Opinião

A via processual adequada para revisão de sanções decorrentes de improbidade

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17 de novembro de 2021, 20h54

Entre as relevantes alterações trazidas pela recém-editada Lei 14.230/21 e os debates que esta tem suscitado, avulta questão que, ao que tudo indica, deverá surgir com frequência no Poder Judiciário e que pode ser posta nos seguintes termos: firmada a premissa de que as novas disposições legais, no que eventualmente mais benéficas aos condenados por decisão transitada em julgado, aplicam-se de forma retroativa, qual a via processual adequada — e, portanto, qual o critério determinante da competência — para se desconstituir comando transitado em julgado e que se afigure incompatível com a regulação mais favorável ao réu positivada pela nova lei?

Desde logo, não há dúvida de que a coisa julgada material não é impeditiva da revisão do que se julgou. É que a superveniência de legislação aplicável à relação jurídica que foi objeto do julgamento (daí a premissa acima assumida, de retroação), é capaz de superar mencionada autoridade.

Como sabido, a sentença de mérito projeta efeitos substanciais para fora do processo e "define" a relação jurídica de Direito material, ela própria marcada, em maior ou menor intensidade, por nota de temporalidade, que pode ser tida como "nota essencial das situações jurídicas substanciais". Por isso se diz que a duração limitada no tempo do que se julgou "depende de um dado pré-jurídico: a temporalidade dos interesses avaliados e protegidos pelo ordenamento jurídico" (cf. Remo Caponi, L'efficacia del giudicato civile nel tempo, Università di Firenze, Milão, Giuffrè, 1991, pp. 24/25; tradução livre).

Como bem destaca a doutrina, todas as sentenças contêm implicitamente a cláusula rebus sic stantibus, "enquanto a coisa julgada não impede absolutamente que se tenham em conta os fatos que intervierem sucessivamente à emanação da sentença (…)" (cf. Enrico Tullio Liebman, "Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada", tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires, tradução e notas de Ada Pellegrini Grinover, 4ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2006, pp. 27/28). Com efeito, a imutabilidade dos efeitos da decisão final se refere "a um determinado momento da situação substancial apurada em juízo", sabido que o processo não pode ser obstáculo à possível evolução do Direito material. Isso significa que "todos os efeitos jurídicos acumulados após esse momento, se relevantes e não conflitantes com o efeito jurídico estabelecido, podem ser livremente reivindicados". Assim, a eficácia da sentença, "em relação à ocorrência dos efeitos jurídicos produzidos pela intervenção de fatos novos relevantes, refere-se ao último momento em que os fatos podem ser introduzidos naquele grau de julgamento que terminou com a sentença transitada em julgado (…): esse é o momento do esclarecimento das conclusões. Todos os fatos ocorridos a partir desse momento, na medida em que sejam relevantes para a situação material apurada em juízo, mantêm intacta sua relevância e podem ser afirmados, se necessário, em sentença posterior" (cf. Remo Caponi, op. cit. p. 143; tradução livre).

De forma análoga, já se ponderou que a autoridade da coisa julgada "(n)ão é um obstáculo à alegação de eventos novos e subsequentes, que afetam o modo de ser do direito decidido", de tal sorte que "qualquer modificação subsequente relativa ao efeito jurídico apurado ultrapassa os limites da coisa julgada" (cf. Sérgio Menchini, Il Giudicato Civile, Torino, UTET, 1988, p. 204). Assim, diante da modificação no estado de fato ou de direito, a regra ditada pela sentença pode ser revista "para se adaptar à situação superveniente. Isto, é claro, não atinge a coisa julgada que permanecerá intocável nos seus limites objetivos, vinculada à relação jurídica tal como se apresentou no momento da decisão" (cf. Antonio Carlos de Araújo Cintra, "Comentários ao Código de Processo Civil", vol. IV, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, pp. 316/317). Até pelo contrário, "diante da modificação, a imutabilidade feriria a regra, em vez de obedecer ao que ela estatui". Isso porque "é o Direito material que determina a qualidade das suas regras, de modo que a coisa julgada formal ou material não é ofendida por essa mutabilidade, nem pela consequente alterabilidade dos termos da interpretação ou versão executiva inicial da sentença" (cf. Pontes de Miranda, "Comentários ao Código de Processo Civil", tomo V, Rio de Janeiro, Forense, 1974, pp. 192/193). Daí ser lícito concluir que "a sentença tem eficácia enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza" (cf. Teori Albino Zavascki, "Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional", São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, p. 83).

