Público & Pragmático

A regulamentação da Lei Complementar nº 182/2021: um passo necessário

Autores

  • Mariana Carnaes

    é advogada especialista em Direito Regulatório membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

  • Rafael Roberto Hage Tonetti

    é especialista em Direito Tributário mestrando em Direito Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e advogado da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

24 de abril de 2022, 8h01

Em breve introito, a Lei Complementar nº 182, de 1º de junho de 2021 (LC 182/2021) instituiu o Marco Legal das Startups e do empreendedorismo inovador, bem como instituiu alterações na Lei nº 6.404/1976 e na Lei Complementar nº 123/2006.

A LC nº 182/2021 derivou de um trabalho conjunto do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e do Ministério da Economia que envolveu atores públicos (como a Finep, o BNDES, a Comissão de Valores Mobiliários, etc) e privados, sendo, inclusive, estruturada uma consulta pública [1] para colheita de insumos dos atores do ecossistema de inovação.

A LC nº 182/2021 se insere no âmbito infraconstitucional normativo do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, ao lado de normativos como a Lei nº 10.973/2004, alterada pela Lei nº 13.243/2016, e do Decreto nº 9.283/2018, conhecido como Marco Legal da Inovação.

Ela decorreu da tramitação do Projeto de Lei Complementar nº 146/2019, apensado o Projeto de Lei Complementar nº 249/2020, de autoria do Poder Executivo, possuindo sete capítulos divididos em (1) definições, princípios e diretrizes, (2) enquadramento de empresas startups, (3) instrumentos de investimento em inovação, (4) fomento à pesquisa, desenvolvimento e à inovação, (5) programas de ambiente regulatório experimental, (6) contratação de soluções inovadoras pelo Estado e (7) disposições finais, em que são alterados dispositivos da Lei nº 6.404/1976 e da legislação tributária.

Quase um ano após a promulgação da Lei Complementar nº 182/2021 verificam-se avanços regulatórios, mas ainda persistem lacunas que merecem o devido tratamento, a fim de viabilizar por inteiro a aplicação normativa ao caso concreto.

Já se teve oportunidade de discursar (através deste mesmo periódico) sobre a importância de se estabelecer os parâmetros legais que balizem o funcionamento do ambiente regulatório experimental, estabelecido no artigo 11 [2]. Opinou-se no sentido de que a transparência das regras a serem aplicadas a cada espécie de sandbox (suportadas pelo aval legislativo de sua ocorrência) teria o condão de conferir segurança para a atuação do regulador e do regulado, extraindo dali uma melhor prática inovadora.

Neste sentido, o ambiente regulatório experimental (artigo 11) é apenas um dos exemplos que carecem de tais balizas.

Cite-se, por seu turno, o artigo 6º, que prevê o estabelecimento de regras que regulamentariam o aporte de capital por parte dos fundos de investimento nas startups, cujo rol exemplificativo de possibilidades é previsto no artigo 5º.

A despeito das regras previstas no artigo 15 da Instrução da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) nº 578/2016 no tocante aos Fundos de Investimento em Participações (FIP) de capital semente, entende-se que seria salutar uma regulamentação mais específica por parte da entidade pública, na medida em que a ratio legis busca fomentar a maior irrigação de capital privado nas startups, seja através de FIPs, seja através de outras figuras jurídicas de fundo de investimento existentes [3], principalmente diante dos gargalos jurídicos existentes em razão da preponderância da organização societária de sociedades limitadas dentre as startups [4].

Verifica-se, felizmente, que o Marco Legal das Startups trazido pela LC 182/2021 consta na Agenda Regulatória da CVM de 2022, como um dos Estudos Normativos e Análise de Impacto Regulatório [5], trazendo a expectativa de que o tema avance no âmbito daquela autarquia.

Na sequência da LC 182/2021 tem-se os artigos 9º e 10, ambos pertencentes ao capítulo destinado ao fomento à pesquisa, ao desenvolvimento e à inovação.

