Opinião

Oportunidade de incrementar norma geral ao recurso repetitivo e precedente

Autor

  • Andressa Senna Lísias

    é doutoranda em Direito Constitucional Tributário e Processo Tributário na PUC-SP onde também obteve o título de mestre em Direito Processual Civil e graduou-se em Direito. Advogada tributarista. Pesquisadora.

30 de abril de 2022, 9h14

Em fevereiro, os presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal formalizaram a criação da comissão de juristas para a reforma dos processos administrativo e tributário. Como tem sido amplamente noticiado, até 6 de maio a comissão receberá manifestações e sugestões da sociedade por meio de consulta pública. Nesse contexto, consolidamos a seguir algumas das temáticas que reputamos relevantes para o processo tributário relativamente aos recursos repetitivos e ao sistema de precedentes, a fim de contribuir para os debates e a formação das proposições de alteração legislativa.

Como o escopo da reforma é propor medidas para a racionalização do contencioso tributário, é preciso, primeiramente, notar a valiosa oportunidade para promover diálogo entre a LEF e o artigo 927 do CPC, de modo a desincentivar a judicialização de disputas já interpretadas pelo STJ e o STF.

A dispensa da cobrança de crédito tributário que decorra de matéria solucionada em favor dos contribuintes, sobretudo em repercussão geral, tornaria a sistemática mais justa e eficiente. Além de criar um ambiente normativo que favoreça o cumprimento do precedente, essa atualização na LEF tem o escopo de prevenir entes federativos e contribuintes contra a onerosidade desnecessária. O contribuinte é poupado do ônus da garantia que precede a oposição de embargos, ao passo que a Fazenda Pública poderá direcionar melhor seus recursos, sem precisar gerir um contencioso estéril cujo destino já foi predeterminado pelo CPC (improcedência liminar do pedido, dispensa de remessa necessária, atuação monocrática do relator, etc).     

Em relação às normas gerais de processo tributário, tão ou mais importante será garantir que a solução estabelecida pelo Poder Judiciário seja aplicada pela administração e por todas as esferas e instâncias de julgamento administrativo; não apenas no âmbito federal, cuja disciplina foi iniciada pela Lei nº 10.255/02 e o Decreto nº 70.235/72, mas também nos âmbitos estaduais e municipais. Como temos chamado atenção [1], para que o modelo de precedentes surta os efeitos práticos almejados, é necessário incrementar no plano legislativo estruturas que assegurem e direcionem o cumprimento, pelas partes vencidas e os tribunais administrativos, da tese firmada.

Partindo de igual premissa, importa garantir também que, na fase antecedente, os tribunais administrativos tenham determinado a suspensão do processamento dos processos pendentes que versem sobre a controvérsia objeto do RE/Resp afetado. Essa etapa tem o propósito de alertar contribuintes e Fisco quanto à futura aplicação da resposta jurisdicional a ser dada pelo padrão decisório, eliminando-se o efeito-surpresa e abrindo-lhes oportunidade para atuarem construtivamente no recurso representativo via "amicus curiae".

Aliás, nesse sentido, igualmente relevante tratar da participação da administração fazendária na formação do precedente. A despeito das normas gerais contidas nos artigos 138 e 1.038 do CPC, a disciplina no âmbito do processo tributário demarcaria a noção de que, por ter tido a chance de cooperar democrática e dialogicamente com a construção do paradigma (na qualidade de "amicus curiae", por meio de associações de classe como Aconcarf, Unafisco Nacional, Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado São Paulo, etc), a administração, de modo mais lógico, reconheceria a autoridade do precedente. Mais do que incentivo, a norma que dê tratamento adequado a essa participação poderá induzir aos comportamentos esperados, ao garantir que os atingidos pela tomada de decisão tenham tido o efetivo direito de influir em sua constituição.  

Ainda sobre a produção coparticipativa do precedente, avançaríamos em reservar oportunidade de manifestação para que a Administração dê conhecimento à Corte sobre eventual questão autônoma e consecutiva a qual, embora não seja objeto do recurso representativo, poderá prejudicar ou inviabilizar a efetivação da futura decisão, o que vale também para o contribuinte.

Neste caso, caberia à Corte sobrestar o julgamento principal e iniciar os procedimentos para afetar recurso sobre a questão invocada, ou substituir o recurso representativo por outro que contemple ambas as questões delimitadas. Isso se a questão autônoma não puder ser discutida no próprio recurso representativo eleito sem modificar ou ampliar suas causas de pedir e pedidos (os quais, vale lembrar, não são abertos na medida em que devem se ater às circunstâncias do caso concreto piloto). A finalidade é que as discussões que possam impactar a efetivação do precedente, quando possível, sejam suscitadas e decididas no julgamento que definirá a interpretação da tese.

Ressalvadas as discussões sobre normas supervenientes ao precedente, essa precaução poderia evitar o prolongamento pernicioso do contencioso múltiplo, que por vezes tem se desdobrado em novos litígios e teses consecutivas. Com isso amenizaríamos as chances de que a temática seja redimensionada sob outros fundamentos e facetas após o precedente ser firmado e a parte vencida, usando a nova discussão como subterfúgio, esquive-se do cumprimento.

