Ambiente Jurídico

No Canadá, a precificação federal do carbono é constitucional

Autor

27 de março de 2021, 10h16

Numa histórica decisão, por maioria de 6 a 3, que se torna um precedente para o direito das mudanças climáticas, a Suprema Corte do Canadá decidiu que a determinação do governo federal, por lei, aos governos estaduais, para a precificação do carbono, é constitucional. Três províncias Saskatchewan, Ontário e Alberta haviam arguido a inconstitucionalidade da lei, remetendo a legislação para a apreciação dos seus respectivos Tribunais de Recurso.[1]

Spacca
As províncias haviam alegado, em apertada síntese, que tinham as suas próprias políticas climáticas, adaptadas às suas circunstâncias locais. Argumentaram também que tinham plena jurisdição sobre os seus recursos naturais, como previsto na Constituição. De outro lado, o governo federal argumentou que tinha autoridade constitucional para regulamentar questões de âmbito nacional e que a lei era um ponto de apoio para assegurar normas mínimas de fixação dos preços do carbono para todo o país. Os Tribunais de Recurso de Saskatchewan e Ontário consideraram a Lei federal constitucional, enquanto que o Tribunal de Recursos de Alberta a considerou inconstitucional. A lei, então, foi declarada constitucional, em caráter definitivo, pela Suprema Corte.[2]

A grande questão enfrentada no precedente, sem dúvida, foi a definição de que o governo federal tem autoridade para aprovar lei que coloca preço no carbono. Citando o poder do Parlamento de legislar sobre assuntos relacionados a paz, a ordem e ao bom governo, a Corte declarou que combater as mudanças climáticas com a redução das emissões de gases de efeito de estufa é uma questão de  preocupação nacional protegida pela Constituição. Para a Corte, o tema se trata uma emergência climática que coloca em risco vidas humanas não apenas no Canadá, mas em todo o mundo. Consta no leading case que as as alterações climáticas são reais e causadas por fatores antrópicos. Ou seja, as  emissões de gases de efeito de estufa são oriundas de ações e omissões humanas e representam uma grave ameaça para o futuro da humanidade em uma perspectiva intergeracional.[3]

A precificação do carbono, outrossim, é apoiada pela ampla maioria dos economistas e, de acordo com o Banco Mundial, está sendo implementada, em alguma extensão, em pelo menos 64 países com a tributação direta sobre os combustíveis fósseis ou com a implementação de programas de cap-and-trade.[4] Aliás, de acordo com o professor Michael Gerrard, diretor do Sabin Center for Climate Change Law da Columbia Law School, estes são os dois instrumentos jurídicos mais efetivos para o combate ao aquecimento global em sede de direito das mudanças climáticas.[5]

A fixação de preços mínimos  para o carbono como forma de reduzir as emissões e encorajar a eficiência é um nudge importante implementado pelo Governo canadense liderado pelo Premier Justin Trudeau. A normativa implementada pelo Governo consiste na prática de estimular e compelir, sob a imposição de sanções, as províncias a fixarem o preço do carbono. Nos Estados Unidos, apenas a título de exemplo, vários Estados, como a Califórnia, já fixaram o preço do carbono e possuem bem estruturados programas de compra e venda de licenças de emissões. Todavia, os Republicanos no Congresso norte-americano continuam a fazer uma dura e competente oposição contra a criação de um imposto sobre o carbono e votam em bloco para impedir a oneração dos combustíveis fósseis.

A origem política do litígio climático canadense, ora comentado, estava no fato de que os governos provinciais eram produtores de petróleo e, ainda, geridos na atualidade por gestões conservadoras. O governo de Ontário, província mais populosa do Canadá, chegou a cancelar, por exemplo, o programa de preços do carbono no ano de 2018. Todavia, referidas medidas provinciais restaram fulminadas pela Suprema Corte que foi minudente ao elencar os perigos das mudanças climáticas  para as zonas litorâneas,   para a região ártica e, em particular, para os povos indígenas. Sob o aspecto ético, que deve pautar as condutas processuais, em especial nos litígios climáticos, importante referir que, nas defesas das três províncias, não foram negados o aquecimento global e os seus efeitos negativos. As defesas dos governos provinciais restaram focadas apenas em possíveis excessos do governo federal que teria extrapolado a sua competência constitucional.[6]

Importante grifar que o governo canadense, em ato que não viola a Constituição, fixou um preço mínimo para o carbono por lei. Daqui a poucos dias, no início de abril, o preço mínimo restará fixado em 40 dólares canadenses por tonelada métrica e este valor será elevado, gradativamente, até ser fixado em 170 dólares por tonelada no ano de 2030. Este aumento gradativo, aliás, é de boa técnica e recomendável em nível de Clean Energy Law.[7]

