Opinião

Uma análise a partir do RE 574.706, do ICMS-Difal e do REsp 1.221.170

Autores

  • Andressa Senna Lísias

    é doutoranda em Direito Constitucional Tributário e Processo Tributário na PUC-SP onde também obteve o título de mestre em Direito Processual Civil e graduou-se em Direito. Advogada tributarista. Pesquisadora.

  • Nina Pencak

    é advogada sócia do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados doutoranda e mestre em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professora da pós-graduação lato sensu em Direito Tributário do IDP ex-assessora de Ministro no STF e cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem.

  • Raquel de Andrade Vieira Alves

    é doutoranda em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal autora do livro "Federalismo fiscal brasileiro e as contribuições" (Rio de Janeiro: Lumen Juris 2017) cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem e advogada.

17 de março de 2022, 18h32

Uma das buscas mais complexas do direito jurisprudencial brasileiro tem sido a estabilização, a integridade e a coerência dos entendimentos firmados e uniformizados pelos Tribunais. Ainda que no CPC/73, assim como na EC nº 45/2004 e na Lei nº 11.418/2006, essa diretriz já estivesse presente, o artigo 926 do CPC/2015 endereçou a questão com mais clareza. Objetivou-se evidenciar que entendimentos uniformes e vinculantes são capazes de promover as importantes transformações de que o sistema necessita, tornando-o, assim, eficiente, racional, previsível e isonômico [1].

Considerando que, em nosso país, há uma espécie peculiar de litigância caracterizada pela repetição numerosa de ações e recursos idênticos, é essencial assegurar mecanismos para que a mesma solução jurídica seja aplicada a todos os casos iguais, reduzindo o volume de processos de forma isonômica, sem surpresas e com agilidade na resposta jurisdicional. E esse é um dos motivos pelos quais o sistema de recursos repetitivos foi concebido: conferir tratamento eficiente e igualitário à descontrolada tramitação de ações sobre o mesmo tema.

Por que, então, a prática parece estar ainda tão distante do propósito do sistema de precedentes fixados por recursos repetitivos?

A fim de responder a esse questionamento, analisaremos os desdobramentos do julgamento do RE 574.706, em que o STF decidiu pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, bem como do RE 1.287.019 e da ADI 5.469, em que a Corte julgou a inconstitucionalidade da regulamentação pelo Confaz das hipóteses de diferencial de alíquota de ICMS, instituídas pela EC 87/2015. No âmbito do STJ, abordaremos, resumidamente, o REsp nº 1.221.170, que julgou, sob a sistemática dos recursos repetitivos, da definição do conceito de insumo para fins de creditamento de PIS/Cofins.

Para tanto, é importante entendermos que o direito brasileiro, apesar de tradicionalmente pautado no Civil Law vem agregando algumas características do Common Law, dentre elas a construção de um sistema de precedentes judiciais vinculantes, o que torna a nossa experiência jurídica única e sem paralelos. Essa singularidade se reflete também nos problemas identificados [2], especialmente os que surgem no modelo de recursos repetitivos (no qual se inserem as repercussões gerais, segundo o CPC/2015). A título ilustrativo, durante o julgamento dos Embargos de Declaração no RE 574.706, em 13/05/2021, o ministro Gilmar Mendes, ao proferir seu voto, salientou a estimativa de que a tese firmada repercutiria em cerca de outras 56 mil ações judiciais repetidas, em tramitação perante o Poder Judiciário [3].

Assim, o ciclo pensado pelo legislador, que se encerraria com a produção do precedente e a solução do contencioso múltiplo a ele relacionado, ainda lida com fricções, apresentando resultados práticos diferentes daqueles cogitados.

Especialmente no que diz respeito às repercussões gerais julgadas pela Suprema Corte em matéria tributária, não raro a autoridade do precedente tem sido desafiada pelo Fisco e pelos tribunais administrativos. Em um primeiro momento, se poderia atribuir esse fenômeno ao fato de que, ao contrário dos precedentes emanados em sede de controle abstrato, as decisões proferidas em recursos extraordinários sob a sistemática da repercussão geral não possuem previsão constitucional nem legal de vinculação automática dos órgãos do Poder Executivo [4].

Dessa forma, o entendimento firmado em recurso extraordinário pela Corte, que deveria representar o fim do contencioso múltiplo sobre o tema, torna-se gatilho para o seu prolongamento, sobretudo quando a Corte decide pela inconstitucionalidade de determinada norma tributária. A questão redimensiona-se e a parte vencida encontra novas formas de se esquivar do cumprimento das teses firmadas, o que resulta em novos litígios.

Ainda sobre o RE 574.706, mesmo após o longo julgamento de mérito, que durou de 2017 a 2021, finalizando-se com a análise dos embargos de declaração, a Receita Federal e a Procuradoria da Fazenda  ambos órgãos do Poder Executivo, frise-se  editaram, em 2021, pareceres que continham posições distintas sobre a questão julgada. Enquanto a PFN acatava o precedente (Pareceres SEI nº 7698/2021 e 12.943/2021), a RFB emitiu orientações duvidosas sobre o sistema de cálculo e os critérios de apropriação dos créditos do PIS e da Cofins pelos contribuintes, no Parecer Cosit 10/2021.

