Opinião

Criminologia crítica e lobby da insegurança pública

Autor

  • Filipe Regueira de Oliveira Lima

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Damas da Instrução Cristã) com MBA em Gestão de Segurança Pública (Faculdade Focus) graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do "O Brasil prende demais? Reflexões sobre a prisão" pela editora EDA.

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2 de agosto de 2022, 18h13

Qual o papel do cidadão comum em uma democracia? O que justifica uma grande meio de comunicação substituir os termos "assaltantes" ou "ladrões" por "vulneráveis"? Como é possível um professor universitário afirmar que é a favor do assalto?

Há muito tempo Ricardo Dip e Volney Moraes Jr, ex-desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, denunciavam a ambiguidade com que alguns intelectuais brasileiros definiam o papel do povo brasileiro no espaço da cidadania.

Eles perceberam que esses intelectuais costumavam ter grande consideração com a vontade do povo brasileiro apenas quando essa vontade coincidia com o que eles pensavam. Caso contrário, esse mesmo povo deixava de ocupar posto respeitável no espaço do processo democrático para se tornar um populacho de vingadores, bando de "paranoicos" sedentos de sangue, um aglomerado de ignorantes que não possuem capacidade de exercer qualquer papel no tracejar de políticas criminais, por ser tema supostamente interdito ao cidadão comum e reservado apenas aos poucos iluminados da intelligentsia brasileira.

"Pretendendo-se a quintessência do humanismo, imaginando-se algo assim como um neto retardatário do Enciclopedismo, o penalista da moda desabaria apoplético se alguém insinuasse que ele não é um autêntico democrata, porque nega ao povo — de quem todo poder emana! — qualquer papel no tracejar da política criminal.
Ocorre que o penalista fashionable sabe e sabe muito bem que o povo, chamado a delinear os fundamentos da política criminal, proporia justa adequação das penas à gravidade dos crimes e medidas tendentes a fazer com que o criminoso violento seja persuadido a aceitar sua condição de não integrado à sociedade, enfim, o termo de vergonhosas, amorais, e por vezes, até mesmo imorais concessões ao banditismo violento"
[1].

Essa ambiguidade de tratamento é evidenciada quando percebemos as frequentes notas públicas de entidades não governamentais, integradas por especialistas em segurança pública, membros da academia e até magistrados, disparando pesados ataques contra quaisquer projetos de lei lançados no Congresso Nacional que buscam atender as aspirações coletivas da maioria esmagadora do povo brasileiro em combater o banditismo violento e o estado de impunidade que domina nosso país [2].

O Congresso sabe, e sabe muito bem, o que o povo pensa a respeito da segurança pública. Mais de 87% dos brasileiros defendem a redução da maioridade penal. Três em cada quatro brasileiros acreditam que a punição adequada para um estuprador seria pena de prisão perpétua. Diante do estado de violência desenfreada em que se encontra o país, mais da metade já apoia a pena de morte, número que vem crescente assustadoramente a cada ano…

Por que, então, medidas práticas, reais, factíveis e menos drásticas, com grande potencial de redução dos índices da criminalidade violenta e forte apoio popular, como os projetos de lei que tratam da prisão em segunda instância, da exigência de exame criminológico para progressão de regime, da vedação de penas em meio aberto para criminosos dotados de periculosidade, da redução da maioridade penal ou do fim das saídas temporárias, por exemplo, não são aprovados no Congresso Nacional?

A resposta pode estar no chamado lobby da insegurança pública. O termo foi cunhado por Georges Fenech, ex-juiz de direito francês e autor de diversos estudos criminológicos, que na década de 1990 identificou no parlamento, na mídia e nas universidades de seu país, interesses ocultos de determinadas grupos que buscavam incentivar motins e pequenos delitos de modo a fomentar a instabilidade social:

