Defesa da Concorrência

Entre Shakespeare e a discussão no Cade sobre política de preço mínimo anunciado

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29 de novembro de 2021, 8h00

Enquanto entidade judicante, o Cade possui o dever institucional de apresentar resposta, em conformidade com os pressupostos do ordenamento jurídico, a uma controvérsia ou situação jurídica posta à apreciação. Dentre os muitos temas espinhosos com os quais se depara, o objetivo deste breve texto é destacar um tipo específico de restrição vertical que foi objeto de análise recente pela autarquia.

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De acordo com a literatura especializada, condutas de restrições verticais de preços geram efeitos ambíguos no mercado [1], isto é, podem causar efeitos benéficos ou deletérios ao bem-estar dos consumidores a depender dos parâmetros em que tais políticas restritivas estiverem alicerçadas. Assim, é comum empresas apresentarem consultas ao Cade quando da implementação de políticas de preço mínimos ou máximos.

O objetivo dessas consultas [2], portanto, é obter a manifestação da autarquia sobre a licitude da política do ponto de vista concorrencial, visando à mitigação de riscos e, consequentemente, conferir maior segurança jurídica na atuação de empresas, na medida em que atinge diferentes elos de determinada cadeia de produção.

Nesse sentido, em 2021, o Tribunal Administrativo do Cade analisou consulta da Ipiranga [3] sobre a criação de uma política de sugestão de preços máximos. Naquela assentada, o tribunal firmou entendimento pela licitude concorrencial da política submetida à análise. No mesmo ano foi iniciada a análise de consulta da Michelin, pendente de decisão final, que aborda política de preço mínimo anunciado [4] (PMA). De acordo com a Michelin, tal política foi desenvolvida unilateralmente pela consulente, sem influência dos revendedores na estratégia comercial adotada, com o objetivo de resguardar o modelo de negócios da empresa, e ainda não foi implementada porquanto aguarda a deliberação da autoridade.

Segundo consta da consulta, a política não possui caráter discriminatório entre os canais em que será implementada (físico e online), ou seja, confere tratamento isonômico aos revendedores dos produtos Michelin independentemente do meio em que o consumidor finalizar a venda. Além disso, foi destacado que está adstrita ao preço de anúncio, não havendo fixação do preço de revenda, pois o revendedor poderá vender pelo preço que entender cabível, inclusive, abaixo do anunciado. Outrossim, alegaram a inexistência de poder de mercado da empresa, o que a impede de alterar a dinâmica competitiva com a implementação da política, bem como apresentaram a racionalidade econômica e os efeitos pró-competitivos associados ao PMA.

No Tribunal do Cade, o caso foi distribuído à conselheira relatora Paula Farani. Em seu voto, destacou, com base em análise da jurisprudência do Cade, que casos envolvendo restrição vertical de preço devem ser pautados pela regra da razão, justamente por poderem causar efeitos ambíguos ao ambiente concorrencial [5].

Em seguida, a conselheira destacou algumas preocupações concorrenciais decorrentes de políticas PMA que devem estar no radar das autoridades concorrenciais. Dentre elas, a possibilidade de as políticas criarem discriminação de preço, induzirem condutas concertadas entre os varejistas/revendedores do mercado downstream, bem como ressaltou que a política PMA, a depender da forma de implementação, pode significar uma fixação de preço de revenda, o que constitui infração sob a perspectiva da legislação brasileira.

O curioso, ou inovador, na consulta ora analisada foi o fato de a conselheira relatora, conforme expressamente reconhecido em seu próprio voto [6], ter segmentado a análise do mercado relevante por canal de varejo, físico e online, enquanto a jurisprudência consolidada do Cade o analisa conjuntamente. Em seu voto, a conselheira relatora apontou diferenças no que se refere ao impacto da política de preço mínimo anunciado no comércio eletrônico em comparação aos varejistas físicos, razão pela qual optou por segmentar a análise do PMA.

