ser jurídica. A ideia da jurisdicionalidade protetiva fundamenta-se no parâmetro autorizado pelo constituinte originário.

Não defendemos, por óbvio, a existência de comprometimento (político) do magistrado com a segurança pública. Mas, estabelecido o parâmetro normativo para a aplicação da norma, levando-se em conta os preceitos constitucionais, não pode o magistrado sucumbir ao "canto das sereias" [8], sob pena de praticar atos inconstitucionais.

Diante das mudanças sociais e culturais, o critério biológico "menor de 14 anos", foi a melhor escolha? Sinceramente, não sabemos. Todavia, não é papel do promotor de justiça ou do juiz de direito, pautados numa valoração de gradação dos fatos, "desclassificar" o estupro de vulnerável como sendo importunação sexual.

Assim, considerando a opção do legislador, fundamentada pautada na liberdade conferida pela própria Constituição, não é possível se utilizar de opiniões pessoais sobre política criminal como parâmetro para interpretação da lei penal.

Outrossim, não é exagero afirmar, partindo das ideias de mandamentos de criminalização [9] e do princípio da proteção deficiente/insuficiente (Übermassverbot) [10], que o Estado brasileiro criou uma normatividade de proteção na hipótese dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes.

É possível questionar se o critério utilizado pelo legislador foi o adequado, mas este debate deve ser feito, única e exclusivamente, fora dos autos. A celeuma é muito complexa e interdisciplinar, imperiosa, portanto, sua análise no âmbito da política e de outras áreas, tal como a psicologia.

O próprio Ribeiro Dantas, ministro relator, discorda da opção do legislador, já que, caso houvesse a possibilidade de gradação do contato físico, poder-se-ia penalizar a conduta de forma mais adequada.

Entretanto, como bem ressaltou o relator, a opção — critério político, autorizado na Constituição — do legislador não foi essa, sendo "pela absoluta intolerância com atos de conotação sexual com pessoas menores de 14 anos, ainda que superficiais e não invasivos".

Por fim, mas para começo de outra possível reflexão, é digno de nota que a aplicação do princípio da proporcionalidade não pode solucionar tal questão. Eventuais disfuncionalidades (gradação do contato físico), devem ser consideradas na aplicação da pena, mas, conforme dito, jamais servir de base para suscitar desclassificação em outro delito.

Em verdade, nesses casos, a aplicação da proporcionalidade acaba sendo a preponderância de opiniões pessoais sobre eventual disfuncionalidade normativa, em evidente afronta a escolha do poder legislativo.

Não negamos o fato de que a forma como o legislador tratou a questão pode gerar disparidades gritantes. No entanto, conforme dito, só há espaço, para o magistrado, para gradação das condutas no momento da aplicação da pena.

Impossível, com todas essas ponderações, não rememorar a célebre fala do ministro da Suprema Corte americana, Antonin Scalia: "stupid, but constitutional" (estúpido, mas constitucional).

O Superior Tribunal de Justiça acertou.


[3] DWORKIN, Ronald. M., O Império do Direito. São Paulo, Martins Fontes. 1999, p. 113.

[5] BOBBIO, Noberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: UNB. 1995, p, 96

[6] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de Direito GV, jul-dez, p. 441-464. São Paulo: 2008, p. 443.

[7]TOLEDO, Marta Machado. Proibição de excesso e proteção insuficiente no direito penal: a hipótese dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes. São Paulo: Verbatim. 2008, p. 263.

[8] Na obra Odisseia, de Homero, o personagem Ulisses – sabendo de que durante a navegação, num determinado trecho da viagem, enfrentaria o canto sedutor das sereias, o que poderia submeter toda a tripulação em risco -ordena a tropa que lhe amarre-o ao mastro do navio e tapem seus ouvidos. Determina, ainda, que só poderia ser libertado, após estar fora do alcance do canto das sereias. Esta metáfora é recorrente no Direito Constitucional, onde a Constituição é empregada como uma espécie de antídoto as tentações. A partir desta ideia, o filósofo Jon Elster, desenvolveu a ideia do pré-compromisso constitucional, onde a Constituição fixa os limites ao poder político, para que não ocorra "paixões ocasionais" que levariam ao "naufrágio institucional".

 

[9] Neste sentido: "Mandatos Constitucionais de Criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote)" STF – HABEAS CORPUS 104.410 RIO GRANDE DO SUL.

[10] No Brasil o debate sobre o tema iniciou-se em meados de 2003, entre os professores Lenio Streck, Luciano Feldens e Ingo Sarlet. Neste sentido, destacamos: FELDENS, Luciano A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais, Ed. Livraria do Advogado, 2ª ed, 2012.

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