Escritos de Mulher

Ecossistema Web3 e nova era da internet: lugar seguro para mulheres?

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20 de abril de 2022, 9h00

As mulheres querem participar da nova era da internet. Mas será a Web3 um espaço seguro para elas?

Spacca
O crescimento dos ecossistemas disponíveis na Web3 avança a cada dia: criptos, blockchain, DAOs, NFTs, DeFi e metaverso. Apesar da complexidade tecnológica, a nova Web não para de crescer e ganhar novos usuários e, como não poderia deixar de ser, traz novos desafios aos operadores do Direito.

Ainda que os novos ambientes virtuais tragam olhares duvidosos dos usuários acostumados às interações mais óbvias, ecossistemas como o metaverso chegaram para ficar, goste-se ou não da novidade. É bom lembrar que o mesmo estranhamento fez parte da implementação da Web1 e de sua transição para a Web2.

Fato é, as relações humanas vêm se vinculando cada dia mais às interações virtuais, seja por meio da criação de textos ou compartilhamento de fotos, vídeos e áudios. As formas de relacionamento na Web2 — nossa base de experiência virtual de interação pelas redes sociais nas últimas duas décadas — hoje ressoam como algo óbvio, cotidiano, implícito na vida dos usuários. O mesmo caminho deve ser percorrido pela Web3.

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Advogada Marina Ganzarolli
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Para além dos mais diversos ecossistemas virtuais e suas formas de interação, os avatares são extensões de pessoas humanas, sujeitas a falhas, defeitos e, como bem sabemos, a prática de crimes.

Antes de adentrarmos a análise sobre os perigos que surgem às mulheres por meio das interações sociais nos novos ecossistemas, é imprescindível compreendermos quem são os players que criam, constroem e comercializam os recursos disponíveis na Web3. Assim como na Web2, estamos falando de um ambiente predominantemente masculino. Não à toa, a inclusão das mulheres nas ciências e tecnologia é um grande desafio. As mulheres nas carreiras de Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática (no inglês Stem, Science, Technology, Engineering and Mathematics) são absoluta minoria, representando apenas 28% da força de trabalho, ao passo que os homens superam amplamente as mulheres que se formam na maioria dos campos Stem nas faculdades. As disparidades de gênero são particularmente altas em alguns dos empregos de crescimento mais rápido e mais bem pagos do futuro, como ciência da computação e engenharia. Na América Latina estes números são ainda piores.

Alguns fatores contribuem para a perpetuação deste gap de gênero: os estereótipos de gênero ou a ideia de que as áreas em Stem são exclusivamente masculinas; a baixa representatividade e modelos que sirvam de inspiração para meninas, LGBTQIAP+ e negras(os); a ausência de oportunidades inclusivas e mais equânimes; a discriminação, micro e macro violências a que às mulheres estão sujeitas diariamente.

Em dezembro passado, uma mulher britânica relatou ter sido cercada e assediada por uma gangue de homens no Horizon Worlds, plataforma virtual de interação social da Meta, empresa detentora do Facebook.

Segundo o relato compartilhado pela usuária Nina Jane Patel, ao entrar em uma sala, em menos de 60 segundos de interação virtual, foi cercada por cerca de quatro avatares que a encurralaram. Na sequência, Nina relatou ter sido apalpada pelos avatares sem o seu consentimento.

Por mais que tudo pareça muito novo, há relatos mais antigos sobre violência sexual em ambientes de simulação virtual, como de Jordan Belamire, que narrou ter sido apalpada por um avatar enquanto jogava Quivr. Segundo o relato, a mão do jogador chegou perto do seu corpo e passou a esfregar os seus seios, momento no qual Jordan ordenou que o avatar parasse mas que, para sua surpresa, serviu como estímulo para que ele continuasse. Jordan narrou, ainda, que foi perseguida pelo avatar, que passou a tocar outras partes do seu corpo, como a virilha.

A realidade virtual é uma tecnologia desenhada precisamente para que o corpo e o cérebro não possam diferenciar experiências virtuais daquelas que são reais. Ao permitir a imersão completa em ambiente simulado, por meio de efeitos visuais, sonoros e táteis, a interface virtual opera efeitos físicos no sistema nervoso central dos usuários. Como resposta neurobiológica, o trauma e suas consequências físicas e psicológicas reais podem ser experimentados pelas pessoas violadas nos ambientes virtuais.

Um dos recursos hoje disponíveis — e pouco conhecido — para proteção das mulheres no metaverso é a Safe Zone, um dispositivo que funciona como espécie de botão de emergência e "transporta" a usuária imediatamente para uma área segura. A intenção da iniciativa pode ser louvável, mas parte do pressuposto de que a responsabilidade pela proteção é da vítima. Quando pensamos no enfrentamento da violência contra as mulheres, este deslocamento da narrativa não é incomum: ao invés de focarmos no agressor, centralizamos nossos esforços na vítima. Educamos as meninas e mulheres a identificar o abuso e a denunciar, mas deixamos de lado a educação dos meninos e homens sobre limites e o que é consentimento. 

Recursos de proteção, denúncia e acolhimento de vítimas para incidentes de segurança de conduta sexual inadequada na Web3 são necessários, mas é também essencial o desenvolvimento de medidas preventivas de educação, compliance e regulamentação de condutas fundadas na convivência ética, no respeito e na diversidade dentro da Web3.

Por um lado, as disparidades entre homens e mulheres na tecnologia podem ser reduzidas com a ampliação de oportunidades educacionais afirmativas, do acesso à preparação e as oportunidades de carreira voltadas para mulheres. Por outro, a inclusão de mulheres e também de especialistas em gênero na criação e desenvolvimento das plataformas de interações sociais virtuais é medida urgente, que ampliará as políticas de prevenção e combate das violências sexuais nesses ecossistemas 

Nos últimos anos, vimos os crimes baseados no gênero por meios digitais ganharem espaço na jurisprudência e também na legislação penal brasileira.

O crime de "sextorsão", por exemplo, passou a ser reconhecido. Em suma, se trata de modalidade do crime de extorsão, que acontece quando o agente ameaça divulgar imagens íntimas da vítima — que pode ou não tê-las em seu poder, mas age de forma convincente, informando dados e senhas — e exige valores, outras imagens ou até mesmo uma interação sexual real para não fazê-lo. Essa última hipótese, inclusive, já chegou a ser entendida como o crime de estupro virtual. 

No Código Penal, a disseminação não consentida de imagens íntimas foi criminalizada em 2018 (artigo 218-C), assim como o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual de caráter íntimo e privado (artigo 216-B). 

Diante de tantas inovações, questionamos: haveria incidência, nesses casos, do tipo penal de importunação sexual (artigo 215-A), na medida em que, também por meios digitais, seria possível praticar "contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro"? 

Esta é uma reflexão cada vez mais atual, sobretudo diante da ausência de legislação específica a regular essas práticas, já que a especificidade dos novos recursos para perpetração da violência e intimidação de mulheres exige um olhar mais cuidadoso da legislação penal e dos agentes públicos que operarão sua aplicação.

No mundo real, vivemos grandes (e conhecidos) desafios no enfrentamento à violência sexual e na construção de ambientes saudáveis para a convivência entre mulheres e homens. No mundo virtual, os desafios serão ainda maiores: se não houver comprometimento efetivo para a construção de políticas públicas e privadas que efetivamente protejam as mulheres nos mais diversos ecossistemas virtuais, não avançaremos.

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