"Magistrado há vinte anos, eu próprio vivi essa lenta culpabilização de exercer uma profissão com uma conotação repressiva, este freios repetidamente imaginados para dissuadir de punir, este descrédito incessante da função do juiz de instrução que continua a ser, todavia, a melhor defesa contra a criminalidade, estas absolvições permanentes dos vândalos unicamente sob o pretexto de uma sociedade não igualitária ser ela própria responsável pelas suas maquinações.
Seria altura, pelo menos, de nos preocuparmos com as causas do crime e de nos interessarmos mais pelo criminoso, de o considerarmos um indivíduo capaz de exercer a livre escolha, incluindo a de se afundar na delinquência selvagem, mas suportando em contrapartida todas as consequências.
É permitindo que assumam seus atos e dando provas de um pouco menos de compaixão angélica, que restituiremos ao jovem criminoso as oportunidades para sair de uma espiral infernal. (…)
Os responsáveis políticos, para além do volte-face retórico, terão verdadeiramente vontade de agir com eficácia? Podemos duvidar quando a criminalidade prossegue na sua curva ascendente para atingir cumes vertiginosos, enquanto ao mesmo tempo outras grandes democracias proclamam a tolerância zero e põem termo a cultura da desculpa, fazendo tábua rasa de uma passado virado exclusivamente para o conjunto preventivo. (…)
Quando ganhará o Estado coragem de assumir a sua missão real por excelência, que é permitir aos nossos concidadãos viverem em paz sem temerem ser agredidos em todas as esquinas por alguns tostões ou por um olhar? (…)
A menos — o que constituiria um crime contra a democracia — que a decadência do Estado seja o objetivo último perseguido por certos circuitos situados, como se diz atualmente, 'à esquerda da esquerda', que deixariam de boa vontade desenvolver-se a sensação de insegurança para melhor destruir os alicerces da República?
Essa situação só mudará quando as pessoas ousarem inscrever-se contra a corrente do pensamento único. A responsabilidade individual deve, com efeito, voltar a tornar-se o pilar de uma sociedade democrática, fundada em primeiro lugar sobre o respeito dos valores e dos direitos de outrem"
[3].

Esses grupos, segundo Fenech, muito ativos na intelligentsia midiática, nos meios políticos, judiciais, sindicais ou associativos, sustentavam que a sociedade francesa era a única responsável pelos crimes praticados pelos delinquentes porque ela própria gerava desigualdades sociais. Esta corrente de pensamento único, que influenciou por algum tempo as universidades francesas, foi chamada por Fenech de cultura da desculpa, uma espécie de desresponsabilização generalizada dos criminosos, que segundo o autor, teve forte influência na França desde a década de 70 até o final do século 20.

No entanto, passados os efeitos da segunda grande guerra, notou-se que riqueza e abundância, além da expressiva melhora dos indicadores sociais obtidos após a forte recuperação econômica da Europa ao final do século 20, não vieram acompanhados da redução da criminalidade. Pelo contrário, os números foram inversamente proporcionais. Na França, como registra Fenech, os índices de crimes como estupros, roubos e homicídios cresceram exponencialmente no período, demonstrando a deficiência das teses criminológicas que apontavam a pobreza e o desemprego como principais causas do aumento da delinquência violenta, teoria que no Brasil é sustentada pela Criminologia Crítica, "Radical", "Marxista", ou "Nova Criminologia", fortemente propagada e, ao que parece, dominante nas universidades brasileiras.

Esse é o motivo pelo qual as grandes democracias ocidentais, apesar da abundância e riqueza econômicas, não renunciaram ao cárcere punitivo como instrumento de controle da criminalidade, pelo contrário, recrudesceram as penas repressivas a partir do final do século 20. A reintrodução da prisão perpétua em 2015 no Código Penal espanhol, as penas relativamente indeterminadas em Portugal, as leis de tolerância zero alemãs de 1998 contra os agressores sexuais e outros delinquentes perigosos, a previsão de prisão permanente para criminosos violentos na França e Itália, e por fim, a manutenção da pena de morte até os dias atuais em países como Japão e EUA, demonstram que todas nações de primeiro mundo possuem tratamento repressivo penal muito mais severo do que o Brasil, recordista mundial em crimes violentos como feminicídio e estupro.

Por aqui, é se questionar se parte destes intelectuais, assim como ocorreu na França, não estão a esconder algum tipo de preconceito ideológico contra o modelo econômico vigente, buscando fomentar e perpetuar o caos da violência urbana. A criminalidade desenfreada seria o preço a pagar pelas vítimas e por toda a sociedade "capitalista opressora", causadora das desigualdades sociais (ainda que as vítimas, em sua grande maioria, sejam oriundas das camadas de baixa renda da população). Ricos e pobres deveriam suportar o custo da criminalidade ao mesmo nível que um acidente da estrada ou uma doença do capitalismo moderno [4].

