Escritos de Mulher

Violência política: mais uma forma de discriminação contra a mulher

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11 de novembro de 2021, 8h49

Muito se fala sobre a violência praticada contra a mulher no âmbito doméstico. Contudo, a partir de um espectro mais amplo, a violência que subjuga em razão do gênero se constitui por múltiplas formas em ambientes diversos e, segundo definição prevista na Convenção de Belém do Pará, perpetua-se por qualquer ato que ofenda a dignidade humana e exalte as relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.

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A amplitude do estudo sobre os espaços marcados pela histórica dominação masculina nos conduz ao esboço de algumas linhas sobre a violência política contra a mulher que, apesar de imbricada nas relações humanas desde a história antiga, passou a ser tipificada como crime pela legislação nacional em agosto deste ano, por meio da Lei 14.192, que alterou o Código Eleitoral [1].

De lá para cá, pouca coisa mudou. Apesar do amplo debate, fruto da recente promulgação do novo tipo penal, quanto à naturalização social das constantes desqualificações contra aquelas que ousam ocupar espaços públicos marcados pela estrutura patriarcal que ainda prioriza o papel do homem em detrimento da mulher, vimos que elas ainda são perseguidas no exercício de seus cargos, enquanto homens se sentem confortáveis em assediar mulheres nos meios públicos.

No mês passado, foi notícia, muito embora pouco tenha se falado a respeito, o caso da vereadora Katyane Leite (PTB). Durante a sessão da Câmara Municipal de Pedreiras (MA), ela teve o microfone violentamente arrancado de suas mãos pelo vereador Emanuel Nascimento (PL), enquanto exercia sua fala pública. Indignada, Katyane tomou um outro microfone que estava vago e tentava prosseguir quando outra vez lhe foi retirado com força o objeto de suas mãos.

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No mês anterior, tínhamos visto outros episódios de violência política, que não ficaram restritos a apenas uma faixa do espectro ideológico. O ator José de Abreu repostou um tuíte em que dizia ter "vontade de dar soco" na deputada Tabata Amaral e o ministro da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, chamou a senadora Simone Tebet de "descontrolada" durante a CPI da Covid-19. No final de 2020, vimos estarrecidos a deputada Isa Penna ter o seio apalpado em sessão na Alesp.

Não é de hoje que o suposto descontrole emocional feminino, pressuposto da distorcida lógica patriarcal que sustenta o inconsciente coletivo popular, é motivação para as mais diversas formas de violências praticadas contra a mulher em razão do gênero.

Em um passado não tão distante, eis que a história é rica em episódios mais antigos de perseguições, milhões de mulheres foram exterminadas na denominada "caça às bruxas", a inquisição do século 15, sob as justificativas contidas nas descrições do Malleus Meleficarum [2], tratado de 1484, definido por Zaffaroni como o primeiro discurso criminológico moderno a fundamentar o extermínio de pessoas [3]. Em breve trecho da doutrina que legitimou o Tribunal do Santo Ofício a matar mulheres em toda Europa para conter o suposto descontrole feminino, percebe-se que a construção de estereótipos distorcidos de gênero faz parte da estruturação de um sistema simbólico que reforça a dominação masculina:

"Elas dão provas de uma maior credulidade que os homens. Elas são também naturalmente mais impressionáveis e, portanto, mais maleáveis pelas ilusões do Diabo. São muito faladoras e não conseguem deixar de falar entre elas e de transmitir os seus conhecimentos sobre a arte da magia".

A mesma lógica perversa que há séculos questiona a sanidade das mulheres, que coloca em xeque a credibilidade daquelas que ocupam espaços públicos, objetifica ao atribuir à sexualidade da mulher o sucesso por ocupar certos lugares de poder: se o padrão estético for um clássico estereótipo patriarcal, suspeitas lhe recairão sobre os meios utilizados para alcançar o poder e a visibilidade. Se os atributos físicos forem diversos dos arquétipos da beleza idealizada, será vista como Medusa, um ser estranho, que teria alcançado certo status sem favores masculinos.

Lembremos de Cleópatra. A líder egípcia que governou em um período conturbado, mantendo seu povo unido, exaltada como uma verdadeira deusa. Cleópatra era um poço de cultura, escreveu dezenas de livros, dominava o latim, o grego antigo, lia hieróglifos, conhecia a Medicina e cura pelas ervas, a Astronomia, a Astrologia, a História, a Economia e a diplomacia internacional, mas não ficou isenta de ser subjugada ao papel da fêmea sexualmente depravada, que se manteve no poder por saber seduzir.

Assim como os livros de Cleópatra foram queimados na Biblioteca de Alexandria, sua reputação foi distorcida em famosos livros como "O Decameron", de Giovanni Boccaccio, que lhe apresentou como uma fanática pelo erotismo com talentos sexuais utilizados para a manutenção da sua situação política.

Pensemos. Se o poder de Cleópatra fosse derivado apenas de jogos de sedução, não teria sido ela mais uma das centenas de mulheres que Júlio Cesar descartou ao longo de sua vida?

