Observatório Constitucional

Ações contra estados e DF na Justiça estadual de outro ente federado no CPC/15

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2 de abril de 2022, 8h00

1. O julgamento das ADIs 5.737 e 5.492
Está pautado, para o dia 7/4/2022, o julgamento de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que questionam artigos do Código de Processo Civil de 2015 que autorizam o ajuizamento de ações contra o Distrito Federal e os estados em juízos de outros entes federados [1]. Em outras palavras, tais dispositivos autorizam que uma ação contra o Distrito Federal, por exemplo, seja ajuizada no Tribunal de Justiça do Amapá ou de qualquer outro ente federado.

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Trata-se do primeiro julgamento de que se tem notícia que aprecia pela via direta e abstrata a constitucionalidade de dispositivos do novo Código, razão pela qual o caso merece destaque.

O objetivo do presente artigo não é apreciar o mérito dos argumentos jurídicos em si, mas o de explorar, a partir de exemplos práticos, um dos aspectos que tem sido enfatizado nas manifestações apresentadas, qual seja, o da necessidade de se observar o pacto federativo também no que tange à jurisdição. Para tanto, no próximo tópico serão expostos, brevemente, os principais fundamentos jurídicos das posições favoráveis e contrárias à declaração de inconstitucionalidade de tais dispositivos para, no tópico seguinte, apresentar exemplos práticos das dificuldades federativas que as normas atacadas impõem.

2. Os argumentos
As ações baseiam-se em três principais argumentos para requerer a inconstitucionalidade das normas. Primeiro, argumenta-se que a Constituição Federal assegura aos estados-membros a capacidade para legislar sobre a competência de seus tribunais de justiça (artigo 125, caput e §1º), de maneira que a norma impugnada suprime o papel da justiça estadual como componente da autonomia do ente federado. Segundo, a competência para legislar sobre direito processual civil (artigo 22, I, CF) não permite à União criar um regime de competência territorial que suprime o significado da justiça estadual para os estados. Terceiro, tais normas abrem a possibilidade de uso abusivo da prática denominada "fórum shopping", o que não se coadunaria com o princípio do devido processo legal.

Os que defendem a constitucionalidade das normas em questão, por outro lado, alinham duas vertentes de argumento. Em primeiro lugar, argumentam que os dispositivos questionados servem à concretização da garantia do acesso à justiça, na medida em que tendem a remover barreiras econômicas para que os cidadãos ajuízem ações contra os estados. Em segundo, que o pacto federativo brasileiro, por ter formação centrífuga, confere à União Federal competência mais dilatada para legislar sobre diversas matérias, mormente quanto à competência jurisdicional.

O próximo tópico se distanciará das discussões jurídicas mais abstratas acerca do pacto federativo, bem como da interpretação a respeito das competências constitucionalmente estabelecidas, focando em analisar concretamente os impactos que a possibilidade de ajuizamento de ações contra os estados em outros foros acarreta para a autonomia do ente federado, especialmente nos casos em que estas discutam a correta aplicação da legislação local daquele que ocupa o polo passivo da demanda.

3. As consequências de ordem prática
Uma primeira aproximação ao tema da autonomia federativa decorre do poder-dever conferido a todo e qualquer órgão jurisdicional de apreciar, em sede de controle difuso, a constitucionalidade de leis ou atos normativos em face da Constituição Federal e da Constituição Estadual. Desde o Decreto 848/1890, que estabeleceu o controle difuso no Brasil, adotou-se a tese de Marshall no célebre caso Marbury v. Madison de que cabe aos juízes, antes de aplicar determinada lei, verificar, inclusive de ofício, sua compatibilidade com a Constituição, pois norma inconstitucional é nula de pleno direito. No caso do direito estadual, tal apreciação envolve, também, a análise da conformidade entre a norma estadual e a Carta política local. Ou seja, há duplo crivo de constitucionalidade.

No contexto, a questão que exsurge é saber se os juízes de outras jurisdições teriam competência para analisar a legislação de outro Estado em face da Constituição também de outro Estado. A resposta parece-me ser desenganadamente negativa, pois tal competência não está prevista nem na Constituição Federal nem nas Constituições Estaduais. Com efeito, não há notícia de Carta Estadual que tenha conferido aos juízes locais competência para apreciar a constitucionalidade de leis em face de Constituições Estaduais alheias. Como o exercício do controle difuso é fase inexorável da atividade jurisdicional, este parece ser um motivo forte para reconhecer a inconstitucionalidade do CPC no ponto.