A maioria das províncias no Canadá, apenas para melhor contextualizar o leitor, possui os seus próprios programas para cumprir as metas de precificação do carbono, quer através de uma tributação direta sobre os  combustíveis e as emissões da indústria, quer através da fixação de um limite para as emissões e o regular funcionamento do mercado de cap-and-trade . O governo federal, em tempo, apenas interveio quando o governo de Ontário recusou-se a fixar o preço do carbono e estabelecer  um imposto sobre os combustíveis,  além de recusar-se a taxar as emissões industriais. Relevante ressaltar que os cidadãos canadenses já recebem do governo reduções do imposto sobre o carbono para compensar a sobretaxa do combustível. Na prática, a maioria das famílias recebe mais incentivos fiscais do que gasta com os impostos sobre o carbono. Os cidadãos podem, portanto, aumentar esses bônus reduzindo ainda mais as suas emissões, por exemplo, utilizando veículos elétricos ou modernizando os sistemas  residenciais, comerciais e industriais de aquecimento e de refrigeração.[8]

A Suprema Corte declarou a constitucionalidade da lei, em parte, porque a política pública climática federal só entra em vigor se as províncias não criarem os seus próprios programas, mantendo assim competências constitucionais legislativas e executivas a serem partilhadas entre os dois níveis de governo sobre questões ambientais e climáticas. Um dos pontos mais importantes da decisão, igualmente, foi a parte em que esta conclui pela necessidade da fixação de um preço mínimo nacional unificado para o carbono, a ser estabelecido pelo governo federal,  com a finalidade de  reduzir eficazmente as emissões dos gases de efeito de estufa. Aliás, o leading case refere que a abordagem das mudanças climáticas exige uma ação coletiva nacional e internacional, pois os efeitos nocivos dos gases de efeito estufa não estão, pela sua própria natureza, confinados por fronteiras políticas.[9]

Portanto, tecnicamente, a Suprema Corte decidiu que o combatido Greenhouse Gas Pollution Pricing Act de 2018 é constitucional em virtude, igualmente, da existência do  consenso científico de que as emissões de gases de efeito de estufa contribuem para as mudanças climáticas. Outro ponto enfocado pela Corte foi de que todos os países comprometeram-se a reduzir drasticamente as suas emissões de gases de efeito de estufa nos termos do Acordo de Paris de 2015. No Canadá, como em vários outros países signatários da COP21, o governo federal aprovou lei infraconstitucional para implementar os compromissos estabelecidos na mesma. Especificamente, a lei federal, julgada constitucional, criou obrigação jurídica para que as províncias e os territórios implementassem sistemas de fixação de preços de gás carbónico até 1º de janeiro de 2019 ou adotassem, alternativamente, o imposto sobre o carbono do governo federal.

O Presidente da Suprema Corte, Justice Richard Wagner, em seu elucidativo voto, referiu que a norma federal seria aplicável apenas se os sistemas de preços provinciais ou territoriais não fossem criados no prazo previsto ou fossem insuficientes para reduzir (ou desestimular) as emissões que causam o aquecimento global. Referida  doutrina  da preocupação nacional (também um precedente do direito constitucional canadense) é, aliás, raramente aplicada para não interferir na autonomia constitucional do governo federal, dos territórios e das províncias.  No caso, no entanto, a doutrina da preocupação nacional ficou bem estabelecida pela Corte no caso climático e foi aplicada de modo expresso e consistente com o princípio da Separação dos Poderes.[10]

A maioria dos julgadores observou que o sistema constitucional do Canadá, que consagra um governo federal, exige o necessário equilíbrio entre os poderes federais e provinciais. Trata-se de federalismo a ser respeitado.  Este, aliás, trata-se de um princípio fundacional da Constituição do Canadá de 1982. A maioria dos justices, portanto, referiu que o termo taxa sobre o carbono é frequentemente utilizado para descrever a fixação do preço das emissões. No entanto, na decisão resta consignado que esta figura jurídica não se trata de tributo, tal como entendido no  contexto constitucional. Concluíram os julgadores que as taxas sobre combustíveis e emissões excessivas previstas pela lei são encargos constitucionalmente válidos. No âmbito do direito das mudanças climáticas renovam-se as esperanças que a referida decisão sirva de exemplo e firme-se como precedente a iluminar o destino das atuais e futuras gerações a exemplo de Urgenda (Holanda),[11] Leghari (Paquistão)[12], Epa v. Massachusets (Estados Unidos)[13], Preservación de Glaciares (Argentina)[14] e Friends of the Irish Environment v. Ireland (Irlanda).[15]


[1] FINANCIAL TIMES. Canadian Supreme Court Upholds Justin Trudeau’s Carbon Tax. Disponível em: https://www.ft.com/content/077ba8f5-c2b1-4b97-a69d-416ad8aaee9c. Acesso em: 26.03.2021.