No canal de varejo físico, votou pela conformidade da política PMA. Constatou que em nenhum dos mercados relevantes definidos a consulente possuía participação de mercado acima de 20%, conforme artigo 36, § 2º, da Lei nº 12.529/2011 e, portanto, dispensou a análise de efeitos. Contudo, fazendo referência à consulta da Continental [7], passou a verificar se as condições impostas no voto condutor foram preenchidas na consulta da Michelin, quais sejam: (1) a ausência de poder de mercado unilateral ou coordenado da consulente nos mercados afetados pela conduta; (2) a manutenção da unilateralidade da política de preços mínimos; e (3) a ausência de discriminação entre os revendedores afetados pela política PMA.

Segundo a conselheira relatora, todas as condições estariam preenchidas na consulta Michelin, com ressalva quanto a declaração da manutenção da unilateralidade da política de preços mínimos, de modo que submeteu a declaração de conformidade da política PMA à retirada de um dos itens de sua minuta, por entender que suas disposições poderiam comprometer a unilateralidade da política. As demais condições foram declaradas em conformidade pela conselheira relatora.

Noutro giro, enfatizou que a análise no ambiente virtual requer cautela, pois a política de preços mínimos de revenda possui semelhança com a fixação de preço mínimo de revenda. A fim de subsidiar o voto, citou o caso CE/9857-14, em que a Competition and Markets Authority (CMA) considerou que as políticas de comércio online de uma empresa resultaram em infrações concorrenciais na medida em que as diretrizes comerciais recomendadas pela distribuidora aos varejistas eletrônicos revelaram fixações de preços disfarçadas.

De acordo com a conselheira, a política de preços mínimos anunciados submetida ao Cade pela Michelin poderia levar a conclusão equivalente à da Competition and Markets Authority. Destacou que o modelo de negócios dos varejistas eletrônicos pode resultar em fixação de preços de revenda, uma vez que não há no varejo eletrônico o elemento da comunicação humana entre vendedor e consumidor, o que impossibilita a ocorrência de barganha entre o comprador e o revendedor. Assim, entendeu que haveria outras formas de incentivar revendedores a investir na realização de serviços de pré e pós-venda sem impor preços mínimos de revenda a varejistas eletrônicos, uma vez que a política poderia resultar na proteção de competidores menos eficientes e inovadores, o que iria ao contrário à proteção da inovação.

Atualmente, diante da infinidade de possibilidades quanto à definição de práticas comerciais, a análise no ambiente virtual é fundamental, tendo em vista o aumento da utilização de plataformas online para distribuição de produtos com o objetivo de implementar estratégias competitivas [8]. Por essas razões, o voto da conselheira Paula Farani é interessante, uma vez que distingue os efeitos de uma mesma política de preço mínimo no canal de varejo físico em relação ao canal de comércio eletrônico.

Em que pese as ponderações da conselheira Paula Farani, é importante esclarecer por qual razão determinado fabricante pode querer impor um preço mínimo de revenda. Um primeiro argumento é no sentido de evitar o efeito carona (free rider), uma vez que distribuidores podem se aproveitar do esforço de revenda da loja que fez maiores investimentos em infraestrutura e know-how. A política de preço mínimo de revenda também pode se justificar em razão de o fabricante precisar do esforço de revenda para vender mais.

Apesar de, a depender do contexto concorrencial, a política de preço mínimo contribuir com a redução da concorrência intramarca, há eficiências econômicas associadas à política que levam ao aumento da concorrência intermarca, o que, em última hipótese, traz efeitos líquidos positivos (ou ao menos neutros) em termos de bem-estar do consumidor. Outra questão levada em consideração pelos distribuidores é o fato de que, muitas vezes, a qualidade é mais importante do que o preço. Dessa forma, o PMA pode ser atrativo, visto que permite a proteção da marca em caso de condições concorrenciais agressivas [9].

Tanto no canal de varejo físico quanto no canal de e-commerce, o objetivo do fabricante será o mesmo: ter um sistema de distribuição mais eficiente, que lhe permita maximizar os ganhos decorrentes de sua atividade produtiva. A adoção de uma política PMA, portanto, pode ser vantajosa em termos comerciais e concorrencialmente preocupante em algumas situações específicas. Nesses casos, já que se trata de uma análise por efeitos, o ônus de comprovar desdobramentos concorrenciais indesejados recai sobre a autoridade.