No entanto, caso a resposta ao questionamento elencado no parágrafo acima fosse afirmativa, haveria, ainda, o desvirtuamento da cláusula de reserva de plenário (artigo 97, CF/88) [2]. Isso porque eventual pronunciamento do plenário ou do órgão especial do Tribunal de Justiça a respeito da (in)constitucionalidade de norma local em face da respectiva Constituição Estadual não vincula os juízes dos outros entes federados, que poderiam analisar livremente a compatibilidade da norma questionada com a Carta política local, o que iria de encontro à finalidade visada pelo constituinte ao impor quórum qualificado para declaração incidental de inconstitucionalidade: conferir harmonia e uniformidade aos pronunciamentos dos juízes e Tribunais.

Mas não é só. Ainda que pudéssemos imaginar um processo que não demande a verificação da constitucionalidade das normas a serem aplicadas, exigir dos juízes estaduais o conhecimento da legislação e da jurisprudência de outro estado é um trabalho hercúleo, que não parece ser factível, razão pela qual não se coaduna com o princípio do acesso à justiça.

Justamente por esse motivo, o legislador excepciona a regra de que as fontes de direito independem de prova (iura novit curia) e prescreve às partes o dever de provar o teor e a vigência do direito estadual ou municipal invocado, se assim o juiz determinar (artigo 376, CPC/15).

Aliás, o argumento de que o CPC autoriza a celebração de convênios entre as procuradorias estaduais para permitir que advogados públicos atuem nos processos em favor de outro ente público apenas reforça a impropriedade de tal solução, pois exige que os procuradores tenham o domínio do ordenamento jurídico de outro estado.

No ponto, é importante destacar que a Constituição da República discrimina uma série de temas sobre os quais compete aos Estados-membros legislar, bem como lhes atribui capacidade para dispor a respeito de todas as matérias que não estejam reservadas à União ou aos municípios. Assim, há uma infinidade de assuntos que são disciplinados de maneira diferente pelos vinte e seis estados-membros e pelo Distrito Federal, tais quais, o estatuto do servidor público, a proteção ao meio ambiente, as regras de licitação e contrato público etc.

Corre-se o risco, outrossim, de que, com relação a determinado tema a jurisprudência de um tribunal de justiça seja contrária ao entendimento de outro, o que pode levar à banalização da escolha do foro por parte dos demandantes (forum shopping) [3]. Imagine, por exemplo, que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios tenha decidido que, com base na legislação distrital, o contribuinte de ICMS somente faz jus ao creditamento do valor devidamente declarado, ao passo que a jurisprudência de outros tribunais estaduais, à luz da legislação local, tenha caminhado em sentido oposto. Nessa situação, será vantajoso o ajuizamento de ação contra o Distrito Federal em outro foro, pois a probabilidade de sagrar-se vencedor é muito maior.

O mais dramático é que, nessa situação, não haverá mecanismo para uniformização de jurisprudência, visto que os recursos especial e extraordinário não são cabíveis com base em violação à lei local (Súmula 280/STF).

Noutro giro, é importante consignar que vários estados e o Distrito Federal criaram varas especializadas de Fazenda Pública e de Execução Fiscal. Essa iniciativa tem como escopos facilitar a compreensão por parte dos magistrados das matérias de direito público, bem como unificar o entendimento sobre esses temas. Com o advento do CPC/15, a lógica que o legislador local tentou imprimir nesses casos se perde, pois as ações contra o ente público poderão ser ajuizadas em qualquer comarca do país, muitas vezes em varas que acumulam as mais diversas matérias (criminal, família, júri, etc).

Ademais, essa pulverização de ações nas mais variadas comarcas do país traz outro inconveniente ao bom funcionamento do aparato judicial: eventuais vitórias do particular provocariam a expedição de precatórios e requisições de pequeno valor por parte da presidência do Tribunal de Justiça correspondente, o que certamente dificultaria o já complexo procedimento de pagamento dos débitos da Fazenda Pública.

É que a requisição das verbas necessária ao pagamento do precatório é ato administrativo de comunicação entre o presidente do tribunal e a respectiva Fazenda Pública. Ao permitir que juízes de outros estados requisitem a expedição de precatórios, novos desafios seriam impostos à presidência, que além de organizar a comunicação interna também teria que estar em frequente contato com os outros vinte e seis tribunais para assegurar os pagamentos.

