Opinião

Os crimes contra o Estado democrático de Direito e a revogação da LSN

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8 de setembro de 2021, 19h14

Estabelece a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1º que a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado democrático de Direito, sendo incorporado ao conceito de Estado de Direito o ideal democrático, reafirmando "um conteúdo próprio onde estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social" [1].

No intuito de proteger a democracia e as instituições democráticas avista-se entalhado no artigo 5º, XLIV, do texto constitucional afirmação de que "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". Cuida-se de mandado de criminalização explícito, restando evidenciada a responsabilidade do legislador ordinário em tipificar as condutas que atentem diretamente contra o Estado democrático de Direito.

Malgrado a relevância dos comandos constitucionais acima mencionados, desde a promulgação da Carta Cidadã convivíamos com a famigerada Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83), concebida nos estertores da ditadura militar, com forte tendência a uma defesa da doutrina de segurança nacional [2], de indisfarçável viés autoritário e autocrático, inservível para proteger um Estado democrático de Direito inaugurado com o advento da Carta Magna de 1988, sendo pertinentes as críticas doutrinárias acerca de sua legitimidade [3].

O Parlamento brasileiro portou-se com descaso e evidente demora para debater e aprovar um projeto de lei que efetivamente viesse a contemplar a criminalização de condutas atentatórias ao Estado democrático de Direito, cumprindo-se mandamento constitucional, merecendo registro que mesmo existindo diversos projetos de lei tramitando no Congresso Nacional desde o longínquo ano de 1991 [4], somente três décadas depois, no último dia 11, após sucessivos ataques às instituições democráticas, resultando, inclusive, em prisões e ameaças de prisões com base na antiga Lei nº 7.170/83, é que foi aprovado pelo Senado Federal o PL nº 2108/21, sendo sancionado com veto parcial pelo presidente da República, resultando na publicação da Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021.

Referida lei insere o Título XII no Código Penal, denominado "Dos crimes contra o Estado Democrático de Direito", tipificando os ilícitos contra a soberania nacional (atentando à soberania  artigo 359-I; atentado à integridade nacional  artigo 359-J; e espionagem  artigo 359-K), os crimes contra as instituições democráticas (abolição violenta do Estado democrático de Direito  artigo 359-L; e golpe de estado artigo 359-M), crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral (interrupção do processo eleitoral artigo 359-N; violência política  artigo 359-P) e os crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais (sabotagem  artigo 359-R).

Foram vetados pelo presidente da República os dispositivos que tipificavam o crime de "comunicação enganosa em massa" (artigo 359-O) e "atentado a direito de manifestação" (artigo 359-S), além dos artigos que estabeleciam a possibilidade da ação penal privada subsidiária da pública de iniciativa de partido político com representação no Congresso Nacional (artigo 359-Q) e a previsão de causa de aumento de pena para os crimes previstos neste novel título do Código Penal praticados com violência ou grave ameaça exercidas com emprego de arma de fogo ou cometidos por funcionário público (artigo 359-U).

A nova lei revoga expressamente a Lei nº 7.170/83 e o artigo 39 da Lei de Contravenções Penais e possuí um período de vacatio legis de 90 dias, entrando em vigor no próximo dia 1/2/2021, nos termos do artigo 8º, §1º, da Lei Complementar nº. 95/98.

Importante registrar que todos os princípios inerentes a sucessão de leis penais no tempo, a exemplo da irretroatividade da lei penal mais severa (novatio legis in pejus), retroatividade da lei penal mais benéfica (novatio legis in mellius), abolitio criminis e continuidade típico-normativo), incidem com a vigência da presente lei penal.

A irretroatividade da lei penal incriminadora ou desfavorável ao acusado (lex gravior  artigo 5º, XXXIX, CF) e a retroatividade da lei benéfica (lex mitior  artigo 5º, XLV, CF) constituem base sólida do Direito Penal inerente à proteção da pessoa humana, reafirmando a defesa do "princípio constitucional da liberdade, o 'favor libertatis', é, hoje, a matriz comum e o princípio superior de que derivam não só a irretroactividade in peius como também a retroactividade in mellius"  [5].

Nesse sentido, todos os institutos diretamente vinculados à vigência da lei penal no tempo (princípio de Direito Penal intertemporal) estão presentes na Lei nº 14.197. Verifica-se, por exemplo, a incriminação de novas figuras não previstas na Lei nº 7.170/83, como a interrupção do processo eleitoral, impedindo ou perturbando a eleição ou a aferição do resultado mediante violação dos mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação (artigo 359-N, com pena de reclusão de três a seis anos e multa), a existência de novatio legis in pejus como o uso de violência ou grave ameaça para impedir ou restringir o funcionamento dos poderes constitucionais anteriormente previsto no artigo 18 da Lei nº 7.170/83, com pena de reclusão de dois a seis anos, estando referida conduta tipificada atualmente no artigo 359-L, sendo estabelecida uma pena de reclusão de quatro a oito anos, além da pena correspondente à violência.