Ao que tudo indica, há uma aparente inovação da jurisprudência do Cade a partir da segmentação da análise por efeitos no segmento offline e online (em que pese, no caso específico da conduta, tal política ter sido elaborada por um agente que não possui poder de mercado e, consequentemente, não possui poder de agir com independência e indiferença frente a outros competidores).

O fato de esta segmentação não ter sido feita até o presente momento não quer dizer que não possa ocorrer agora; é natural que novas análises conduzam a novos paradigmas em um movimento contínuo. Todavia, é preciso considerar que, segundo dados obtidos pela Comissão da União Europeia, a maior parte dos distribuidores e varejistas consideram o canal offline e online como único, haja vista a facilidade de migração/integração entre eles [10].

Neste ponto, Shakespeare é uma ótima referência a ser lembrada. Assim como Puck, personagem da peça "Sonho de uma Noite de Verão" tenta convencer a todos, ao final, de que tudo não passou de um sonho, isto é, foi algo passageiro, será muito interessante acompanhar os desdobramentos desta consulta e dos próximos casos em que haja segmentação entre o físico e o digital, a fim de verificar se o status quo da jurisprudência atual será mantido, e tudo não passará de um sonho, ou se o argumento suscitado pela conselheira relatora fincará raízes e tornar-se-á paradigma para controvérsias futuras.


[1] "If, on the other hand, you get a race among numerous rivalrous manufacturers to raise margins and increase the level of non-price competition, then the results are ambiguous. It may well be that efficiency has increased: that the gain to consumers outweighs the additional cost. But it can go the other way too: the cost of the restraints can exceed the gain to consumers." In: SCHERER, F. M. THE ECONOMICS OF VERTICAL RESTRAINTS. Antitrust Law Journal, Vol. 52, No. 3, NATIONAL INSTITUTE ON ANTITRUST AND ECONOMICS (September 29-30, 1983), pp. 687-718.

[2] Este procedimento está previsto nos §§ 4º e 5º do artigo 9º da Lei nº 12.529/2011 e disciplinado na Resolução nº 12, de 11 de março de 2015, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica ("Resolução Cade 12/2015")

[3] Consulta nº 08700.002055/2021-10 (consulente: Ipiranga Produtos de Petróleo S.A.)

[4] Consulta nº 08700.004460/2021-64 (consulente: Sociedade Michelin de Participação Indústria e Comércio Ltda.)

[5] Em suas razões, a conselheira relatora aponta que o caso SKF é a única exceção a esta regra, uma vez que, neste caso, o Tribunal Administrativo afastou a aplicação da regra da razão e adotou um ponto de vista intermediário entre regra per se e regra da razão, aproximando-se da metodologia europeia de inversão do ônus da prova. Ou seja, no caso, ocorreu uma presunção de ilicitude, mas o Cade deu oportunidade de a parte explicar o efeito anticompetitivo.

[6] "Embora a jurisprudência do Cade não entenda que o varejo online constitua um mercado relevante distinto daqueles que atuam por meio de lojas físicas, considerando que um dos principais critérios apontados pela literatura relevante para a segmentação dos dois mercados como distintos entre si é a diferença na experiência do consumidor e na qualidade dos serviços pré-venda oferecidos por cada um dos canais, e que a própria Michelin ressaltou em sua Notificação que os serviços qualificados de assistência às vendas são essenciais para seu modelo de negócios, optei por analisar separadamente os potenciais efeitos de uma política de Preço Mínimo Anunciado nos mercados de revendedores eletrônicos. Essa suposição será de grande valia no exame dos efeitos potenciais da Política de PMA agora analisada sobre varejo eletrônico." (Parágrafo 46)

[7] Consulta nº 08700.004594/2018-80 (consulente: Continental do Brasil Produtos Automotivos Ltda.)

[8] EUROPEAN COMMISSION. Antitrust: Commission publishes final report on e-commerce sector inquiry, 2017. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/IP_17_1261. Acesso em 17 de novembro de 2021.

[9] Essa lógica é importante quando se trata de marcas premium.

[10] EUROPEAN COMMISSION. COMMISSION STAFF WORKING DOCUMENT: Preliminary Report on the E-commerce Sector Inquiry. Disponível em: https://ec.europa.eu/competition/antitrust/sector_inquiry_preliminary_report_en.pdf

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