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TJ-RJ absolve produtor cultural condenado com base em foto encontrada na internet

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3 de setembro de 2021, 19h04

Prova que embasou indiciamento e não juntada aos autos do processo é nula, pois não pode ser contestada pelo réu. E reconhecimento por fotografia não serve para fundamentar condenação.

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Reconhecimento fotográfico não seguiu regras do CPP, disse TJ-RJ
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Com esse entendimento, o 4º Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro aceitou revisão criminal e absolveu, na terça-feira (31/8), o produtor cultural Ângelo Gustavo Pereira Nobre. Ele estava preso sob a acusação de fazer parte de uma quadrilha que roubou um motorista no Catete, Zona Sul do Rio.

O crime ocorreu em agosto de 2014. A vítima do roubo fez pesquisa em redes sociais e reconheceu Nobre por fotografia, cerca de três meses após o delito. Com base nessa foto, ele foi indiciado pela polícia e, posteriormente, denunciado. Na Justiça, a vítima o reconheceu novamente como autor do crime. Na sessão de reconhecimento, foi colocado apenas um outro homem ao lado de Nobre. E ele não era parecido com o réu e estava com uniforme de servidor do TJ-RJ.

Ângelo Gustavo Nobre foi condenado a 6 anos, 2 meses e 7 dias de prisão. A condenação transitou em julgado.

A relatora da revisão criminal, desembargadora Maria Angélica Guerra Guedes, afirmou que a Polícia Civil indiciou Nobre com base apenas na foto encontrada pela vítima nas redes sociais, sem fazer qualquer outra diligência. E essa foto nunca foi juntada aos autos do processo, impossibilitando o exercício do contraditório.

O reconhecimento do réu como autor do crime feito em juízo não observou o procedimento do artigo 226 do Código de Processo Penal, disse a magistrada. O dispositivo estabelece que a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida. Já a pessoa cujo reconhecimento se pretende deve ser colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem semelhança. Em seguida, quem tiver de fazer o reconhecimento deverá apontar quem considera ser o autor do crime.

“Ante a ‘descoberta’ feita pela vítima, o ora requerente foi indiciado como sendo o outro roubador, sem que qualquer outra diligência tivesse sido feita pela autoridade policial (…) A má condução no processo de obtenção da prova testemunhal pode gerar a formação de falsas memórias. Uma prova eivada de vícios desta natureza pode resultar em sérias violações aos princípios constitucionais e processuais, bem como resultar em condenações de inocentes”, declarou a desembargadora.

Maria Angélica lembrou que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o reconhecimento fotográfico não basta para gerar condenação. A corte concluiu que reconhecimento do suspeito de um crime por mera exibição de fotografias há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.

A magistrada destacou a comprovação, nos autos do processo, de que o produtor cultural enfrentava um problema de saúde, pouco tempo antes do crime, inclusive tendo passado por intervenções cirúrgicas. Por isso, não teria condições de andar de motocicleta na época.

A relatora também relembrou que, no dia dos fatos, fora celebrada uma missa em homenagem a morte de um dos melhores amigos de Nobre. A família alega que ele estava na Igreja no momento do roubo.

“A ninguém interessa a condenação de um inocente, afinal, quando deixamos que um cidadão cumpra pena por um crime que não cometeu, somos forçados a reconhecer que o sistema de justiça falhou. Impossível conceber um Estado Democrático de Direito que não tenha o bem comum como pressuposto e, ao mesmo tempo, objetivo. Privar um cidadão inocente de sua liberdade sem dúvida atenta contra o bem comum, e fere a segurança jurídica, conquanto legítima injustiça”, apontou a magistrada.

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Revisão Criminal 006955252.2020.8.19.0000

Autores

  • é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro e mestrando no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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