O desdém pelas mulheres que ocupam cargos políticos permanece intacto. De acordo com levantamento realizado pela ONU "Mulheres Brasil em 2020", do total das que ocupam espaços políticos, 82% já sofreram violência psicológica, 45% foram alvo de ameaças, 25% foram violentadas fisicamente no espaço parlamentar e 40% afirmam que a violência atrapalhou a sua agenda legislativa.

A violência política de gênero é considerada uma das principais causas da sub-representação feminina nos espaços de poder e decisão. Segundo o IBGE, 51.8% da população brasileira é composta por mulheres. A quantidade de mulheres em cargos eletivos deveria seguir a mesma proporção. Contudo, no Brasil, as mulheres são apenas 15% da Câmara dos Deputados 12% do Senado Federal. Foram 900 os municípios que não tiveram sequer uma vereadora eleita no pleito de 2020.

O debate se amplia ao analisarmos casos bem-sucedidos de mulheres na política ao redor do mundo. Segundo o Fórum Econômico Mundial [4], os cinco países líderes em igualdade de gênero são Islândia, Finlândia, Noruega, Nova Zelândia e Suécia. Não por acaso, elas ocupam mais de 44% das vagas no Parlamento, segundo o ranking da União Interparlamentar que avalia a participação política das mulheres.

Vale ressaltar que somente três países (Ruanda, Cuba e Nicarágua) têm hoje mais mulheres do que homens no Legislativo.

A Islândia é referência em igualdade de gênero e foi considerada a nação mais igualitária do mundo pelo 12º ano consecutivo. Em 2018, o país nórdico se tornou o primeiro a criar lei que exige a igualdade de salários entre homens e mulheres. A lei islandesa tornou efetivamente ilegal pagar salários mais altos a homens que exerçam funções semelhantes.

Em outubro de 2014, a Suécia lançou uma política externa feminista, integrando a perspectiva de gênero em toda a sua agenda de política externa. A premissa do "Manual de Política Externa Feminista" se pautou nas seguintes perguntas: as mulheres estão representadas em lugares onde as decisões que as afetam são tomadas, como parlamentos, conselhos e sistemas jurídicos? A igualdade de gênero é levada em consideração quando os recursos são destinados nos orçamentos do governo federal ou nos projetos de assistência ao desenvolvimento? O que dizem as estatísticas sobre as diferenças entre mulheres e homens, meninas e meninos? Eles têm os mesmos direitos à educação, ao trabalho, ao divórcio, ao casamento e à herança?

O "Manual de Política Externa Feminista" [5] integrou sistematicamente uma perspectiva de gênero em toda a agenda de política externa, e é organizado em torno de três Rs: rights (direitos), representation (representação) e resources (recursos). Como ponto de partida, se baseia em um quarto R: reality. O objetivo é levar em conta a realidade de cada beneficiária da política.

Ann Linde, ministra das Relações Exteriores da Suécia, reforça a opção por considerar a perspectiva de gênero na política ao explanar que "pesquisas mostram que as sociedades com igualdade de gênero desfrutam de saúde melhor, crescimento econômico mais forte e mais segurança. Também demonstram que a igualdade de gênero contribui para a paz, e que quando a mulher participa de processos de paz, a probabilidade de paz duradoura aumenta".

Enquanto o futuro sueco desponta, a realidade brasileira é frustrante. Dos 192 países avaliados, o Brasil ocupa a 140ª posição do ranking de nações mais igualitárias. Segundo a União Interparlamentar, estamos atrás de todas as nações da América Latina, com exceção do Paraguai e do Haiti.

Punir a violência política de gênero é importante passo em um país que entrega 80% do poder legislativo às mãos de homens. Mas há muito ainda a fazer para que possamos efetivamente ocupar espaços públicos de forma igualitária. Comecemos por observar como a histórica estrutura patriarcal reverbera em nossos corpos, mentes e comportamentos. Depois, avancemos para a elaboração de políticas públicas que devolvam às mulheres o que garante a Constituição Federal: igualdade.

 


[1] "Artigo 3º – Considera-se violência política contra a mulher toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher.
Parágrafo único. Constituem igualmente atos de violência política contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo".

[2] KRAMER, Heinrich et al. O Martelo das Feiticeiras.17ªed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2004.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. “El sistema penal en los países de América Latina”. In: JÚNIOR, João Marcello de Araújo (Org.). Sistema penal para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1991. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Mulher e o Poder Punitivo. In: CLADEM. MulheresVigiadas e Castigadas. São Paulo, 1995. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El discurso feminista y el poder punitivo. In: SANTAMARÍA, Ramiro Ávila, VALLADARES, Lola (Orgs.) El género en el derecho. Ensayos críticos. Quito: V&M, 2009.

[4] Disponível em https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2021.pdf.

Autores

  • é advogada criminalista.

  • é advogada criminal, mestre em Direito pela UFRJ, especialista em Direitos Humanos pela mesma instituição, professora convidada da PUC Rio e da FGV Rio, vice-presidente da Abracrim-RJ e conselheira da OAB-RJ. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários.

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