Constata-se, também, a existência de novatio legis in mellius como na hipótese do tipo penal de separatismo almejando o desmembramento de parte do território nacional, valendo-se de violência ou grave ameaça, sendo referida conduta anteriormente tipificada no artigo 11 da Lei nº 7.170/83, com pena de reclusão de quatro a 12 anos, passando referido ilícito a ser materializado no artigo 359-J (atentado à integridade nacional), consistindo em praticar violência ou grave ameaça com a finalidade de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente, sendo estabelecida uma pena de reclusão de dois a seis anos, além da pena correspondente à violência.

Por fim, tem-se como relevante destacar que a Lei nº 14.197/21 também respalda hipóteses de continuidade típico-normativo, havendo a manutenção do caráter proibido da conduta, com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal, tendo apenas a supressão formal e não material da tipificação, não podendo falar em abolitio criminis (supressão formal e material da conduta anteriormente definida como crime).

Na continuidade típico-normativa a intenção do legislador é manter o caráter criminoso do fato. É o que ocorre, verbi gratia, com o artigo 13 da Lei nº 7.170/83, que teve continuidade normativo-típica, passando a caracterizar o crime de espionagem (artigo 359-K, com pena de três a 12 anos de reclusão).

Eis uma rápida análise da novel Lei nº 14.197, notadamente com relação a sucessão de leis penais no tempo, merecendo aplauso a iniciativa do parlamento brasileiro que finalizou (estando pendente ainda a análise dos vetos presidenciais) demorada tramitação legislativa, passando a efetivamente tipificar, à luz da Constituição Federal de 1988, os crimes contra o Estado democrático de Direito, protegendo bem jurídico de elevada envergadura, tutelando em ultima ratio a própria democracia que consiste em um protoprincípio ou megaprincípio que "transluz em cada um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (incisos I a IV do artigo 1º da Carta de 1988) e em toda cláusula pétrea explícita da nossa atual experiência constitucional (incisos de I a IV do §4º do artigo 60 da mesma 'Constituição cidadãs')" [6].

A principal expectativa com a vigência da nova lei é, além da tutela do Estado democrático de Direito e da proteção da própria democracia, que também deixem de existir os acontecimentos lamentáveis recentemente noticiados, em que se buscou na Lei nº 7.170/83, agora expressamente revogada, um mecanismo de censura ou torniquete das manifestações democráticas, turvando-se ou embaçando a liberdade de expressão, valendo-se de referida lei para ameaçar jornalistas, professores universitários, chargistas, críticos do poder em geral, com a abertura de processos e a aplicação de uma vetusta norma penal anterior ao ideal democrático plasmado na Constituição Federal de 1988, e que tinha em seu âmago a ideia de defesa de uma doutrina da segurança nacional.

É chegada a hora do fortalecimento da jovem democracia brasileira. Devem-se criar mecanismos legais para que a cidadania viceje e que possamos nos livrar de todo entulho autoritário anterior ao advento da Constituição Cidadã, sendo, neste aspecto, auspiciosa a vigência da Lei nº 14.197/21, que deve ser utilizada como um escudo em defesa da democracia.


[1] STRECK, Lenio L. Comentário ao artigo 1º. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W. (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almeidina, 2013, p. 113.

[2] "A lei de segurança vinha sendo aplicada de forma draconiana, o que possibilitava a perseguição de pessoas que se manifestavam contra o Governo, por fatos que nada tinham a ver com a segurança do Estado". FRAGOSO, Heleno C. A nova Lei de Segurança Nacional. Revista de Direito Penal e Criminologia. Rio de Janeiro: Forense, nº. 35, p. 61.

[3] "É discutível a validade dessa lei. Haurida em período de matriz autoritária, é realmente pitoresco que possa servir, ela mesma, à tutela de um Estado Democrático". STRECK, Lenio L. et ali. Ob., cit., p. 401.

[4] Projeto de Lei nº. 2.462/91 de autoria do saudoso deputado federal Hélio Bicudo.

[5] CARVALHO, Américo A. Taipa de. Sucessão de Leis Penais. 3ª ed., Coimbra: Coimbra editora, 2008, p. 134.

[6] BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 183.

Autores

  • é doutor em Direito Penal e mestre em Processo Penal pela PUC-SP, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito 08 de Julho, advogado e procurador do Estado de Sergipe.

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