Na mesma linha, vale salientar que o texto constitucional faculta aos entes federativos estabelecer por lei local quais obrigações serão consideradas de pequeno valor (artigo 100, § 4º, CF/88) e, por conseguinte, não se submeterão ao moroso regime de expedição de precatórios. Há, portanto, múltiplas regulamentações distintas no que toca ao teto do regime de requisição de pequeno valor (RPV) para pagamento das dívidas das Fazendas Públicas, de modo que na hipótese ora discutida de condenação de um ente federado por um juiz de outro estado, este deveria se submeter às regras impostas pelo ente condenado para definir se o débito será quitado pelo regime de requisição de pequeno valor ou de precatórios.

Ocorre que o juiz responsável pela condenação não estaria vinculado ao presidente do Tribunal de Justiça encarregado de expedir a requisição de pequeno valor ou o precatório, de modo que caso haja controvérsia, por exemplo, a respeito do regime adotado para pagamento do débito ou quanto a regularidade formal do instrumento, não haveria instrumento apto a resolver adequadamente a divergência [4].

4. A conclusão
Em que pesem os argumentos relacionados ao federalismo centrífugo e ao acesso à justiça, é certo que os dispositivos que autorizam o ajuizamento de ações contra os estados-membros e o Distrito Federal em juízos de outros entes federados provocam uma série de problemas de ordem prática ao bom funcionamento do Poder Judiciário.

A um, subverte-se a lógica de que o Tribunal de Justiça é o guardião da Constituição de seu estado e o detentor da última palavra a respeito da interpretação da legislação local, o que provocaria grave insegurança jurídica, especialmente tendo em vista que as instâncias extraordinárias não se prestam ao exame de leis estaduais e municipais.

A dois, dificulta-se sobremaneira o trabalho dos julgadores, haja vista que não se pode esperar que estes tenham conhecimento adequado a respeito da legislação vigente no Distrito Federal, nos vinte e seis estados-membros e nos milhares de municípios existentes na República Federativa do Brasil.

A três, impõe-se novas dificuldades à complexa dinâmica de pagamento dos débitos da Fazenda Pública: seja por conta da inusitada situação em que um juiz requisitaria a expedição de precatórios ao presidente do Tribunal de Justiça de outro estado, seja em razão da multiplicidade de leis locais definindo diferentes limites aos valores que podem ser pagos por meio do regime de requisição de pequeno valor.

Desse modo, conclui-se que, apesar das nobres intenções do legislador, a possibilidade de litigar contra entes públicos fora do território destes parece impor mais problemas do que ganhos ao sistema de justiça brasileiro.


[1] Mais especificamente, discute-se a validade jurídico-constitucional dos arts. 46, § 5º; e 52, caput e parágrafo único, ambos do CPC/15.

[2] A este respeito, Georges Abboud lembra que "a regra do full bench tem por teleologia vincular todos os órgãos fracionários do Tribunal ao que ficou decidido pelo Plenário ou Órgão Especial no julgamento do incidente de arguição de inconstitucionalidade". (ABBOUD, GEORGES. Processo Constitucional Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2021. v. 1. p. 1065.)

[3] Caso haja mais de um foro competente, não há vedação à escolha daquele que o demandante julgar mais conveniente aos seus interesses. No entanto, conforme leciona Fredie Didier Jr., "o problema é conciliar o exercício desse direito potestativo com a boa-fé". Assim, formula-se o seguinte questionamento: "de que modo esses princípios (devido processo legal e boa-fé processual) incidem no fórum shopping, para impedir o abuso do demandante na escolha de um foro que, embora em tese competente, se revele no caso como uma técnica de dificultar a defesa do demandado ou impedir o bom prosseguimento do processo, sem que disso o autor possa auferir qualquer espécie de justa vantagem". (DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil – v. 1 – ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2021. pp. 274 e 275)

[4] Apesar do não exercício de atividade jurisdicional na condução dos precatórios (Vide ADI 1.098/SP), o artigo 3º da Resolução 303/2019 do CNJ, que "dispõe sobre a gestão dos precatórios e respectivos procedimentos operacionais no âmbito do Poder Judiciário”, atribui ao Presidente do Tribunal uma série de relevantes competências para o adequado desenvolvimento do procedimento, dentre as quais: "(1) aferir a regularidade formal do precatório; (2) organizar e observar a ordem de pagamento dos créditos, nos termos da Constituição Federal; (3) registrar a cessão de crédito e a penhora sobre o valor do precatório, quando comunicado sobre sua ocorrência; (4) decidir sobre impugnação aos cálculos do precatório e sobre o pedido de sequestro, nos termos desta Resolução; (5) processar e pagar o precatório, observando a legislação pertinente e as regras estabelecidas nesta Resolução; e (6) velar pela efetividade, moralidade, impessoalidade, publicidade e transparência dos pagamentos".

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