Opinião

A possibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro da ata de registro de preços

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12 de abril de 2022, 19h04

A Lei nº 14.133/2021, conhecida como Lei de Licitações e Contratos Administrativos, prevê uma série de procedimentos que podem ser utilizados pela Administração para auxiliar o procedimento licitatório ou mesmo vir a substituí-lo. Entre eles está o sistema de registros de preços, compreendido como o "[…] conjunto de procedimentos para realização, mediante contratação direta ou licitação nas modalidades pregão ou concorrência, de registro formal de preços relativos a prestação de serviços, a obras e a aquisição e locação de bens para contratações futuras" (inciso XLV do artigo 6º).

Em linhas gerais, se trata de um procedimento empregado para compras reiteradas de determinados bens ou serviços, quando não se sabe o momento em que eles serão entregues ou as quantidades que serão necessárias para satisfazer a necessidade pública. Nessas situações, o sistema de registro de preços autoriza que a Administração realize diversas contratações concomitantes ou sucessivas sem precisar instaurar um procedimento licitatório para cada item, trazendo mais agilidade e evitando a formação de um estoque muitas vezes desnecessário, especialmente em se tratando de bens perecíveis.

O produto da finalização do sistema de registro de preços é a ata de registro de preços, que é o "[…] documento vinculativo e obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, no qual são registrados o objeto, os preços, os fornecedores, os órgãos participantes e as condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no edital da licitação, no aviso ou instrumento de contratação direta e nas propostas apresentadas" (inciso XLVI do artigo 6º da Lei de Licitações).

Nos termos do artigo 83 da Lei de Licitações, a ata de registro de preço implica em um compromisso de fornecimento dos produtos registrados nas condições estabelecidas mas não gera um dever de contratação, podendo a Administração, inclusive, realizar licitação específica para a aquisição de produtos já registrados em ata, desde que apresente motivação idônea para tanto. Importante mencionar, ainda, que o prazo de vigência da ata é de um ano, prorrogável por igual período se comprovado o preço vantajoso para a Administração (artigo 84 da Lei).

 Agora, sendo o prazo de vigência da ata de até dois anos, estaria o fornecedor obrigado a manter intactos os preços registrados durante todo o período? Em outras palavras, se durante a vigência da ata de registro de preços ocorrer evento que impacte no preço dos produtos registrados, é possível que seja procedido ao seu reequilíbrio econômico-financeiro?

O pedido de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato é motivado pela ocorrência de "[…] caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato" (artigo 124, inciso II, d). Se aplica ao caso a teoria da imprevisão, que reconhece que determinados eventos ocorridos sem culpa das partes podem vir a alterar o equilíbrio econômico-financeiro originalmente pactuado. Em tais casos, imperioso se faz o reequilíbrio contratual em favor da parte financeiramente prejudicada, de forma a se manter a estabilidade na relação entre as obrigações do contratado perante o Estado e a sua justa retribuição.

São situações que se enquadram na teoria da imprevisão:

a) força maior e caso fortuito, casos em que, por ação de terceiros ou fato da natureza, ocorre uma alteração substancial na execução do contrato. Por exemplo: o estouro repentino de uma guerra que acaba por aumentar o preço global de diversos bens e produtos e/ou valorizar/desvalorizar determinadas moedas. Nesse caso, existiria um desequilíbrio econômico-financeiro desproporcional se o contratado fosse obrigado a arcar integralmente com os custos adicionais necessários para a regular execução do contrato;

b) fato do príncipe, que se configura quando um ato do Poder Público, ainda que não diretamente relacionado ao contrato, o afeta de modo relevante. Por exemplo: é contratada uma empresa para fornecer o transporte público na cidade e, após a contratualização, o município edita uma lei garantindo passe livre a todos os indivíduos menores de 18 anos  no cálculo da tarifa ofertada pelo particular foram incluídos os valores a serem pagos pelos indivíduos dessa faixa etária, de modo que a repentina gratuidade impacta na remuneração a ser percebida pelo licitante;

c) fato da Administração, que ocorre quando uma atuação estatal específica incide diretamente sobre o contrato, inviabilizando a sua execução nos termos inicialmente pactuados. Por exemplo: há a contratação de uma empresa para a construção de determinada obra que depende de prévia desapropriação e essa desapropriação é negada pelo Estado;

d) interferências imprevisíveis ou previsíveis de efeitos imensuráveis, hipótese em que fatos existentes na época da contratação, mas desconhecidos em sua especificidade pelas partes, inviabilizam a execução do contrato. Por exemplo: o terreno a ser utilizado para a realização de determinada obra é pantanoso e o contratado não tinha conhecimento dessa situação.