Como bem já se apontou em doutrina, a questão relativa ao termo final da eficácia da sentença e da autoridade da coisa julgada "vincula-se à natureza da relação jurídica solucionada no julgado, vale dizer, se de incidência e configuração instantânea ou então continuativa. Esta última caracterizada pela sucessão de desdobramentos decorrentes da incidência dos pressupostos de fato e normativos a ela relacionados. Pode-se afirmar como premissa geral, válida inclusive para a hipótese da relação jurídica continuativa ou de trato sucessivo, que a sentença será eficaz enquanto restarem inalterados os pressupostos fáticos e normativos com base nos quais veio a ser prolatada. Essa ideia que se encontra na base da asserção de que a força da res iudicata tem uma condição implícita, consistente na cláusula rebus sic stantibus mantém-se intocada na medida em que remanescerem íntegras as circunstâncias relativas à fattispecie (fato e direito) que foram reconhecidas como existentes quando da decisão" (cf. Ricardo de Barros Leonel, "Causa de pedir e pedido", São Paulo, Método, 2006, pp. 276/278).

No caso das sanções impostas com base nas disposições legais mais gravosas, se considerada a legislação superveniente, a permanência dos respectivos efeitos configura a continuidade acima mencionada. Se ela não reside exatamente na relação jurídica que foi objeto do julgamento originário, ela está presente no prolongamento da eficácia da sentença, isto é, da oneração decorrente da vigência da pena aplicada. Portanto, se e enquanto persistam os efeitos das sanções aplicadas, suposto sejam elas incompatíveis com as novas e mais benéficas disposições legais, é precisamente do problema cronológico da eficácia da sentença e da respectiva imutabilidade que se está a tratar (retroatividade in mellius). E isso autoriza que o interessado demande a adequação do que se julgou, de um lado, à regulação jurídica atual, de outro lado.

Aqui se chega, então, à dupla questão posta inicialmente: qual a via processual adequada e como se determina a competência para tanto.

Quanto ao primeiro dos temas propostos, a hipótese encaixa-se perfeitamente na previsão do inciso I do artigo 505 do CPC (que substancialmente reeditou a regra constante do artigo 471, I, do diploma processual precedente): sobrevindo modificação no Estado de Direito (repita-se, na premissa de que a lei mais benéfica retroage), a parte pode pedir "a revisão do que foi estatuído na sentença". A causa de pedir da demanda consiste na desconformidade entre o que se decidiu com base na lei antiga e as disposições mais benéficas, constantes da lei nova. É ônus do interessado alegar e demonstrar que o objeto do julgamento original — sua parte dispositiva à luz dos respectivos fundamentos de fato e de direito — não se compadece com as regras vigentes.

Não se trata propriamente de invalidar atos do processo anterior porque os fundamentos da demanda não residem em erro — de processo ou de julgamento — que teria sido cometido no processo originário. Trata-se de rever o que foi decidido e, portanto, considerar de que forma as novas disposições legais aproveitam à parte condenada e, portanto, são capazes de levar ao afastamento ou redução da sanção anteriormente aplicada. Disso se extrai, portanto, que não se afigura cabível a propositura de ação rescisória, que pressupõe invalidade da decisão originária, conforme hipóteses do artigo 966 do CPC, que nenhuma correspondência guarda com a situação examinada. Na pretensão revisional, não se cogita de erro contemporâneo à edição da decisão originária; seus fundamentos são lógica e juridicamente supervenientes à imposição da sanção e mesmo à formação da coisa julgada.

Se a fase de liquidação ou cumprimento de sentença condenatória do processo sancionador estiver ainda em curso, a modificação (redução) das sanções ou mesmo a extinção da punibilidade pode ser reconhecida no próprio processo. A fim de se evitar tumulto processual e viabilizar-se uma melhor tramitação, é conveniente que tal demanda seja autuada separadamente, como medida incidental.

Sendo assim, chega-se ao segundo ponto levantado: tratando-se de demanda revisional, a competência é do juízo de primeiro grau e, por critério funcional, ela é do órgão que impôs a sanção e que, portanto, é o competente para dirimir temas relativos ao cumprimento da decisão — ainda que possa não existir tecnicamente uma fase executiva, dado que os efeitos da sanção se cumprem por forma diversa do que aquela resultante da prática de atos materiais de invasão da esfera jurídica do devedor. Portanto, exceto se a sanção tiver sido imposta em processo de competência originária do tribunal, não será dele a competência; nem mesmo nos casos em que, por força do efeito substitutivo dos recursos, a sanção resultar de decisão que não a do primeiro grau.

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