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A crítica literária em Machado de Assis

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

24 de abril de 2022, 8h58

Em 30 de abril de 1878, Machado de Assis publicou uma crítica ao Primo Basílio, de Eça de Queiróz. Essa impressão foi estampada no jornal O Cruzeiro. Ao longo desse primoroso texto enfatizou o talento de Eça, a quem também criticou, com alguma severidade. Percebeu superficialidades no Primo Basílio, especialmente quanto a algumas das personagens, a exemplo de Luísa, a quem inferiorizou em relação a Madame Bovary. Eça seria uma projeção de Flaubert. Finalizando suas considerações lembrou que o fervor dos amigos poderia estranhar o modo como sentia e a franqueza como expressava suas opiniões. Concluía perguntando o que seria da crítica se o crítico não pudesse ser franco.

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As concepções que Machado tinha sobre a crítica literária podem ser sistematizadas em texto publicado no Diário do Rio de Janeiro, em 8 de outubro de 1865. Ideal do Crítico é o título dessa primorosa reflexão. Machado fixou os parâmetros da atividade crítica. Ideal do Crítico, em todos os sentidos, e para efeitos de crítica literária, é um texto inegavelmente canônico. O escritor traçou as linhas orientadoras de um trânsito intelectual que migra do cérebro do poeta (ou de qualquer escritor) para a consciência do crítico, de onde parte para os destinatários da crítica: o próprio poeta e o público interessado. A crítica interessa mais profundamente ao autor avaliado.

Em Ideal do Crítico apresentou condições, virtudes e deveres do crítico, ao que acrescentou a necessidade de uma inquebrantável perseverança. O crítico deve descarnar um livro até encontrar-lhe a alma. Essa tarefa exige que o crítico, segundo Machado, seja independente, mas que não seja injusto. Independência não significa um ilimitado poder para destruir, ou para prantear. Deve ser franco, mas não pode ser áspero. A sinceridade pode ser expressa com expressões lhanas e doces. A convicção do crítico deve estar nos lábios. A mão do crítico, na consciência, espaço metafísico onde indaga e contempla as leis do belo. Para Machado, a crítica não é profissão de rosas.

Machado comparou a tarefa do crítico à tarefa do legislador. O crítico busca uma representação literária, o legislador uma representação pública. Em ambos os casos devem, o crítico e o legislador, deter algo mais do que um simples anelo de falar à multidão. A crítica, prossegue Machado, deve ser sincera, elevada, bem pensada. O crítico tem como missão também animar, estimular, guiar estreantes, corrigir talentos. O crítico não pode se deixar levar pelo ódio, pela camaradagem e pela indiferença. Pode destruir, mas também pode alavancar uma carreira. Conta-se que a trajetória de Moacyr Scliar fora impulsionada também por uma generosa e sincera crítica de Wilson Martins.

Em seguida, Machado delineou as tarefas que predicam de uma crítica sincera. O crítico deveria meditar profundamente sobre a obra. A leitura não pode resultar de uma operação de recepção passiva. Não basta uma leitura superficial dos autores. E também não basta uma mera reprodução das opiniões do momento. A obra objeto da crítica deve ser pensada, avaliada, problematizada.

Do crítico espera-se conhecimento e domínio da ciência literária, o que em termos contemporâneos demanda tirocínio na linguística e na gramática. O crítico também tem como missão buscar o sentido íntimo da obra que analisa. Nesse passo, sigo com Machado, o crítico indaga se imaginação e verdade se encontram, e em que nível, na obra analisada. Há uma expectativa pedagógica que predica em toda crítica, no sentido de que serve tanto à obra publicada, quanto à obra em embrião. Crítica, na essência, é análise.

Machado exigiu do crítico o implemento de duas condições principais: ciência e consciência. Ódio, adulação e simpatia são circunstâncias e sentimentos que o crítico deve abominar. O crítico segue apenas a sua consciência, que tem como guia. O crítico não pode ser o oráculo dos aduladores. Deve ser independente. É livre de tudo e de tudo, isto é, da vaidade, própria, e dos autores. Para que a crítica seja mestra, deve ser imparcial.

A crítica deve ser sincera. Interesses pessoais e alheios, sob qualquer forma, destroem qualquer forma de crítica. Nesse passo, Machado invocou passagem da história romana para ilustrar seu argumento. Lembrou a invasão dos gauleses, quando Breno, o chefe dos invasores, exigiu uma determinada soma de ouro para deixar a cidade, que havia destruído e queimado. Os romanos, vencidos, pesavam o metal nas balanças, quando Breno colocava sua espada na balança que fixava o peso, o que resultava em uma exigência bem maior. Ante a crítica dos romanos humilhados, respondia Breno: Vae Victis!, isto é, Ai dos vencidos!. Essa reminiscência histórica ilustra o crítico inspirado por interesses pessoais, ou de terceiros. É um venal.

Machado insistia que o crítico deveria ser tolerante. A intolerância, escreveu, é cega; e a cegueira, é um erro. O crítico deve agir com urbanidade. É terminantemente vedado o uso de formas ásperas. A agressividade, observou, não é prova de independência. Para Machado, "o crítico deve ser educado por excelência". Nesse sentido, deve conceder e respeitar rivais. Lembrou a passagem também clássica de Cícero, que defendeu que se erguesse uma estátua a Pompeu, seu rival. Questionado, observou que é levantando a estátua dos inimigos que se constrói a própria estátua.

O crítico tem obrigação de dizer a verdade, mesmo quando enfrenta a vaidade dos poetas, o que de mais suscetível haveria no mundo. Por fim, Machado lembrava que o crítico não poderia transcender das discussões literárias para as altercações pessoais. Esse pequeno texto, Ideal do Crítico, sintetiza uma arte, um ofício, um permanente estado de atenção. É também um pequeno grande guia de exegese literária, fundado na sinceridade e na objetividade do intérprete.

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