Opinião

Do uso de botijões em ruas servidas por gás canalizado

Autor

  • Flavine Meghy Metne Mendes

    é pesquisadora do Centro de Estudos de Regulação e Governança dos Serviços Públicos conferencista consultora jurídica doutoranda em políticas públicas pela UFRJ e autora de artigos científicos na ambiência regulatória.

18 de abril de 2022, 16h02

Durante um bom tempo permaneceu acirrada a disputa na fiscalização da utilização de gás em botijões ou cilindros em instalações internas de ruas servidas por gás canalizado, bem como a sustentação da ilegalidade da vedação do uso de botijões ou cilindros nas edificações dotadas de instalações internas situadas em ruas servidas por gás canalizado.

Marcello Casal jr/Agência Brasil
Marcello Casal Jr/Agência Brasil

De um lado, defendia-se a fiscalização a cargo do Estado, por meio da Secretaria de Estado de Defesa Civil juntamente com a Secretaria de Segurança Pública e, de outro, a competência para disciplinar a atividade de distribuição e fornecimento é da alçada da ANP e, portanto, federal. A rigor, este segundo ponto de vista prevaleceu no julgamento do Mandado de Segurança N° 542/00–TJ-RJ.

É válido rememorar, particularmente entre as maiores polêmicas discutidas naquela ocasião, o destaque à constitucionalidade, por meio do controle difuso, do artigo 144 do Decreto n° 897/1976, que resumidamente vedava a utilização de gás em botijões ou cilindros nas edificações dotadas de instalações internas situadas em ruas servidas por gás canalizado.

Predominou o entendimento de que o disposto no artigo 144 não foi recepcionado pela CF/88, eis que segue na contramão dos vetores da livre concorrência e iniciativa, "constituindo-se odiosa discriminação contra as demais empresas". Em decorrência, a segurança foi concedida.

Para efeitos práticos pretendia-se, nada mais nada menos, reafirmar as bases principiológicas da CRFB/1988, notadamente a clássica premissa da aceitabilidade da intervenção estatal na economia para correção das falhas de mercado. Em breve alusão ao contexto da pós-modernidade, que foi crucial na reposição do papel do Estado na sociedade, para Chevallier, o Estado "enquanto garantidor da continuidade e protetor do futuro (…) será também um tecelão, produtor de ligação social" e, portanto, "organizador do progresso".

Despido da coercitividade, ao Estado compete encorajar iniciativas dos novos atores sociais, sem perder de vista os anseios coletivos e riscos que marcam a ordem global. É vestido da função gerencial que ascende o cariz propulsivo e, com ele, iniciativas de fomento; quer seja fomento empresarial, fomento laboral, fomento financeiro ou fomento científico-tecnológico. A redução proporcional do espaço de atuação estatal na prestação direta de bens e serviços é um dos mais evidentes estímulos à coordenação de esforços que marca a nova concepção estatal, regulador, por excelência.

Segundo o método histórico de interpretação jurídica, o supracitado artigo 144 foi inserido dentro de um contexto impregnado por forte intervenção do Estado na vida privada e, sob esse ângulo, de alguma forma se justifica, especialmente se considerarmos as condições do meio social da época em questão (plena vigência do regime militar).

Entretanto, por se tratar de controle difuso, bojo do qual a declaração de inconstitucionalidade é dada de forma incidental, e, em regra, com efeitos vinculantes somente entre as partes, a matéria não culminou com maiores desdobramentos no âmbito do estado do Rio de Janeiro, o que levou por muito tempo a permanência da vetusta interpretação "restritiva" ao arrepio dos princípios e regras consagrados na Magna Carta.

Somente após 30 anos da promulgação da Constituição, ponderando-se os vetores postos em questão "livre iniciativa e segurança coletiva", o Decreto nº 42, de 17 de dezembro de 2018 — que regulamenta o Decreto-Lei n° 247, de 21 de julho de 1975, dispondo sobre o Código de Segurança contra incêndio e pânico no estado do Rio de Janeiro — passou a permitir o uso gás GLP em botijões ou cilindros em edificações situadas em ruas servidas por gás canalizado. A matéria, inclusive, foi regulamentada na Nota Técnica nº 3-02, editada pelo Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro, que define os requisitos de segurança contra incêndio e pânico para as edificações abastecidas por gás natural (GN) canalizado ou centrais de gás liquefeito de petróleo (GLP).

É óbvio que, sob o crivo da segurança, todo cuidado é pouco quando o assunto é a utilização do gás, quer seja o GLP ou o gás encanado. Acidentes ocorrem com o uso de GLP ou com o gás encanado, daí decorre o rigor na exigência das medidas de segurança como condicionantes à utilização do gás (GLP/GN).

O que está em jogo é admitir de vez a livre atuação do mercado e, portanto, enxergá-lo como o melhor mecanismo disponível para a produção eficiente de bens e serviços, de forma a maximizar a riqueza da sociedade, justificando-se a intervenção estatal em casos marcados pela preponderância onerosa ou menos eficientes de soluções privadas em detrimento da intervenção regulatória. Ao que se vê, foi essa a premissa que fomentou a abertura do mercado de gás em 2009, com destaque recente e especial à sanção da Lei n° 14.134/2021 (Nova Lei do Gás).

Com suporte na literatura internacional, as evidências apontam que regulações sensatas são aquelas que respeitam o papel fundamental da concorrência do livre mercado e dos efeitos benéficos que se espraiam na sociedade; como a proteção ao meio ambiente, saúde publica, segurança, direitos civis e investimentos em geral.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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