Opinião

Abolitio criminis parcial na nova lei de licitações

Autores

  • André Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor nos cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) do IDP/Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

  • Marília Fontenele

    é advogada criminalista mestre e doutoranda em Direito pelo IDP-Brasília e professora de Direito Penal no IDP-Brasília.

13 de abril de 2022, 6h02

Em abril de 2021 foi publicada a Lei 14.133, que agora rege as licitações e contratos administrativos, revoga alguns artigos da antiga Lei 8.666/1993 e acresce ao codex penal os crimes contra a Administração Pública. Por essas características, essa recentíssima legislação traz questões ainda controversas e sem parâmetros específicos dos tribunais sobre sua aplicação penal no tempo.

Spacca
O criminalista André Callegari

Sobre a revogação dos crimes da lei antiga, importa dizer que na esmagadora maioria das condutas criminais houve a manutenção da incriminação de determinados comportamentos, agora previstas no Código Penal, por força do princípio da continuidade normativo-típica, sem a ocorrência do instituto da abolitio criminis.

No entanto, há uma exceção: a conduta prevista pela segunda parte do caput do revogado artigo 89 da Lei 8.666/93, que previa como crime "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade", não mais existe.

A conduta prevista anteriormente [1] passou, na vigência da nova lei, a ser prevista no artigo 337-E [2] sem o comando citado ipsis litteris em linhas anteriores.

Portanto, o tipo abolido se dava nas situações em que a própria lei não exige o procedimento licitatório para a contratação, mas o agente público, em situação de error in procedendo, erra no aspecto formal da execução do ato administrativo, sendo exagero tratá-lo como crime. As sanções administrativas que lhe são próprias resolvem, satisfatoriamente, eventuais problemas existentes.

A corroborar tal entendimento — o de que a conduta foi propositalmente descriminalizada pelo legislador — tem-se o texto da Proposição Originária (PL 6814/2017). Nele, a redação primeva do preceito primário do artigo 337-E continha, quase que nos mesmos termos, a conduta prevista na segunda parte do revogado artigo 89, caput:

"Artigo 337-E. Contratar diretamente fora das hipóteses previstas em lei ou deixar de observar as formalidades pertinentes à contratação direta".

Observa-se que, posteriormente, durante a tramitação do PL 6814/2017 que deu origem à Lei 14.133/21, o legislador optou por suprimir a conduta omissiva própria de "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade".

A razão para a inegável abolitio criminis operada pela nova lei se dá justamente no entendimento que discrepâncias formais no procedimento de contratação não comprometem o interesse público nem adquirem relevância penal, sendo mera irregularidade administrativa.

Ilustra esta visão a lição da professora Helena Regina da Costa Lobo:

"Tratava-se de previsão muito criticada pela doutrina. Afinal, incriminava-se o comportamento de contratar diretamente nos casos, em que, de fato, cabia a dispensa ou a inexigibilidade de licitação, porém sem que as formalidades fossem devidamente seguidas. Não havia qualquer justificativa material para a incriminação de tal conduta, desprovida de ofensividade ao bem jurídico (sequer na modalidade de perigo abstrato), de proporcionalidade e devendo ser considerada como penalmente irrelevante, sobretudo em um âmbito já exaustivamente sancionado por outras áreas do direito" [3].

Portanto, está abolida agora a conduta omissiva própria do agente que, em situação que autorizaria a dispensa ou a inexigibilidade da licitação, faz a contratação direta descumprindo algum dos preceitos normativos previstos na legislação de regência para deixar de proceder essa dispensa ou a inexigibilidade.

E nesse particular, entendemos que a contratação de shows artísticos por empresários com cartas de exclusividade com limitação de data ou localidade específica não mais se agasalha pela tipicidade e trata-se de mero erro procedimental, já que mera formalidade quando da elaboração do processo licitatório.

Não havia, antes da edição na nova lei, qualquer vício na elaboração das cartas de exclusividade na forma descrita em linhas anteriores, já que atos jurídicos, previstos e válidos, eis que firmado por pessoas capazes, com objetos lícitos e em forma não vedada por lei.

Não se desconhece que a novel legislação, no §2º do artigo 74 [4] restringe a exclusividade a representação permanente. Porém, na legislação anterior não havia essa previsão expressa, em flagrante caso de novatio legis in pejus, sendo este preceito secundário passível de aplicação apenas aos delitos cometidos após a vigência da nova Lei de Licitações.

E sobre a complementação de preceitos, há de se fazer nova digressão no âmbito dos crimes em licitação.

Por se tratarem normais penais em branco, sua configuração é dependente de conceitos e normas do direito administrativo. Portanto, quando a norma complementadora é alterada, estabelecendo uma situação menos benéfica, não deverá retroagir, como na hipótese do tópico anterior. Já em hipótese mais benéfica ao imputado, deverá ter aplicação retroativa.

E como visto acima, o complemento do artigo 74 da nova Lei, assim como o antigo artigo 25 da Lei 8.666/93, integram a estrutura do tipo penal, já que lhe conferem conteúdo e definição, sendo impossível sua retroação na esteira de diversos precedentes das cortes superiores.

E com a alteração do complemento desta norma, afasta-se o requisito que baseia a contratação direta, confirmando-se esta enquanto conduta atípica. Portanto, necessária a retroação para o reconhecimento de que a conduta em tese praticada diz respeito a mera irregularidade procedimental, na esteira do artigo 2º, parágrafo único do Código Penal e do artigo 5º, XL, da Constituição Federal.

Conclui-se, portanto, que a nova rubrica do artigo 337-E, por descriminalizar a conduta de deixar de observar a formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade, tem como mandatória sua incidência retroativa, devendo-se reconhecer seus efeitos retroativamente para todos os casos em que houve sua imputação e incidência, já que o fato passa a ser penalmente irrelevante.


[1] Lei 8.666/1993. Artigo 89 — Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

[2] Código Penal. Artigo 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

[3] BREDA, Juliano (Coord.). Crimes de licitação e contratações públicas: comentários aos tipos penais, de acordo com a nova Lei de Licitações e Contratações Públicas (Lei 14.133/2021). São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters Brasil, 2021.

[4] Lei 14.133. Artigo 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de: § 2º Para fins do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se empresário exclusivo a pessoa física ou jurídica que possua contrato, declaração, carta ou outro documento que ateste a exclusividade permanente e contínua de representação, no país ou em Estado específico, do profissional do setor artístico, afastada a possibilidade de contratação direta por inexigibilidade por meio de empresário com representação restrita a evento ou local específico.

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