A RFB, nesse ato, afirmou que o ICMS destacado na nota fiscal deveria ser excluído da base de cálculo do PIS/Cofins tanto para fins de pagamento das contribuições pelos contribuintes, quanto para o creditamento. Ocorre que o precedente fixado no RE 574.706 nada versou acerca do direito ao crédito por parte dos contribuintes. Assim, a RFB extrapolou a decisão a fim de limitar o proveito econômico advindo da tese firmada pelo STF, o que, caso fosse mantido pela PFN, certamente geraria nova onda de insegurança jurídica e de questionamentos por parte dos contribuintes.   

Mais recentemente, foi reaberta a discussão quanto ao ICMS-Difal, abordada no RE 1.287.019 e na ADI 5.469, em que se fixou a tese de que "a cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional nº 87/2015, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais". Tendo em vista que a sanção presidencial da LC 190/2022 ocorreu apenas em janeiro, a discussão acerca da aplicação dos princípios da anterioridade anual e da noventena levou o tema novamente à Corte nas ADIs 7066, 7070, 7075 e 7078.

Nas referidas ADIs, os Estados argumentam que não teria havido instituição ou majoração de tributo a motivar o respeito à anterioridade de exercício (artigo 150, III, "c", da Constituição). No entanto, considerando que a Suprema Corte invalidou a cobrança do diferencial de alíquota com base no Convênio ICMS Confaz 93/2015, julgando-a inconstitucional dada a falta de lei complementar, parece claro que a LC 190/2022 inaugura e institui no ordenamento jurídico uma nova cobrança da exação, o que é comprovado pela exposição de motivos do PL 32/2021[5] que deu origem à referida lei complementar. Por essa razão, o diferencial somente poderia ser cobrado no próximo exercício financeiro.

Diante desse panorama, como ter certeza de que a palavra final dada pela Corte Superior é, realmente, o fim da questão? Se, como contrapartida ao resultado firmado pela Corte forem perpetradas novas teses para o não cumprimento das decisões, quando, afinal, haverá segurança jurídica para os planejamentos nos ambientes negociais?

A reflexão pode igualmente ser estendida aos recursos especiais repetitivos julgados pelo STJ, que, assim como as repercussões gerais, também possuem eficácia vinculante ao Judiciário. Como exemplo, cita-se que o entendimento fixado pelo Tribunal no REsp 1.221.170, em relação à apropriação de crédito de PIS/Cofins sobre a aquisição de insumos, nem sempre é fielmente observado pelo Carf. O STJ deixou claro no precedente que são considerados insumos os serviços ou materiais essenciais e relevantes utilizados na "atividade econômica" do contribuinte, chancelando, inclusive parâmetros já utilizados pelo Conselho.

Entretanto, após o julgamento do recurso especial, foram proferidas decisões administrativas no sentido de que o insumo deve estar relacionado à "atividade-fim" da empresa, conceito mais restrito e expressamente afastado pelo STJ no julgamento do paradigma. Foi o que ocorreu recentemente no caso "Netflix", em que se discutiu a possibilidade de apropriação de créditos de PIS/Cofins sobre despesas de publicidade e marketing (processo administrativo nº 10855.722334/2018-78).

Importante relembrar que também neste caso dos insumos a Receita Federal, meses após a decisão do STJ no recurso representativo da controvérsia, produziu o Parecer Normativo Cosit nº 5/2018, cujos termos, em diversas passagens, restringiram a interpretação dada pela Corte à questão. Aliás, o Parecer já apontava que a atividade econômica do contribuinte deveria ser compreendida apenas dentro do escopo da prestação de serviços ou da produção de bens da pessoa jurídica, excluindo, por exemplo, os gastos incorridos após a finalização do processo produtivo (ex: frete de produto acabado, embalagens para transporte de produto acabado etc).

A partir desses exemplos pretendemos destacar as dificuldades para cumprimento das decisões favoráveis aos contribuintes fixadas em sede de recursos repetitivos, o que gera a multiplicação de contenciosos em nosso país. A resolução desse problema não está apenas nas mãos das Cortes Superiores, mas passa, indiscutivelmente, pela compreensão jurídica do papel a ser exercido por essas decisões às quais o sistema processual atribuiu a qualidade de precedentes. Não bastará que as normas jurídicas imponham eficácia vinculante às repercussões gerais julgadas pelo STF e aos recursos especiais repetitivos, se a Administração continuar a usar subterfúgios para o seu não cumprimento, desvirtuando a natureza e as finalidades do precedente.

Avanços normativos são verificados na esfera federal: por exemplo, há dispositivos no Decreto nº 70.235/73 e no Regimento Interno do Carf que vinculam o Conselho às decisões definitivas proferidas em sede de repercussão geral e recursos repetitivos julgados pelo STJ; ainda, a Lei nº 10.522/2002, com alterações de 2019, impõe que as decisões em recursos extraordinários e recursos especiais repetitivos ensejam a dispensa de recurso pela PFN [6].