Além de que, ao se conceder oportunidade de manifestação prévia para que sejam abordadas questões relacionadas com a efetivação do precedente, tornam-se públicos (e, se julgados, até mesmo sanados) esses pontos, o que permitirá, no futuro, a fiscalização e o controle da aplicação do paradigma bem como da conduta coerente ou não das partes vencidas.  

E não só. É imensa a oportunidade para que o processo tributário se coloque à frente e discipline aspectos gerais relacionados aos elementos vinculantes do precedente [2]. Ao determinar que as teses elaboradas pelo STF/STJ não se apoiem em conceitos indeterminados e vagos, as normas refreariam o surgimento de outras interpretações e inseguranças sobre o tema julgado. A título de exemplo, é o que se constata em discussões a respeito dos créditos de PIS/Cofins sobre a aquisição de insumos, que ainda pressupõe definições casuísticas. No âmbito processual, o cabimento do agravo de instrumento  tema 988/STJ  também suscita dúvidas similares à vista da configuração da urgência.

Vanguarda seria ainda estabelecer critérios para que as razões de decidir sejam delimitadas e deliberadas, de modo que haja visibilidade do voto proferido por cada ministro em relação a cada um dos fundamentos discutidos no colegiado. Em se tratando de recursos repetitivos, a questão de direito a ser julgada já deve ser especificamente delimitada por força do artigo 1.037, I do CPC. Além disso, o Código prevê no artigo 1.038, §3º que o acórdão contemple a análise dos fundamentos relevantes da tese discutida. Ainda assim, em relação à própria estruturação dos votos, ainda vemos os fundamentos determinantes discutidos imiscuírem-se com sentidos interpretativos e argumentos de forma pouco ou nada sistematizada, comprometendo, muitas vezes, a compreensão clara das deliberações que integram o acórdão. E como não são sistematizados, nem sempre todas as razões de decidir são consideradas e deliberadas por cada um dos ministros.

Tal proposição de fato não é significativa para os casos que envolvam único fundamento e votação unânime, mas teria inegável utilidade quando mais de um fundamento determinante for discutido e decidido em votações não-unânimes. Embora a busca das "rationes decidendi" seja dificultosa, a lei deveria acolher um critério com vistas a resguardar que a maioria da votação se refira não apenas ao resultado e ao dispositivo, mas também às razões determinantes que constituirão a regra de direito a ser observada em todos os casos considerados repetidos.

Considerando que o precedente extrapola o interesse das partes do recurso piloto — para quem o resultado de (des) provimento poderá ser suficiente , é preciso que a maioria vencedora demonstre consenso quanto aos fundamentos que embasarão a solução jurídica e tese jurídica firmada pela Corte. Na prática, em algumas situações, seria identificar os fundamentos preliminares, de mérito e as respectivas deliberações (e para não desconsiderar as complexidades disso, citamos o RE 590.809 [3]). Em outras, o desafio é organizar, metodologicamente, todos os fundamentos e as respectivas deliberações relacionados com a (in) constitucionalidade ou a (i)legalidade da incidência tributária [4].

A missão não é simples, pois além das indeterminações contidas na interpretação da "ratio", nem sempre, já no início do julgamento, o relator terá a visão integral dos fundamentos que virão a ser debatidos pelos demais ministros. Não é raro que um dos ministros invoque fundamento diverso dos adotados nos votos anteriores. Ainda assim, considerando que o nosso modelo de precedentes está em franca construção, a Reforma agirá bem ao dedicar proposições que contribuam para o seu desenvolvimento.

Como o sistema de recursos repetitivos contido no CPC tem sido bem aproveitado e utilizado no contencioso tributário, a Reforma representa de fato uma preciosa oportunidade para aprimorarmos aspectos que, na prática, já se mostraram disfuncionais ou incompletos.


[1] LÍSIAS, Andressa Senna; PENCAK, Nina; ALVES, Raquel de Andrade Vieira. Uma análise a partir do RE 574.706, do ICMS-Difal e do REsp 1.221.170. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-17/opiniao-re-574706-icms-difal-resp-1221170

[2] A esse respeito: LÍSIAS, Andressa Paula Senna. Quais são os elementos vinculantes do precedente produzido em recursos repetitivos? Revista de Processo. Vol. 323. Ano 47. p. 337-363. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, jan. 2022.

[3] Confira a análise dos variados pontos críticos em: MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: precedente e decisão do recurso diante do novo CPC. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 44-56.

[4] Nesse sentido, Alexandre Freitas Câmara observa que o sistema de votação nos julgamentos dificulta a existência de uma única razão de decidir: "tradicionalmente, o que se fez no Brasil foi 'somar conclusões de votos', de modo que se reputa majoritário um entendimento quando uma conclusão é manifestada ‘pelo menos’ pela maioria dos votantes. Pode haver, porém, casos em que uma conclusão tenha sido alcançada pela maioria (ou unanimidade) dos integrantes do tribunal, mas os juízes que a hajam sustentado se tenham valido de fundamentos completamente diferentes". (CÂMARA, Alexandre Freitas. Levando os padrões decisórios a sério: formação e aplicação de precedentes e enunciados de súmula. São Paulo: Atlas, 2018, p. 274).

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  • é doutoranda em Direito Constitucional Tributário e Processo Tributário na PUC-SP, onde também obteve o título de mestre em Direito Processual Civil e graduou-se em Direito. Advogada tributarista. Pesquisadora.

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