A questão, então, é saber se o instituto do reequilíbrio pode ser aplicado à ata de registro de preços. Antes, porém, um esclarecimento se mostra necessário. Tendo em vista que a antiga Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93) continuará em vigor até 04/2023 (artigo 193, inciso II, da Lei nº 14.133/2021), há que ser realizada uma diferença entre as atas de registro de preços constituídas com base na lei antiga e as atas constituídas com base na lei nova, e isso por um motivo principal: às atas assinadas com base na lei antiga se aplicam as disposições do Decreto nº 7.982/2013, editado para regulamentar o sistema de registro de preços na vigência da Lei nº 8.666/1993.

Acontece que a aplicação desse Decreto às atrás de registro de preços firmadas sob a luz da Lei nº 14.133/2021 é questionável. É possível defender que as disposições nele previstas não podem ser aproveitadas para as atas constituídas sob o novo regime jurídico, o qual demandaria a edição de novo regulamento. De qualquer forma, entendemos ser importante a abordagem da problemática objeto do presente texto à luz da Lei nº 8.666/93 e do Decreto nº 7.892/2013 para demonstrar que mesmo antes da nova Lei de Licitações já era possível o reequilíbrio econômico-financeiro da ata de registro de preços, e que eventual edição de novo regulamento pode ser uma oportunidade de positivar o tratamento jurídico adequado para o assunto.

Pois bem. De acordo com o mencionado decreto é possível a atualização dos preços registrados em ata quando constatado que evento superveniente e sem culpa das partes tenha os impactado, seja para minorar ou para majorar os valores registrados (artigo 17). Não se trata, contudo, de um direito do licitante, mas de uma mera faculdade da Administração, que pode conceder ou não o ajuste. Com efeito, nos termos do Decreto, existe uma diferença entre o pedido de reequilíbrio de um contrato administrativo tradicional (regulado pela Lei de Licitações) e o pedido de reequilíbrio da ata de registro de preços, e isso porque, nesse último caso, é sempre possível a liberação do fornecedor do compromisso assumido. Vejamos:

a) quando, por motivo superveniente, os preços registrados se tornarem superiores aos preços praticados no mercado, deve o órgão gerenciador convocar os fornecedores para fins de renegociação, sendo que aqueles que não aceitarem reduzir os seus preços serão liberados do compromisso assumido  art. 18;

b) por outro lado, quando for o caso de defasagem dos preços registrados com relação aos preços praticados no mercado, não há o que se falar obrigação de reequilíbrio, sendo possível a liberação dos fornecedores que não tiverem condições de cumprir com suas obrigações nos termos inicialmente previstos (artigo 19);

c) em qualquer caso, não havendo êxito nas negociações, a medida que se impõe é a revogação da ata de registro de preços (parágrafo único do artigo 19).

A redação do Decreto é confusa, mas uma interpretação sistemática de seus artigos 17, 18 e 19 nos leva a seguinte conclusão: é possível a atualização dos valores previstos na ata de registro de preços, seja para minorá-los ou majorá-los (artigo 17). Contudo, enquanto no primeiro caso (redução dos preços) esse ajuste é obrigatório, sob pena de revogação da ata (artigo 18), no segundo caso (aumento dos preços) ele é facultativo, e isso porque pode a Administração liberar o fornecedor de seus compromissos (artigo 19).

Esse entendimento não é corroborado por alguns que, partindo de uma leitura isolada e equivocada do artigo 19 do Decreto, defendem não ser possível a aplicação do reequilíbrio econômico-financeiro ao sistema de registro de preços. Porém, aqueles que possuem esse entendimento ignoram que o artigo 17 do mesmo decreto é claro ao estabelecer que os preços registrados em ata poderão ser revistos em decorrência de eventual redução dos preços praticados no mercado ou de fato que eleve o custo dos serviços ou bens registrados. O artigo 19 deve ser lido, nesse sentido, como uma alternativa ao artigo 17, no sentido de que pode a Administração ou proceder ao ajuste dos preços através de negociação com os fornecedores (artigo 17) ou à liberação dos fornecedores de seus compromissos (artigo 19).

