Interesse público

A competência para execução de multas aplicadas pelos Tribunais de Contas

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16 de setembro de 2021, 8h00

Como noticiado recentemente pela ConJur, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria no julgamento do RE 1003433-RJ (tema 642 de repercussão geral), indicando a aprovação da tese no sentido de que o "município prejudicado é o legitimado para a execução de crédito decorrente de multa aplicada por tribunal de contas estadual a agente público municipal, em razão de danos causados ao erário municipal" [1].

Spacca
Interpretações equivocadas das competências dos tribunais de contas e tentativas de estender o alcance de julgados do STF — quando consagram entendimento restritivo ao exercício das funções de controle externo  não são novidade [2]. Passada a perplexidade inicial, a compreensão do sentido e alcance do entendimento da Corte demanda, antes de tudo, distinguir as naturezas das multas aplicadas pelos tribunais de contas. Trata-se de pressuposto necessário para definir, de acordo com as competências constitucionais e com o teor do julgado, em qual situação a competência para cobrança será do ente municipal. Esse percurso deve ter início a partir do voto que abriu a divergência (proferido pelo ministro Alexandre de Moraes), notadamente porque medidas de responsabilização-reparação e de responsabilização-sanção têm fundamentos e objetivos distintos, embora extraíveis do mesmo dispositivo constitucional (artigo 71, VIII [3]).

Com efeito, o texto constitucional é claro ao dispor que a ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas ensejarão a aplicação de sanções previstas em lei  as multas-sanção —, ao mesmo tempo em que existe a possibilidade de estabelecimento de multa proporcional ao dano causado ao erário  multa-ressarcitória. Na Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (TCU) (Lei n° 8.443/92), são exemplos de multas-sanção as previstas artigo 58, I, II e III, ao passo que a multa-ressarcitória encontra disciplina no artigo 57.

Assim, a multa-sanção decorre do julgamento de contas irregulares, procedência de representações ou denúncias, apurações de irregularidades em auditorias, por exemplo, estando atrelada à responsabilização-sanção de agentes que cometem infração administrativa sob a jurisdição da esfera controladora.

Por sua vez, a multa-ressarcitória de que trata a parte final do inciso VIII do artigo 71 da CF decorre de uma responsabilização-reparação, ligada à existência de dano ao erário. Noutro dizer, referida multa tem a mesma natureza reparatória do principal, que é o dano ao erário quantificado a ser ressarcido, e supõe a existência desse (vide artigo 92 do Código Civil). Diferentemente da anterior, como se percebe, a multa-ressarcitória é acessória da imputação de débito decorrente de dano.

Há, ainda, a intitulada multa-coerção, que tem a sua razão de existir vinculada à necessidade de se conferir eficácia à atuação da corte de contas, bem jurídico por ela tutelado, estando atrelada, pois, à responsabilização-sanção de agentes públicos que criem embaraço ao exercício das fiscalizações, descumprem diligências, negam o acesso a informações e documentos, negligenciam o envio periódico de dados da gestão, a publicação de demonstrativos obrigatórios.

Assim, distinguir as naturezas das multas é essencial para corretamente compreender o alcance do julgamento do STF sob estudo. Elucidativas são as lições de Fábio Medina Osório, para quem "as medidas de responsabilidade por incumprimento de deveres de gestão normalmente no setor público nem sempre podem ser confundidas com sanções administrativas. Tais medidas traduzem efeitos aflitivos e não se confundem com as medidas coativas, ressarcitórias ou de coerção" [4].

Definidas essas balizas, importa-nos questionar: quem suporta o ônus com recursos materiais e humanos despendidos para o controle externo exercido pelo Tribunal de Contas sobre o ente municipal? A partir da relação custo-benefício do controle, é possível afirmar que há comprometimento da capacidade fiscalizatória quando a máquina estatal controladora é movida a agir?