[2] THE NEW YORK TIMES. Canada Supreme Court Rules Federal Carbon Tax Is Constitutional

Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/03/25/world/canada/canada-supreme-court-carbon-pricing.html. Acesso em: 26.03.2021.

[3] SUPREME COURT OF CANADA. Reference re Greenhouse Gas Pollution Pricing Act. Disponível em: https://www.scc-csc.ca/case-dossier/cb/2021/38663-38781-39116-eng.aspx. Acesso em: 26.03.2021

[4] THE NEW YORK TIMES. Canada Supreme Court Rules Federal Carbon Tax Is Constitutional

Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/03/25/world/canada/canada-supreme-court-carbon-pricing.html. Acesso em: 26.03.2021.

[5] Sobre o tema, ver: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Ed.). Global Climate Change and U.S. Law. 2. ed. Chicago: American Bar Association, 2018.

[6] SUPREME COURT OF CANADA.  Reference re Greenhouse Gas Pollution Pricing Act. Disponível em: https://www.scc-csc.ca/case-dossier/cb/2021/38663-38781-39116-eng.aspx. Acesso em: 26.03.2021

[7] GERRARD, Michael. The Law of Clean Energy: Efficiency and Renewables. New York: American Bar Association, 2016.

[8] SUPREME COURT OF CANADA. Reference re Greenhouse Gas Pollution Pricing Act. Disponível em: https://www.scc-csc.ca/case-dossier/cb/2021/38663-38781-39116-eng.aspx. Acesso em: 26.03.2021

[9] SUPREME COURT OF CANADA. Reference re Greenhouse Gas Pollution Pricing Act. Disponível em: https://www.scc-csc.ca/case-dossier/cb/2021/38663-38781-39116-eng.aspx. Acesso em: 26.03.2021.

[10] SUPREME COURT OF CANADA. Reference re Greenhouse Gas Pollution Pricing Act. Disponível em: https://www.scc-csc.ca/case-dossier/cb/2021/38663-38781-39116-eng.aspx. Acesso em: 26.03.202

[11]URGENDA. Landmark Decision by Dutch Supreme Court. Disponível em: https://www.urgenda.nl/en/themas/climate-case/. Acesso em: 15.03.2021.

[12] THE NATION. Understanding Climate Change in Pakistan. Disponível em:https://nation.com.pk/14-Dec-2019/understanding-climate-change-in-pakistan. Acesso em: 22.03.2021.

[13] Sobre Epa v. Massachusets, ver também: OSOFSKY, Hari. The Intersection of Scale, and Law in Massachussets v. EPA. In: BURNS, Willian; OSOFSKY, Hari. Adjudicating Climate Change: State, National and International Approaches. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 129-144; CASS, Ronald. Massachusetts v. EPA: The Inconvenient Truth About Precedent. Virginia Law Review, Charlottesville, v. 93, p. 75-84, 2007. Disponível em: <http://www.virginialarewiew.org/volumes/content/massachussets-v-epa-inconvenient-truth-about-precedent>. Acesso em: 15.03.2021; FREEMAN, Jody; VERMEULE, Adrian. Massachussets v. EPA: From Politics to Expertise. Supreme Court Review, Chicago, n. 1, p. 78-87, 2007; e, igualmente, CANNON, Jonathan Z. Environment in the Balance: the Green Movement and the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2015.

[14] ARGENTINA. Corte Suprema de La Nación. Centro de Informacion Judicial. La Corte Suprema volvió a convalidade la constitucionalidade de la ley de preservación de los glaciares, rechazando um planteo de minera Pachón. Disponível em: https://www.cij.gov.ar/nota-34868-La-Corte-Suprema-volvi–a-convalidar-la-constitucionalidad-de-la-ley-de-preservaci-n-de-los-glaciares–rechazando-un-planteo-de-minera-Pach-n.html. Acesso em: 14 mar. 2021.

[15]SABIN CENTER FOR CLIMATE CHANGE LAW. Climate Change Litigation Databases. Friends of the Irish Environment v. Ireland. Disponível em: http://climatecasechart.com/non-us-case/friends-of-the-irish-environment-v-ireland/. Acesso em: 16 mar. 2021.

Autores

  • é juiz federal, professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor coordenador de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito, visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg — Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht e diretor de Assuntos Internacionais do Instituto O Direito Por um Planeta Verde.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!