O artigo 9º dispõe que as empresas com outorgas ou delegações firmadas por meio de agências reguladoras para investir em pesquisa, desenvolvimento e inovação poderão cumprir seus compromissos através de aporte de recursos em startups por meio de (1) fundos patrimoniais destinados à inovação regulados pela Lei nº 13.800/2019, (2) FIPs nas categorias capital semente, empresas emergentes, e empresas com produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação; e (3) investimentos em programas, em editais ou em concursos destinados a financiamento, a aceleração e a escalabilidade de startups, gerenciados por instituições públicas, tais como empresas públicas direcionadas ao desenvolvimento de pesquisa, inovação e novas tecnologias, fundações universitárias, entidades paraestatais e bancos de fomento que tenham como finalidade o desenvolvimento de empresas de base tecnológica, de ecossistemas empreendedores e de estímulo à inovação.

De plano, o artigo 9º, inciso I da LC 182/2021 relativo aos fundos patrimoniais exige a regulamentação por parte do Poder Executivo [6], ao passo que o artigo 10 dispõe que o Poder Executivo federal regulamentará a forma de prestação de contas dos três canais de investimento em startups citados no parágrafo anterior.

Isso, por si só, trava toda e qualquer estruturação de fundos patrimoniais, FIPs e investimentos em programas, em editais ou em concursos até a edição do decreto, porquanto não é razoável uma captação de recursos junto a empresas e aplicação em startups sem que as regras de prestação de contas estejam postas e claras aos agentes privados e públicos envolvidos.

Cumpre salientar que, especificamente no que toca aos FIPs, entende-se que o disposto no artigo 9º, §2º, inciso II, da LC 182/2021 está regulamentado pela Instrução CVM 578/2016, mas nada impede que a CVM debata e aprofunde o tema no âmbito da sua agenda regulatória de 2022.

Nos artigos 12 a 15 da LC 182/2021, relativos ao capítulo da Contratação de Soluções Inovadoras pelo Estado, não se vislumbra a necessidade de uma regulamentação, pois as suas disposições são cogentes para a administração direta da União, estados, municípios e Distrito Federal, ao passo que se estabelece que as empresas públicas e sociedades de economia mista poderão, nos termos dos seus regulamentos internos de licitações e contratações, adotar as disposições referentes à Contratação de Soluções Inovadoras pelo Estado.

Logo, entende-se que as disposições do capítulo da Contratação de Soluções Inovadoras pelo Estado possuem plena aplicabilidade, dependendo, nos casos das empresas públicas e sociedades de economia mista, de uma adequação dos termos do regulamento interno de licitações e contratações.

Cumpre mencionar que o único ponto que cabe ao Poder Executivo federal regulamentar é a atualização anual dos valores previstos no capítulo de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), mas tal disposição é uma faculdade do Poder Executivo federal, e não uma disposição mandatória.

No âmbito das disposições finais da LC nº 182/2021 tem-se alguns comentários. O artigo 16 traz alterações no âmbito da Lei nº 6.404/1976, sendo que a alteração proposta no artigo 294, relativa às publicações de companhia fechada que tiver receita bruta anual de até R$ 78 milhões já foi regulamentada pela Portaria do Ministério da Economia nº 12.071/2021 e pela Instrução Normativa DREI [7]/ME nº 112/2022.

Por seu turno, os artigos 294-A e 294-B, trazidos pela LC nº 182/2021, estabelecem a necessidade de uma regulamentação por parte da CVM no que se refere às condições facilitadas para o acesso de companhias de menor porte [8] ao mercado de capitais, estando, como visto acima, tal tema inserido na Agenda Regulatória da CVM de 2022, como um dos estudos normativos e Análise de Impacto Regulatório.

