Opinião

É ilegal a decretação de medida cautelar mais gravosa

Autor

  • Tiago Bunning

    é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra) conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024) advogado e professor.

2 de agosto de 2022, 16h02

A Lei 13.964/2019 assumiu a adoção do sistema acusatório pelo processo penal brasileiro (artigo 3º-A), desde então defendemos a estrita observância ao princípio dispositivo e por consequência a necessidade de reinterpretação de diversos dispositivos legais que autorizavam a atuação de ofício do juiz [1].

Os tribunais superiores ainda não apreciaram diversos temas sensíveis ao sistema acusatório — tal como a produção de provas de ofício e a condenação quando há pedido absolutório do MP —, com exceção as medidas cautelares, pois em observância ao artigo 282, §2º, e artigo 311 do CPP, de forma acertada, STJ e STF deixaram de admitir a decretação da prisão preventiva de ofício, até mesmo nas audiências de custódia.

Entretanto, a 6ª Turma do STJ, no RHC 145.225/RO [2], admitiu a decretação de medida cautelar mais gravosa do que aquela que foi requerida pelo MP. Na ocasião foi alegada fungibilidade das medidas cautelares, bem como que o juiz se tornaria mero chancelador.

A posição não parece ser compatível com o princípio dispositivo típico de um sistema acusatório que restringe a atuação do julgador nos limites fixados pelas partes.

A alegada fungibilidade das medidas cautelares precisa ser interpretada a partir do princípio favor rei, reconhecendo que o magistrado poderia decretar medidas cautelares diversas quando requerida a prisão preventiva ou decretar medidas cautelares diversas menos gravosas do que aquelas que foram requeridas.

Foi neste sentido o voto divergente do ministro Sebastião Reis Jr. na ocasião em que a 6ª Turma do STJ julgou o RHC 145.225/RO: "Tenho grande dificuldade em admitir, em especial no processo penal, que um juiz vá além daquilo que foi requerido pela parte interessada, no caso, pelo órgão acusador e titular da ação penal. (…) Não vejo como essa limitação transformará o juiz em um mero chancelador do requerido pelo Ministério Público. O juiz não estará obrigado a aceitar o que lhe foi postulado. Poderá negar a imposição de qualquer cautelar ou poderá impor uma menos gravosa do que a requerida. A fixação de eventual cautelar ainda continua a critério do juiz, que decidirá, de forma fundamentada, o que lhe foi pedido".

A inércia da jurisdição é pressuposto da imparcialidade e equidistância das partes [3], para que seja violada não é necessário que o magistrado se levante e ele próprio algeme o investigado-acusado, basta que decida para além do que foi provocado pelas partes e, portanto, agindo de ofício.

Por sua vez, a 2ª Turma do Supremo no AgRg no HC 203.208/MG [4] decidiu que após decretar a prisão a pedido do MP, o juiz não estaria obrigado a revogá-la se requerido pelo Parquet. A posição também não parece estar adequada ao sistema acusatório e neste ponto o raciocínio é parecido àquele invocado há muito tempo para arguir a inconstitucionalidade do artigo 385 do CPP.

Conforme ensina Aury Lopes Jr, a invocação do MP condiciona o juiz, assim como condenar, prender e manter preso, contrariando a posição do titular da pretensão acusatória viola princípio da correlação e implica em grave sacrifício a imparcialidade judicial [5].

A atuação do magistrado deve respeitar o princípio dispositivo e o princípio da correlação. Até mesmo o processo civil, que lida com direitos menos sensíveis que a liberdade, proíbe decisões ultra petita nos termos do artigo 492 do CPC/2015, in verbis: "Art. 492. É vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado".

Invocar a proteção da vítima e da sociedade fazendo alusão a "proteção deficiente", viola a estrita legalidade processual penal, uma vez que a dicção do artigo 282, §2o do CPP é clara e objetiva ao prever que o "as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento as partes", ou seja, a atuação (que veda decisões de ofício) e os limites da atuação (que veda decisões sem correlação) estão adstritas ao requerimento das partes.

Em ocasião mais recente, em decisão monocrática o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, da 5ª Turma do STJ (HC 752.010/MG), considerou ilegal a decretação da prisão preventiva, uma vez que na audiência de custódia o MPE havia requerido apenas a decretação de medidas cautelares diversas da prisão, considerando de forma acertada que a prisão em flagrante foi convertida em preventiva de ofício.

Em verdade, este é o real significado de uma convivência harmônica entre as medidas cautelares pessoais e o sistema acusatório.


[1] "Resumidamente, no que diz respeito aos citados arts. 156, 187, 196, 209, 212, 234 e 242 do CPP, bem como ao art. 3º da Lei 9.296/96, ficará vedada ao juiz qualquer iniciativa ou atividade destinada à produção de provas, pois o juiz é o destinatário da prova e por isso não pode produzi-la. (…) Também defendemos a revogação tácita do art. 385 do CPP (…) É evidente que os atos de condenar sem pedido ministerial e reconhecer agravantes que não tenham sido alegadas equivalem a substituir a atuação do órgão de acusação." (MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei Anticrime: A (re)forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? 1ª ed. São Paulo, Editora Tirant Lo Blanch. 2020, p. 23)

[2] (…) 4. A determinação do Magistrado, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio, uma vez que lhe é permitido atuar conforme os ditames legais, desde que previamente provocado, no exercício de sua jurisdição.5. Impor ou não cautelas pessoais, de fato, depende de prévia e indispensável provocação; contudo, a escolha de qual delas melhor se ajusta ao caso concreto há de ser feita pelo juiz da causa.

Entender de forma diversa seria vincular a decisão do Poder Judiciário ao pedido formulado pelo Ministério Público, de modo a transformar o julgador em mero chancelador de suas manifestações, ou de lhe transferir a escolha do teor de uma decisão judicial. (…) 11. Recurso não provido. (RHC nº 145.225/RO, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 15/2/2022, DJe de 22/3/2022)

[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, p. 163-198 Curitiba, a. 30, 1998, p. 178.

[4] "Agravo regimental no habeas corpus. 2. Agravo que não impugna todos os fundamentos da decisão agravada. Princípio da dialeticidade violado. 3. Prisão preventiva decretada a pedido do Ministério Público, que, posteriormente requer a sua revogação. Alegação de que o magistrado está obrigado a revogar a prisão a pedido do Ministério Público. 4. Muito embora o juiz não possa decretar a prisão de ofício, o julgador não está vinculado a pedido formulado pelo Ministério Público. 5. Após decretar a prisão a pedido do Ministério Público, o magistrado não é obrigado a revogá-la, quando novamente requerido pelo Parquet. 6. Agravo improvido." (HC nº 203.208 AgR, rel. ministro Gilmar Mendes, 2ª T., DJe 30/8/2021).”

[5] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. Introdução Crítica. 2ª ed. Saraiva: São Paulo, 2016, p. 259. LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022. p. 717/718.

Autores

  • é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS), especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra), conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024), professor, advogado e sócio fundador do escritório Bunning Advocacia Criminal.

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