Se levarmos em conta o modelo de controle da Administração Pública traçado pela CRFB/88, não teremos dúvidas de que quem arca com a estruturação jurídico-financeira do aparato estatal controlador e com as tradicionais fiscalizações é o ente a que se encontra vinculado o Tribunal de Contas, mesmo a jurisdição controladora abrangendo outro ente federado. Ora, sendo a multa-coerção e a multa-sanção essencialmente ligadas à responsabilização-sanção e sem natureza acessória (de acompanhar o principal), conclui-se que se prestam também a contribuir com recursos para o ente que suporta essa prestação controladora, colaborando indiretamente para o financiamento da própria função de controle.

Não por outra razão, a criação de fundos específicos vincula as receitas dessas multas a atividades finalísticas de controle externo, mirando no contínuo e permanente aprimoramento das auditorias, inspeções e demais instrumentos de fiscalização por parte dos tribunais de contas. Abrangem, inclusive, investimentos em recursos de tecnologia da informação, de modo a permitir a ampliação de meios de obtenção de dados e evidências pelos auditores de controle externo nas investigações/apurações, robustecendo a atuação do controle e as decisões do tribunal pelo colegiado julgador. Não se trata de qualquer novidade ou exclusividade dos tribunais de contas: a existência de fundos especiais com recursos destinados para aperfeiçoamento de atividades institucionais de fiscalização é comum no Ministério Público, em todas as esferas.

Retomando o julgado comentado, é possível perceber que o objeto de discussão do RE 1003433-RJ versa sobre título executivo formado pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, enquadrando-se, então, como multa-coerção, vez que aplicada em razão da ausência de envio dos dados mensais do Fundo Municipal de Saúde de Cordeiro ao Sistema Integrado de Gestão Fiscal (Sigfis) do TCE-RJ, não tendo decorrido, então, de dano ao erário sofrido pela municipalidade a ser ressarcido.

Na ocasião, o RE 223.037/SE foi invocado para sustentar que o ente a que se encontra vinculado o Tribunal de Contas (que é, no caso examinado pelo STF, o estado do Rio de Janeiro) não seria legitimado para cobrar multas aplicadas contra agentes públicos municipais. Porém, a bem da verdade, referido precedente não se aplica ao caso, pois não trata nem de multa-coerção e nem de multa-sanção, conforme esclareceu o ministro Campbell Marques, no REsp nº 1.181.122-RS AgReg:

"Muito embora não tenha se referido expressamente às procuradorias municipais, extrai-se que, nos casos de imputação de débito/ressarcimento ao erário, o crédito é titularizado pelo ente público cujo patrimônio fora atingido, devendo ser cobrado pelo respectivo representante judicial, ou seja, a Advocacia-Geral da União, se o patrimônio atingido for da União, a Advocacia-Geral da União/Procuradoria-Geral Federal, nos casos de patrimônio das autarquias ou fundações públicas federais, e assim por diante em relação aos entes estaduais e municipais. Isso não significa, por certo, que o mesmo tratamento deve ser conferido às multas, cuja origem é totalmente diversa".

Em conclusão, é possível afirmar que a tese indicada para aprovação relativa ao Tema 642, em leitura conjugada que deve ser feita com o inciso VIII e §3º do artigo 71 da CF, alcança tão somente a multa-ressarcitória. A despeito das razões enxutas constantes do voto que inaugurou a divergência, somente a multa-ressarcitória possui natureza acessória, a acompanhar o principal, que é o dano causado a ser ressarcido. A redação posta é clara ao se referir à multa que é aplicada "em razão de danos causados ao erário municipal", não alcançando, portanto, a multa-coerção e a multa-sanção diferentemente da anterior, estas decorrem de violações e danos causados ao ente que se encontra vinculado o Tribunal de Contas, em razão da titularidade das competências do controle.


[3] "Artigo 71 – O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:[…] VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário". Convém relembrar que as normas constitucionais relativas ao TCU são aplicáveis, por imperativo constitucional, aos demais Tribunais (artigo 75)".

[4] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 7. ed. rev. E atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 124. Sobre poder de coerção e poder de sanção dos tribunais de contas, confira-se: FERRAZ, Luciano. Poder de coerção e poder de sanção dos tribunais de contas competência normativa e devido processo legal.  Fórum Administrativo – Direito Público – FA, Belo Horizonte, ano 2, n. 14, abr. 2002.

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