No entanto, questões básicas sobre vinculação ainda não foram respondidas pelo STF e pelo legislador. Até hoje, não há certeza sobre se o que vincula, no ordenamento jurídico brasileiro, são os motivos determinantes da decisão (rationes decidendi), seu dispositivo ou ainda todos os elementos em conjunto [7]. Além disso, falta regulamentação acerca do papel das "teses de julgamento" fixadas pelos Tribunais Superiores, o qual tem sido desenhado de lege lata, gerando ainda mais instabilidade ao sistema [8].   

Entendemos que um dos caminhos para a racionalização, a estabilização, a integridade e a coerência que almejamos é acatar a autoridade do precedente e assimilar seus elementos (como ratio decidendi, obiter dictum, holding, distinguishing e overruling), bem como os mecanismos que protegem as partes e demais interessados de eventuais alterações nos paradigmas (modulação de efeitos, papel do amicus curiae). Isso leva à necessidade de discutir medidas mais complexas, como a alteração de modelos deliberativos dos Tribunais, a fim de facilitar a localização dos motivos determinantes de suas decisões.

Por certo, nenhum dos caminhos é simples. A construção de um verdadeiro sistema de precedentes em nosso país contempla, mas não se esgota em questões de lege lata e de lege ferenda. É preciso ainda formar a nossa própria cultura de precedentes a partir de mudanças de comportamento entre os litigantes, o que só pode ser feito com o apoio da Academia.

Seja como for, nossa intenção é jogar luzes sobre esses debates a partir dos frequentes exemplos de contencioso múltiplo que o direito tributário nos fornece.


[1] Sobre esse tema ver: LÍSIAS, Andressa Senna. 7 funções capitais do sistema brasileiro de precedentes: reunindo elementos para decisões judiciais mais justas, eficientes, isonômicas e sólidas. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/7-funcoes-capitais-do-sistema-brasileiro-de-precedentes-22112019

[2] Alguns dos problemas mapeados relacionam-se com a formação dos precedentes e foram abordados no seguinte artigo: LÍSIAS, Andressa Senna. Formação dos precedentes em recursos repetitivos  Não é aceitável que a formação dos precedentes vinculantes seja composta de atos praticados a portas fechadas. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/formacao-dos-precedentes-em-casos-repetitivos-15082019

[3] Voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes no RE 574.706 Eds, p. 151, disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=756736801   

[4] Sobre o tema ver: PENCAK, Nina. A repercussão geral e a vinculação da administração tributária. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-fev-20/pencak-repercussao-geral-vinculacao-administracao-tributaria

PENCAK, Nina. A repercussão geral em matéria tributária e a vinculação da Administração Pública: quantas ADIs serão necessárias para que a Fazenda cumpra as decisões do STF? Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-repercussao-geral-em-materia-tributaria-e-a-vinculacao-da-administracao-publica-04062021

PENCAK, Nina; AQUINO, Sara de Assis. Para que (m) serve um precedente em matéria tributária? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-01/pencak-aquino-precedente-materia-tributaria

[5] "O presente projeto de lei complementar visa a regulamentar as alterações introduzidas no texto da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 87, de 16 de abril de 2015, que alterou a sistemática de cobrança do ICMS nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte do imposto, por meio de alterações à Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, tendo em vista o disposto nos artigos 146 e 155, §2º, XII da Constituição Federal. A proposta, oportunamente, trata também das operações e prestações interestaduais destinadas a contribuinte do ICMS, pelos precedentes de julgamentos do STF, que vêm decidindo pela necessidade de que a instituição do diferencial de alíquotas se dê por meio de lei complementar".

[6] Interessante destacar que as Delegacias de Julgamento da Receita Federal apenas estão obrigadas a observar as decisões em repercussão geral, nada mencionando o artigo 26-A, do Decreto nº 70.235/72 acerca das decisões em recursos especiais repetitivos.

[7] A esse respeito: LÍSIAS, Andressa Paula Senna. Quais são os elementos vinculantes do precedente produzido em recursos repetitivos? Revista de Processo. Vol. 323. Ano 47. p. 337-363. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, jan. 2022. 

[8] Sobre o tema ver:  PENCAK, Nina; ALVES, Raquel de Andrade Vieira. A ratio decidendi e a fixação de teses em matéria tributária: duas faces da mesma moeda? Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/a-ratio-decidendi-e-a-fixacao-de-teses-em-materia-tributaria-08042021.

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    é doutoranda em Direito Constitucional Tributário e Processo Tributário na PUC-SP, onde também obteve o título de mestre em Direito Processual Civil e graduou-se em Direito. Advogada tributarista. Pesquisadora.

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    é doutoranda e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sócia do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados, ex-assessora de Ministro no STF, cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem e professora da pós-graduação lato sensu em Direito Tributário do IDP.

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    é doutoranda em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal, autora do livro "Federalismo fiscal brasileiro e as contribuições" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017), cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem (https://www.youtube.com/c/Elasdiscutem) e advogada.

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