Controle das contratações públicas: diversas linhas de frente
3 de setembro de 2021, 8h00
Definitivamente, um dos grandes avanços na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos está relacionado ao controle das contratações públicas. A lei destina um capítulo específico para tratar, exclusivamente, sobre o tema, inovando [1] em relação a vários aspectos, destacadamente quanto ao enaltecimento concedido ao controle interno em sentido amplo (incluindo aqui tanto os órgãos de controle interno em sentido estrito, como toda a atuação de fiscalização e controle dos agentes públicos que exercem suas funções dentro do órgão), concretizado por mais de uma "linha de frente".
Há, inegavelmente, uma preocupação do legislador quanto ao controle preventivo, evitando a deflagração de contratações públicas indesejadas e, até mesmo, ineficientes, razão pela qual a gestão de riscos, naturalmente preponderante quando do planejamento do objeto licitado, deve ocorrer durante toda a fase de contratação pública.
Contudo, deve-se avaliar a intensidade e a preferência quase que absoluta pelo controle preventivo. Embora ele seja um eficaz mecanismo de controle, conforme exposto acima, razão pela qual o legislador lhe conferiu maior destaque, o seu funcionamento adequado depende de uma correta interação com formas de controle repressivo, bem como uma análise proporcional sobre sua utilização. Órgãos de controle que atuam com controles preventivos de maneira excessiva acabam inviabilizando o exercício da função administrativa, substituindo (de maneira indevida), muitas vezes, a atividade do gestor público [2].
O ponto mais positivo da lei refere-se, sobretudo, às mais variadas frentes de controle e ao protagonismo que é deferido ao controle interno, o qual atua nas duas primeiras frentes (terminologia esta felizmente utilizada pelo legislador na redação do já referido artigo 169) de controle e também na terceira frente, sendo que, nesta, em paralelo com o controle exercido pelos tribunais de contas.
Desse modo, em que pese a possibilidade — e necessidade — de se proceder ao controle durante todo o processo de contratação pública, a lei o divide em "frentes", priorizando o controle interno. Nada mais salutar, sobretudo quando se tem em mente que um dos pilares do regime democrático se concentra na existência de sistemas de controle, os quais limitam as atribuições dos exercentes de função, como também possibilitam a fiscalização e correção da atuação.
A importância outorgada pelo legislador ao controle interno se encontra alocada não apenas no artigo 169, conforme já mencionado, como também em várias outras passagens da lei, dentre as quais se destaca o papel exercido pelo órgão de assessoramento jurídico, cuja proeminência é inquestionável, exercendo o controle interno nas mais variadas oportunidades, inclusive auxiliando os demais agentes e servidores envolvidos no processo de contratação pública.
Debruçando-se sobre o conteúdo dos demais incisos do artigo 169, percebe-se que o inciso II também se refere, exclusivamente, ao controle interno, quando estabelece a "segunda linha de defesa, integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade". Nesse ponto, mais uma vez o legislador priorizou as atividades praticadas pelo assessoramento jurídico, além do órgão de controle interno do órgão ou entidade.
Quanto ao inciso II, um ponto que merece destaque reside na existência de suposta incompatibilidade entre os posicionamentos adotados pelos órgãos de assessoramento jurídico e órgão de controle interno. Na dúvida, qual posicionamento deve ser escolhido pelo tomador de decisão? Esse questionamento não é esclarecido pelo legislador, cabendo, portanto, aos órgãos e entidades solucionarem, por meio de regulamentos próprios, possível impasse.
Para alguns órgãos e entidades contratantes, sobretudo os municípios de pequeno porte, para além de um órgão de assessoramento jurídico, a criação de um órgão de controle interno com múltiplas atribuições pode inviabilizar a finalidade precípua do processo de contratação pública, a qual encontra lugar na formação, efetivação do contrato e sua consequente execução.
No que toca ao inciso III, a denominada "terceira linha de defesa, integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas", o legislador, a despeito de mencionar o controle externo, ainda mantém a referência ao controle interno. Há, francamente, uma relação de precedência, incidindo o controle externo após o exercício das outras linhas de controle previstas, tanto nos incisos I e II quanto também no próprio inciso III.
Logo, o encadeamento contido no artigo 169 já comprova que a Lei nº 14.133/2021 elegeu, inicialmente, a realização do controle interno e, posteriormente, do controle externo, o que fragiliza a tese do "controle externo preventivo" como regra, prática procedimental comum no âmbito dos tribunais de contas e exposta, pelos defensores, como uma medida de maior eficiência que o controle interno, verdadeiro exercente da função administrativa.
Embora, repita-se, a nova legislação confira maior destaque e espaço ao controle prévio ou preventivo, o qual havia sido deixado em segundo plano desde a Constituição de 1967, em decorrência, especialmente, da ampliação das atribuições estatais, que acaba por inviabilizar, em parte, este modelo de controle, seu uso deve ser feito de maneira parcimoniosa pelos órgãos de controle externo. Isso se dá por três razões principais: a) na sistemática adotada na nova lei, embora o controle externo possa também atuar preventivamente, ele se encontra na última linha de defesa, havendo uma priorização ao controle interno; b) a atividade de controle externo, por mais bem intencionada que seja, não pode gerar a substituição da atuação do gestor, o que, por inúmeras vezes, ocorre nos casos de controle preventivo exercido pelos tribunais de contas; c) os mecanismos de controle não devem ser vistos sob uma perspectiva unilateral, cedendo espaço a um controle dialógico, que palpabiliza um contraditório material, incluindo na participação, quando possível, a oitiva dos gestores antes de se adotar qualquer medida restritiva.
De fato, ao ensejo da previsão anunciada na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), nomeadamente o artigo 26, que enaltece os concertos administrativos após oitiva do controle interno, revela-se, na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, um caminho legislativo no mesmo compasso, protegendo a atividade administrativa por intermédio de quem, naturalmente, detém maior expertise quanto ao conteúdo do ato a ser controlado.
Em bom momento, portanto, a Lei nº 14.133/2021 marcha no sentido de priorizar o controle interno, permitindo um exame mais efetivo por quem vivencia as peculiaridades idiossincráticas decorrentes de um gerir administrativo cada vez mais complexo e exigente, com contratações sofisticadas não apenas quanto ao objeto, mas, sobretudo, no que diz respeito à forma de realização, envolta num quadro de incertezas e de permanentes mudanças.
É com base nessa nova mirada que emergirá uma Administração Pública mais proporcional e menos irracional, com escolhas efetivamente praticáveis, cujo reforço na segurança do trato da coisa pública encontra-se alocado nas franjas do controle interno, que poderá, de forma antecipada, apontar as falhas e conferir as devidas soluções, considerando, sempre, as consequências práticas da decisão.
[1] A bem da verdade, a maior inovação é de cunho simbólico e de sistematização, já que, quanto ao conteúdo, em realidade, o capítulo do controle acaba por incorporar jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), bem como atos normativos infralegais já existentes.
[2] CABRAL, Flávio Garcia. Comentários aos artigos 75 (DISPENSA) e 169 a 173 (CONTROLE). In: Leandro Sarai. (Org.). Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos. 1ed.Salvador: JusPodium, 2021, p. 1422.
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