De se destacar ainda que qualquer leitura diferente acarretaria na inconstitucionalidade do decreto por extrapolação dos limites do poder regulamentar, e isso por um motivo muito simples: a Lei nº 8.666/93 somente estabeleceu a necessidade de serem fixadas condições para a alteração/atualização dos preços registrados na ata  artigo 15, §3º, inciso II. Ora, se a lei não impede a majoração dos preços registrados em ata, muito menos o decreto poderia fazê-lo. Nesse sentido, interpretar o Decreto no sentido de que não é possível a majoração da ata de registro de preços implica na criação de uma exceção rigorosa e incompatível com a exigência legal, afinal, parece óbvio que o artigo 19 do Decreto não fixa condições para a atualização dos preços registrados, mas tão somente prevê mecanismo que libera o fornecedor do compromisso, o que é coisa bem diferente.

Em resumo, o Decreto nº 7.892/2013 não veda a revisão dos preços registrados caso ocorra posteriormente à assinatura do ata evento superveniente autorizador do reequilíbrio econômico-financeiro do contrato  embora a ata de registro de preços não seja propriamente um contrato, é o artigo 17 do Decreto que estabelece que a ela se aplicam as disposições referentes ao instituto do reequilíbrio. O artigo 19 deve ser lido como uma alternativa ao ajuste dos preços. Dadas as peculiaridades que envolvem o sistema de registro de preços, cuja ata não cria uma obrigação de contratação por parte da Administração, esta pode, caso perceba não ser vantajosa a atualização dos preços registrados, liberar o particular do compromisso assumido.

De qualquer forma, como já mencionado, as disposições do Decreto nº 7.892/2013 se aplicam somente às atas constituídas com base na Lei nº 8.666/93. A nova Lei de Licitações, ao dispor sobre o sistema de registro de preços, seguiu a lógica da lei antiga e apenas estabeleceu a necessidade de serem fixadas as condições a serem atendidas para a alteração dos preços contidos na ata de registro de preços, sem maiores detalhamentos  artigo 82, inciso VI e §5º, inc. IV, da Lei nº 14.133/2021. Então, estamos diante de uma janela de oportunidade importante e promissora: pode a União, na edição do novo decreto, pôr fim às imprecisões originadas pela redação confusa do decreto antigo e estabelecer de modo expresso e claro a possibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro da ata de registro de preços.

Nesse sentido, é de se notar que, para além dos argumentos jurídicos, sequer faz sentido proibir o ajuste dos preços registrados na ata, e isso porque tal medida conduziria a necessidade de revogação da ata de registro de preços sempre que for necessária a sua majoração. Neste ponto, basta lembrar que a revogação da ata implica na realização de uma nova licitação que tende a registrar os mesmos preços que seriam obtidos com o reequilíbrio da ata, afinal, os preços de mercado aumentaram e as propostas dos novos licitantes estarão neles baseados. Ou seja, a lógica é que os preços obtidos com a atualização da ata sejam os mesmos obtidos com a realização de uma nova licitação. Por que, então, negar por completo a possibilidade de reequilíbrio? Trata-se de entendimento contraproducente e que viola um dos princípios mais básicos da licitação: o da eficiência.

Por todo o exposto, não é preciso muito para se concluir pela possibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro da ata de registro de preços, seja para minorá-los ou para majorá-los. No âmbito da Lei nº 8.666/1993 basta uma leitura sistemática dos artigos 17 e 19 do Decreto nº 7.892/2013 para resolver a questão. A diferença é: no primeiro caso (redução), o ajuste é obrigatório, afinal, se a ata não gera uma obrigação de contratação não tem porquê a Administração permanecer vinculada a um documento que prevê preços superiores aos praticados no mercado. Caso nenhum dos fornecedores concorde em reduzir seus preços, a revogação da ata é a medida que se impõe; no segundo caso (aumento), trata-se de uma faculdade. Sopesando as vantagens e as desvantagens de cada medida, e principalmente levando em consideração que muito provavelmente os preços obtidos com a atualização da ata serão os mesmos obtidos com a realização de uma nova licitação, cabe à Administração decidir se ajusta os preços ou libera o particular dos compromissos assumidos.

E, se no regime jurídico anterior era assim, não há razões pra se defender posicionamento diverso à luz do novo regime. Espera-se, contudo, que na redação de eventual novo decreto regulamentar a União seja mais clara e precisa ao estabelecer a possibilidade de reequilíbrio-econômico financeiro da ata de registro de preços.

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