Embargos Culturais

"Documentos Cariocas": Ruy Castro e a magia dos sebos

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

7 de agosto de 2022, 8h02

Na coleção "Documentos Cariocas", iniciativa do Arquivo Geral do Rio de Janeiro, há entrevista de Ruy Castro, reconhecido como o "biógrafo da cidade". Ruy Castro oferece-nos uma bem documentada e profunda história do Rio em livros como "Metrópole à Beira-Mar", "Ela é Carioca", "Chega de Saudade", "A Noite do Meu Bem". Também é autor de importantes biografias de Nelson Rodrigues, Carmen Miranda e Garrincha. Ruy Castro é um dos renovadores do gênero biográfico no Brasil, ao lado de Lira Neto, Jorge Caldeira e Fernando Moraes.

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Ruy Castro conta ao entrevistador um pouco de sua fascinação em viver o passado nas pesquisas que faz, especialmente na cidade que tanto conhece. Formado em Ciências Sociais, nunca buscou o diploma. Dedicou-se ao jornalismo e mais tarde ao dificílimo ofício de escrever. Explica-nos com clareza o tema da transferência da capital do Rio para Brasília, e a resistência natural dos servidores públicos federais à época.

Conta-nos que as muitas embaixadas se deslocaram para Brasília, como um meio de proteção contra sequestros, no fim dos anos 60. Tem reservas para com a obsessão paulistana na Semana de 22, lembrando que o modernismo era na essência uma perspectiva substancialmente carioca. Foi corajoso. E acho que Ruy Castro tem razão.

Ao longo da entrevista Ruy Castro faz interessantes referências aos sebos do Rio de Janeiro. É um tema encantador. Nessa parte revela-nos o encanto que os sebos exercem sobre sua personalidade. Para Ruy Castro os sebos são ambientes cercados de amor. São livros salvos do desprezo: não foram jogados fora. Ruy Castro fala então de livros que continuam a ser amados. Diz que gosta do cheiro de livros antigos. Conhece os ácaros, lidando com espirros. Fez uma lista de sebos que conheceu.

Sebos são lugares especiais. Carlos Drummond de Andrade também os adorava. Segundo Drummond os sebos foram "cedendo lugar a lojas sofisticadas, onde o livro é exposto como artigo de moda, e há volumes mais chamativos do que as mais doidas gravatas, antes objeto de decoração de interior, do que de leitura". No sebo, de acordo com Drummond, realizamos operações de resgate, encontrando livros que um dia presenteamos, que nunca encontramos, que perdemos, ou que esquecemos em algum lugar. Para Drummond, esse resgate é uma operação cheia de ternura.

Essa mesma ternura é revelada em Ruy Castro. E é de todos nós que amamos os livros. Há muitos anos um colega de magistério me dizia que intelectuais são aqueles que gostam de livros antigos. Tinha razão. Já paramos para contar a quantidade de livros de segundo mão que temos em nossas bibliotecas? Há, infelizmente, alguns sebos abomináveis, cujos donos confundem livros antigos com livros velhos. Um amontoado de livros velhos não é um sebo. Um sebo é um conjunto de livros queridos, sempre à espera de quem os leia.

A crise dos dias de hoje tem mudado essa perspectiva. Há filas de vendedores em sebos, para quem a venda de livros significa uma ajuda. É uma situação constrangedora. Um tópico à espera de uma análise mais séria. Falemos de coisas boas.

Eu me fascino com dedicatórias que vejo (e que fotografo) nos livros que contemplo nos sebos. São pais e mães apostando na cultura dos filhos, são filhos retornando a ternura de pais e mães, são namorados e namoradas apaixonadas que circulam livros como pontes de amor, são autores à busca de leitores e de amigos. Dia desses, vi um livro meu, que dei a uma colega, todinho na estante à espera de um comprador. Quase fiz como Drummond, que teria vivido a mesma situação, e que comprou o livro que havia presenteado a um amigo, renovando a dedicatória, e insistindo que o amigo recebesse o livro de novo. Não tive coragem.

A opção de muitos pelos livros eletrônicos também contribuiu para o ocaso das livrarias. No Rio de Janeiro, por exemplo, creio que não há qualquer vestígio do que foram a Livraria Carioca, a Garnier, a Vozes (da Senador Dantas com a Almirante Barroso), a Francisco Alves da Rua do Ouvidor (que creio havia até os anos 70), a José Olympio, a Civilização Brasileira, a Laemmert, a Francisco Alves. Pena.

Nos sebos, no entanto, ainda quem sabe descansam livros que um dia descansaram nessas livrarias gloriosas do passado, de um tempo que já não volta, por mais que queiramos.

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