Opinião

Obrigação de gravar tratativas de colaboração e efeitos do descumprimento

Autores

3 de agosto de 2022, 17h02

Reprodução
Reprodução

A obrigatoriedade da gravação das tratativas e atos de colaboração premiada e os efeitos do seu descumprimento

A Lei nº 13.964/2019, conhecida como Lei Anticrime, trouxe importantes alterações na disciplina da colaboração premiada. Uma dessas relevantes mudanças é a nova redação do §13 do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013, que inaugurou a obrigatoriedade do "registro das tratativas e dos atos de colaboração".

As modificações no texto normativo podem ser assim visualizadas:

Antiga redação

Nova redação

§13. Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou rcursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações.

§13. O registro das tratativas e dos atos de colaboração deverá ser feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações, garantindo-se a disponibilização de cópia do material ao colaborador.

Na vigência do antigo dispositivo, o Supremo Tribunal Federal manifestara que o registro dos atos de colaboração seria "somente uma recomendação para assegurar maior fidelidade das informações" (Inq 4146, relator ministro Teori Zavascki, julgado em 22/06/2016). Na mesma linha, decidiram outros tribunais:

"VII – Não existe obrigatoriedade legal absoluta de que as declarações do colaborador premiado sejam registradas em meio audiovisual. O §13 do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013 prevê que sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações. Desse modo, existe sim uma recomendação da Lei no sentido de que as declarações sejam registradas em meio audiovisual, mas isso não é uma obrigação legal absoluta a ponto de gerar nulidade pelo simples fato de o registro não ter sido feito dessa forma". (TJPR, processo 1657774-1, Des. Laertes Ferreira Gomes, DJe 21/07/2017)

"Em relação à ausência de gravação audiovisual, não há de se falar em prejuízo pela suposta infringência aos artigos 401, §1º do CPP e artigo 4º, §13 da Lei nº 12.850/2013, porquanto houve a transcrição do termo de depoimento aos autos. Ademais, da simples leitura do dispositivo normativo vê-se que a adoção dos mecanismos de gravação elencadas não é cogente, devendo ser adotadas sempre que possível". (STJ, REsp 1797632, Relator Ministro NEFI CORDEIRO, DJe 03/05/2019).

Com a alteração legislativa, a gravação deixou de constituir mera discricionariedade ("sempre que possível") e passou a ser dever ("deverá") integrante do procedimento do acordo de colaboração premiada [1]. Para corroborar a indispensabilidade da providência, a lei garante, ao colaborador, a disponibilização da cópia do material.

Além disso, a obrigatoriedade não mais incide apenas quanto ao registro dos "atos de colaboração", como estabelecia o antigo texto normativo, porquanto também engloba, doravante, a gravação das "tratativas" de acordo, isto é, as negociações prévias, que muitas vezes ocorriam de maneira informal.

Dessa forma, almejou-se conferir maior segurança jurídica ao colaborador e ao órgão ministerial, tornando-se possível às partes o confronto de informações por meio do registro fidedigno do efetivamente negociado e pactuado. Garante-se, ainda, a transparência necessária ao julgador para fiscalizar a regularidade, legalidade e voluntariedade do agente colaborador.

Quando a gravação ainda era facultativa portanto, antes da mudança no texto legal, o ministro relator Gilmar Mendes já fizera um apelo ao legislador pela obrigatoriedade do registro de todos os atos de colaboração no julgamento conjunto dos habeas corpus de nº 143.427/PR e 142.205/PR:

"Penso, contudo, que devemos ressaltar a importância do registro de todos os atos de colaboração premiada, inclusive aqueles dos momentos de negociações ou depoimentos prestados diante do Ministério Público. Tendo como exemplo o caso aqui analisado, as alegações de que teriam ocorrido alterações nos depoimentos prestados seriam facilmente verificáveis com a devida gravação dos atos negociais.

Portanto, como orientação prospectiva, ou até um apelo ao legislador, deve-se assentar a obrigatoriedade de registro audiovisual de todos os atos de colaboração premiada, inclusive negociações e depoimentos prévios à homologação" [2].

O ministro Edson Fachin, que proferiu voto divergente no caso [3], igualmente ressaltou a importância do registro dos atos de colaboração como forma de garantir a segurança jurídica:

"Adianto que comungo da premissa assentada pelo eminente Relator no sentido da efetiva importância do registro dos atos de colaboração, até mesmo para preservar a segurança jurídica que inspira a celebração de negócio jurídico dessa natureza".

Portanto, com a modificação legislativa a norma evoluiu conforme as necessidades que já vinha sendo observadas na prática pela jurisprudência. Contudo, a nosso ver resta pendente de maior debate teórico os efeitos jurídicos do descumprimento da obrigação legal de registro dos atos de colaboração premiada.

Em termos gerais, o direito processual penal brasileiro prevê que "nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa" (artigo 563, CPP), bem como que "não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa" (artigo 566, CPP). Por outro lado, a lei estabelece a nulidade "por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato" (artigo 564, IV do CPP).

Na hipótese do acordo de colaboração premiada, a gravação das tratativas e atos de negociação passou a ser, por força da alteração legislativa, formalidade essencial do acordo de colaboração premiada. De fato, o legislador estabeleceu, de forma cogente, o registro como elemento central do procedimento de justiça negocial penal e requisito necessário para a efetiva fiscalização sobre a regularidade, legalidade e voluntariedade do agente colaborador.