Para buscar seu intento, ONGs e entidades de classe (que não representam a maioria da população) rotulam rapidamente de ineficientes, retrógradas, até mesmo de maldosas e desumanas, quaisquer iniciativas que busquem adotar mais rigidez no tratamento do banditismo violento, contando com auxílio de parte da mídia engajada e da academia.

Redução da maioridade penal? Pergunta o cidadão comum atormentado pela violência. – Não resolve o crime, responde o especialista. E restringir ou excluir regimes abertos para criminosos violentos e perigosos?, pergunta o cidadão sofrido. – Não diminui a violência, responde o expert. Aumentar as penas? Questiona atônito o cidadão. – Nem pensar, responde o intelectual. Mas qual medida resolve então?, pergunta o cidadão aflito. – Veja bem, o problema é complexo e a solução também… Em seguida, ao invés de oferecer medidas concretas para mitigar a violência urbana, o penalista moderno passa a divagar sobre abstrações teóricas soltando chavões como "educação", "inteligência policial", "emprego", em um tautologismo enfadonho, sem nunca apontar soluções factíveis para o cidadão comum, que junto com sua família, estão sofrendo (agora, neste exato momento!) as consequências da violência diária que tomou conta do país.

Curiosamente, talvez por sofrer na pele os efeitos da violência, o cidadão médio brasileiro, apesar de bombardeado com tardo-modernas teses da criminologia crítica através da grande mídia [5] (há muito superadas em países como França, Espanha, Itália, Japão e Estados Unidos, democracias consolidadas que admitem, inclusive a prisão perpetua [6]), não tem sido receptivo a essas teorias, postulando tratamento cada vez mais rígido e medidas efetivas tendentes a dissuadir e conter o criminoso violento.

Para maioria dos brasileiros, o criminoso não é vítima, e sim, um indivíduo comum, capaz de exercer a livre escolha, incluindo a de se afundar na delinquência selvagem. Curiosamente, as pesquisas de opinião apontam que os integrantes das camadas menos favorecidas rechaçam ainda com mais força quaisquer teorias que veem na criminalidade uma espécie de redistribuição de bens em favor dos oprimidos. Eles são os que clamam, ainda mais fortemente, por leis mais duras contra a criminalidade violenta.

No entanto, apesar de desmascarado o falso humanismo daqueles que veem na criminalidade uma legítima forma de violência reparadora de injustiças sociais (ou até mesmo uma lógica no assalto [7]), é desconhecido o motivo pelo qual o lobby da insegurança pública possui tão forte influência sobre os integrantes do Congresso Nacional, ao ponto de desconsiderar-se as reinvindicações coletivas da verdadeira vítima da criminalidade violenta: o cidadão comum brasileiro. Fica a reflexão.


[1] Crime e Castigo. Reflexões Politicamente Incorretas. São Paulo: Lepanto, 2018. p.28-29

[2] Vide por exemplo nota divulgada pela Associação dos Magistrados pela Democracia contra projeto de lei que obriga a realização de exame criminológico para obtenção do regime semiaberto divulgada em vários canais da mídia eletrônica. Disponível em https://www.brasil247.com/brasil/associacao-de-juizes-para-a-democracia-diz-que-o-caso-lazaro-coloca-em-risco-regime-de-progressao. A mesma associação juntamente com entidades como a Frente Estadual pelo Desencarceramento da Bahia e Agenda Nacional pelo Desencarceramento, lançaram nota conjunta atacando o Projeto de Lei n.º 360/2021 que visa excluir da Lei de Execução Penal os famigerados saidões de presos.

[3] FENECH, Georges. Tolérance zéro: en finir avec la criminalité et les violences urbaines. França: Grasset, 2021. p. 12-13.

[4] Idem.

[5] Exemplo do ativismo midiático a favor das teses da criminologia crítica, pode ser obtido no título da matéria jornalística: “Turista é cercado por vulneráveis em farmácia do Leblon” publicado pelo jornal O Globo. Disponível em https://oglobo.globo.com/blogs/ancelmo-gois/post/2022/07/turista-e-cercado-por-vulneraveis-em-farmacia-do-leblon.ghtml;

[6] Nosso vizinho Chile também aplica a chamada prisão perpétua ou permanente para crimes graves.

[7] Vide artigo A Lógica do Assalto, da professora universitária Marcia Tiburi. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/logica-do-assalto/.

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Damas da Instrução Cristã), com MBA em Gestão de Segurança Pública (Faculdade Focus), graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do "O Brasil prende demais? Reflexões sobre a prisão", pela editora EDA.

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