Já o artigo 17 da LC nº 182/2021 estabeleceu alterações na Lei Complementar nº 123/2006, nos artigos 61-A e 61-D, criados inicialmente pela Lei Complementar nº 155/2016, e no artigo 65-A, introduzido inicialmente pela Lei Complementar nº 167/2019.

O artigo 61-A da Lei Complementar nº 123/2006 buscou criar um instrumento de aporte que não integra o capital social da empresa, mas a sua aplicabilidade foi limitada na prática em decorrência das amarras legais previstas nos seus parágrafos. Neste sentido, a LC nº 182/2021 buscou aprimorar os parâmetros legais do instrumento previsto no artigo 61-A, trazendo os fundos de investimento como provedores de recurso às startups e delegando à CVM a regulamentação do tema, regulação esta incluída na Agenda Regulatória da CVM de 2022.

Já as alterações trazidas no artigo 65-A, no âmbito do chamado Inova Simples, buscaram aprimorar o regime especial simplificado que concede às iniciativas empresariais de caráter incremental ou disruptivo, que se autodeclarem como empresas de inovação, tratamento diferenciado com vistas a estimular sua criação, formalização, desenvolvimento e consolidação como agentes indutores de avanços tecnológicos e da geração de emprego e renda.

Sob a ótica regulatória, verifica-se que a Resolução CGSIM [9] nº 55/2020 foi atualizada pela Resolução CGSIM nº 68/2022, trazendo maior concretude às novas disposições inseridas pela LC 182/2021 no artigo 65-A da Lei Complementar nº 123/2006.

Diante do exposto, é notório que o Direito não caminha na mesma velocidade que os fatos, mas essa máxima não pode ser responsável por prejudicar a seara de ciência, tecnologia e inovação, cujo dinamismo é ínsito à sua existência e à criação das startups. Sem rapidez, não há inovação. Sem cautela, não há qualidade regulatória. Cabe, assim, às autoridades saber equilibrar o melhor dos dois mundos.

 


[4] SANTOS, Fabio Gomes dos; TONETTI Rafael Roberto Hage; e MONTEIRO, Vítor. Desafios jurídicos para o fomento financeiro da inovação pelas empresas. In: COUTINHO, Diogo Rosenthal; FOSS, Maria Carolina; MOUALLEM, Pedro Salomon Bezerra (org.). Inovação no Brasil: avanços e desafios jurídicos e institucionais, ob. cit., pp. 195-202.

[6] Registra-se que a menção da LC 182/2021 à Lei nº 13.800/2019 no âmbito do fundo patrimonial previsto no inciso I do artigo 9º pode trazer dificuldades consideráveis na elaboração do regulamento, na medida em que os fundos patrimoniais da Lei nº 13.800/2019 tem, conforme o seu artigo 1º, fonte de financiamento relativa a doações de pessoas físicas ou jurídicas, o que não se confunde com as obrigações legais de investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação, por parte de empresas, decorrentes de outorgas ou de delegações firmadas por meio de agências reguladoras. Em outras palavras, o fundo patrimonial proposto no artigo 9º, inciso I da LC 182/2021 possui fonte de financiamento totalmente diversa da prevista na Lei nº 13.800/2019. O mais harmônico seria a LC 182/2021 ter criado uma nova espécie de fundo patrimonial, não fundada em doações, mas sim em obrigações jurídicas de investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação, e sem mencionar expressamente a aplicação da Lei nº 13.800/2019, deixando para o Decreto regulamentar a totalidade do instrumento.

[7] Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração.

[8] Nos termos do caput do art. 294-B da Lei nº 6.404/1976, considera-se companhia de menor porte aquela que aufira receita bruta anual inferior a R$ 500 milhões.

[9] Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios

Autores

  • é advogada especialista em Direito Regulatório, membra da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, doutora em Direito Administrativo pela USP e autora do livro "Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa".

  • é especialista em Direito Tributário, mestrando em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo, analista jurídico da Finep - Financiadora de Estudos e Projetos.

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