Com efeito, a ausência de gravação inviabiliza o efetivo controle da regularidade das tratativas e amplifica exageradamente o risco de acordos fundados em coação ou acusações falsas, colocando em risco desproporcional a segurança jurídica e a proteção do interesse público, que são pressupostos do acordo de colaboração nos termos do artigo 3º-A da Lei nº 12.850/2013.

No direito comparado, o Tribunal Constitucional Federal alemão teve a oportunidade de se manifestar sobre a mesma controvérsia. Em 2013, a Corte foi demandada a examinar a constitucionalidade das disposições legislativas diante de práticas ilegais reiteradamente observadas na celebração de acordos de colaboração premiada pelas autoridades germânicas [4].

Ao afirmar a constitucionalidade das exigências legais, a Corte alemã ressaltou que a transparência, consubstanciada no registro dos eventos associados à celebração do acordo, é ponto central da estrutura da justiça negocial e requisito essencial para o efetivo controle público por força do §273, nº 1ª, frase 1, StPO [5]:

"Um dos pontos centrais da estrutura da Lei de Acordos Penais é garantir a transparência e o registro documental dos eventos associados à celebração de um acordo, classificados expressamente como “necessários” pelo legislador, enquanto requisitos necessários para a existência de um controle efetivo por parte do público, do Ministério Público e dos tribunais de apelação" [6].

Assim, o Tribunal alemão destacou a necessidade da documentação de todos os caminhos que levaram ao acordo: quem deu início às conversações, como se deram as disposições que estabelecem as obrigações das partes no pacto, quais foram as discussões sobre penas. E em caso de descumprimento da obrigação legal de registro, a Corte assentou a nulidade do acordo de colaboração premiada. Sobre esse relevante julgamento, Francisco Schertel Mendes [7] explicita:

"The Constitutional Court also stressed that the negotiation of an agreement must comply with the principle of transparency and with the duty of documentation. According to the decision, the registry requirements established in the legislation are not mere formalities, but rather an essential guarantee to enable adequate control of the practice of consensual solutions by higher courts. Thus, the conduction of negotiations that fail to observe the rules of transparency and documentation leads to the nullity of the agreement".

Entendemos que não há qualquer fundamento jurídico para que a solução entre nós seja distinta daquela adotada pelo ordenamento jurídico alemão. Portanto, a não gravação das tratativas e atos da colaboração premiada, em violação à exigência do novo §13 do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013, deve resultar na nulidade do acordo por impedir a transparência do procedimento e obstaculizar o efetivo controle público, especialmente no tocante aos pressupostos de interesse e utilidade do instrumento.

 


[1] Portanto, discordamos de Frederico Valdez Pereira, que afirma que "a norma em análise (§13 do artigo 4º) deve ser interpretada mais como recomendação quanto à forma de registro a ser adotada do que como verdadeira exigência. Caberia uma interpretação com resultado similar à regra contida do Código de Processo Penal, o qual já prevê, há muitos anos, no §1º do artigo 405, que o registro dos depoimentos em audiência por esses métodos se dará “sempre que possível". (Apontamentos sobre a colaboração premiada na Lei Anticrime. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 174/2020, p. 199 – 254, Dez. 2020)

[2] "5. Como orientação prospectiva, ou até um apelo ao legislador, deve-se assentar a obrigatoriedade de registro audiovisual de todos os atos de colaboração premiada, inclusive negociações e depoimentos prévios à homologação. Interpretação do artigo 4º, §13, Lei 12.850/2013. Nova redação dada pela Lei 13.964/19". (HC 142205, relator GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 25/08/2020)

[3] O ministro Fachin votou pelo não conhecimento do HC 142.205/PR (pela incidência da Súmula 691/STF) e pela denegação da ordem no HC 143.427/PR, entendendo não haver constrangimento ilegal, além de inadmissível a impugnação de acordo por terceiros delatados.

[4] MENDES, Francisco Schertel. Leniency Policies in the Prosecution of Economic Crimes and Corruption: Consensual Justice and Search for Truth in Brazilian and German Law. Volume 48 de Schriften Zum Internationalen und Europaischen Strafrecht Series. Nomos Verlagsgesellschaft, 2021, p. 174.

[5] "§273

 1) […] O procedimento essencial e o conteúdo de um debate nos termos do artigo 257–B também devem constar na transcrição do julgamento. [….]

a) A ata deve igualmente refletir o procedimento essencial e o conteúdo, bem como o resultado do acordo nos termos do artigo 257–C. O mesmo se aplica à observância das comunicações e instruções prescritas pelos artigos 243, parágrafo 4º, e 257–C, parágrafo 4º, frase 4ª e parágrafo 5º. Caso não for realizado um acordo, esse fato deve também constar na ata. […]".

[6] vgl. Begründung des Gesetzentwurfs der Bundesregierung, BTDrucks 16/12310, S. 1, 8 f. Disponível em: https://dejure.org/Drucksachen/Bundestag/BT-Drs._16/12310. Acesso em 19 jul. de 2022. Tradução livre.

[7] MENDES, Francisco Schertel. Leniency Policies in the Prosecution of Economic Crimes and Corruption: Consensual Justice and Search for Truth in Brazilian and German Law. Volume 48 de Schriften Zum Internationalen und Europaischen Strafrecht Series. Nomos Verlagsgesellschaft, 2021, pp. 174-175.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!