Opinião

Habeas Corpus não substitui recurso: data venia, Toron, Lenio tem razão

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17 de abril de 2022, 10h15

O Habeas Corpus é o mais importante remédio constitucional e o maior instrumento na defesa dos direitos individuais e ampliado para os direitos coletivos. Lenio Streck escreveu brilhante texto sustentando a impossibilidade de recurso especial e extraordinário pelo Ministério Público contra decisão concessiva de ordem de habeas. E veio a oposição de Alberto Zacharias Toron e depois sua proposta de extinguir recursos especiais e extraordinário para que tudo seja tratado via writ às cortes superiores, transitando em julgado acórdãos nos tribunais de segunda instância. A proposta se reverteria em uma atrocidade jurídica.

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A redução do número de recursos e Habeas Corpus nos tribunais superiores está diretamente ligada à capacidade que esses tribunais não têm de analisar e julgar tais solicitações. Esse é um fato primário da Justiça brasileira. Diante disso é preciso buscar uma vinculação da cultura de estabilidade nas decisões e na exigência de que os juízes e tribunais respeite e siga sua respectiva jurisprudência. Desta forma, a ampliação das liminares e de concessões de ordens de HCs e de recursos de forma rápida é muito mais eficiente do que impedir o recebimento dos apelos.

Na maioria das vezes, ministros se dedicam a reclamar e criar limitações protetivas ao volume de recursos em vez de buscar soluções. Esse é um fenômeno de decisões conflitantes com a jurisprudência, com a lei, e, principalmente, determina a Constituição Brasileira. Tivemos um claro episódio nacional que abalou a nossa democracia com a demora da reação do nosso imprescindível Supremo Tribunal Federal aos desmandos comedidos pela operação "lava jato".

Portanto, apesar de bem-intencionada, a proposta de Alberto Zacharias Toron, de extinção de recursos especiais e extraordinários, além da substituição por Habeas Corpus, é uma lógica de reformatio in pejus em relação à ampliação histórica do HC, já que, em determinados casos, vamos cassar a garantia do acesso aos recursos e subverter a presunção de inocência com o trânsito e julgado em segunda instância. Situação inédita e arbitrária para a defesa!

A reforma do Código de Processo Penal ou qualquer modificação constitucional precisa levar em conta a solução dos conflitos sociais que se revelam no crime, e não “jogar para baixo do tapete” os fatos concretos. A Justiça precisa estar atenta à mudança dos tempos, não apenas encobrir um problema com medidas fáceis, como, mais uma vez venho citar, os abusos promovidos em escala nunca vista antes em nossa realidade pela "lava jato", que deixou um rastro de sujeira aos olhos de todos. Foram necessários anos e a vaza jato para os desmandos serem cessados.

O HC, mesmo ampliado pela história jurisprudencial brasileira[1], serve para revogação de prisão vigente, mas também de forma preventiva para tratar de toda uma série de violações legais em processo penal a gerar prisão futura. Mesmo após trânsito em julgado, o instrumento exige, assim como o mandado de segurança, prova pré-constituída, a fim de uma análise evidente da violação. Mais, a amplitude das matérias a serem tratadas tem limitações no escopo de obviedade do fato impugnado.

Já os recursos especial e extraordinário, em que pese o limite de análise de prova, quando se trata de ferimento à legislação federal e à Constituição, têm amplitude de análise muito maior que o HC. E como apontado por Lenio Streck, abarcam a possibilidade de unificação de jurisprudência, de estabilização do sistema de Justiça.

Primeiramente é preciso entender que o processo penal é intervenção tardia após cometimento do crime, portanto, depois do "leite derramado". Para a solução do problema central, a defesa do bem jurídico, é necessário agir de forma preventiva com soluções culturais e sociais que evitem o dano. Nunca é demais repetir: com educação, saúde, habitação e também com medidas de segurança que vão de iluminação de vias públicas à presença do Estado.

É possível prevenir e dar dignidade para grande parte da população brasileira. Isso sim, um instrumento de prevenção ao crime, e, posteriormente, uma possibilidade que o “leite seja derramado” dentro de uma caneca no café da manhã de milhares de crianças brasileiras.

Aponto que nenhuma alteração reformista legislativa solucionará os 41 mil homicídios, os 56 mil casos de estupros e mais de 1.300 feminicídios cometidos em 2021, pois, depois de ocorridos, “Inês é morta”.

A eficiência do sistema de Justiça penal também está ligada a opções de estruturação do sistema investigativo diante do baixíssimo índice de solução de crimes. Por exemplo, são 130 homicídios por dia no Brasil, sendo que 85% não são solucionados, segundo o Conselho Nacional de Justiça em 2015. Outro dado chocante: entre 2009 e 2019, mais de 333 mil jovens, entre 15 e 29 anos foram assassinados, como mostra o Atlas da Violência.

Quanto ao processo, para que ele seja eficiente precisamos mudar opções legislativas para que os números de procedimentos que visam a pena de prisão diminuam. E como escrevi, não basta sem um projeto de identificação de armas e projéteis, precisamos avançar neste tema para que exista um banco de dados completo para a Justiça ter um porto seguro, literalmente seguro, para julgar com independência e provas substanciais. Um outro exemplo, alteração de penas, como furto, estelionato, crimes menores envolvendo drogas que levem para enquadramentos de descriminalização, com juizados especiais de pequenas causas e penas alternativas funcionando em todo território nacional. Afinal prisões nunca amadureceram países ou instituições e sim liberdades civis.

Precisamos de uma Justiça descentralizada e conectada às reais demandas da sociedade, adaptada aos novos tempos, para assim dar velocidade e capacidade de análise para os magistrados. Com isso, fica reservado o processo penal tradicional para a proteção da vida, liberdade individual e sexual, que são bens jurídicos relevantes. Assim não será necessária a redução de medidas de recurso de defesa. O Habeas Corpus não se confunde nem pode ser solução para vedação de recursos especiais e extraordinário. Afinal, todos têm o direito de defesa até a última instância, como prevê o nosso eterno farol, a Constituição Federal.

Lenio tem razão ao buscar uma estabilidade nas decisões judiciais e não permitir que se realize interpretações com base em mera opinião simulando que ocorre “há muito tempo”.

Então, vamos a Pontes de Miranda, que na clássica obra História e prática do Habeas Corpus defendeu sobre recursos em ação de Habeas Corpus que, “na hipótese de denegação, o pedido pode ser renovado indefinidamente: “A refusal to discharge on one writ is not a bar to the issuance of a new writ”, tal é a lição inglesa e a norte-americana; não era preciso que a lei brasileira o declarasse.” (MIRANDA, Pontes de. História e prática do habeas corpus, tomo 1. Campinas: Bookseller, 1999, p. 218).

Da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal identificam-se precedentes que corroboram ao exposto por Pontes de Miranda. É o caso do seguinte julgado proferido pelo ministro Sepúlveda Pertence: “Habeas corpus: renovação: admissibilidade, salvo a mera reiteração de impetração anteriormente denegada. A decisão denegatória de habeas corpus não faz coisa julgado e, portanto, não impede a renovação do pedido” (STF, HC 80.620, relator ministro Sepúlveda Pertence, 1ª turma, j. 27.04.2001).

Da conciliação de doutrina e jurisprudência decorre a conclusão de que decisão em Habeas Corpus não faz coisa julgada quando denega a pretensão do paciente. Esta é uma circunstância que deve ser levada em consideração no debate sobre a pertinência de recursos contra decisão em ação de Habeas Corpus.

Vale, ainda, anotar que a característica de renovação e recursos defensivos faz parte da natureza histórica do Habeas Corpus como instrumento de defesa dos direitos do cidadão no Estado Democrático de Direito. Bem assim, o Supremo Tribunal Federal, por meio do ministro Ricardo Lewandowski, já firmou que “o Habeas Corpus não pode ser utilizado pelo Ministério Público como instrumento de promoção dos interesses de acusação, ainda que motivado pelas melhores das intenções, uma vez que possui a função específica de tutelar a liberdade individual do paciente” (STF, RO em HC 192.998, relator ministro Ricardo Lewandowski, j. 29.10.20, que pode ser conferido em aqui). É dizer que desvios de finalidade do remédio heroico, assim como diminuições no espectro de possibilidades do seu manejo, enfraquecem o instituto e, portanto, manter a higidez do Habeas Corpus é questão de suma importância.

Pontes também defende a impossibilidade de apelação contra decisões concessivas de Habeas Corpus (MIRANDA, Pontes de. História e prática do habeas corpus, tomo 1. Campinas: Bookseller, 1999, p. 219). Lenio acerta ao defender que não cabe recurso especial contra concessão. Ora, Habeas Corpus não substitui recurso. Data venia, Toron, Lenio tem razão

[1] Veja-se, a propósito da ampliação histórica do Habeas Corpus, que durante a ditadura militar brasileira advogados "começaram a impetrar “habeas corpus de localização”, em que se alegava que não tinha a prisão sido feita por motivos de segurança nacional e se pedia que fossem expedidos ofícios a todos os órgãos de repressão, procurando, com isso, apenas localizar o preso.” (Cf. FERNANDES, Fernando Augusto. Voz Humana: a defesa perante os Tribunais da República. Disponível aqui

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