Opinião

O julgamento da ADI 6288/CE, o licenciamento ambiental e os municípios

Autores

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

  • Arícia Fernandes Correia

    é procuradora do município do Rio de Janeiro professora da Uerj (Universo do Estado do Rio de Janeiro) pós-doutora em Direito pela Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne — doutora em Direito Público pela Uerj mestre em Direito da Cidade pela Uerj e autora de publicações na área de Direito Urbanístico e Municipal.

18 de março de 2021, 15h09

Indubitavelmente, uma das decisões judiciais mais importantes em matéria de Direito Ambiental do ano de 2020 foi a da ADI 6288/CE, interposta pelo PSOL, tendo o Supremo Tribunal Federal declarado a inconstitucionalidade material de parte da Resolução 02/2019 do Conselho Estadual de Meio Ambiente do Ceará (Coema). O julgado serviu para consagrar a autonomia dos municípios para licenciar as atividades de impacto ambiental local e a impossibilidade de se dispensar o licenciamento ambiental dos empreendimentos efetiva ou potencialmente poluidores.

Spacca
O acórdão, que teve como relatora a ministra Rosa Weber, conferiu interpretação conforme à Constituição Federal ao caput do artigo 1o da Resolução Coema 02/2019 e considerou inconstitucional o artigo 8o da questionada norma [1]. A ementa é bastante didática a respeito dos dois aspectos citados como objeto da decisão:

"Ementa: ação direta de inconstitucionalidade. Direito ambiental e constitucional. Federalismo. Repartição de competências legislativas. Resolução do conselho estadual do meio ambiente do Ceará Coema/CE nº 02, de 11 de abril de 2019. Disposições sobre os procedimentos, critérios e parâmetros aplicados aos processos de licenciamento e autorização ambiental no âmbito da superintendência estadual do meio ambiente — Semace. Cabimento. Ato normativo estadual com natureza primária, autônoma, geral, abstrata e técnica. Princípio da predominância do interesse para normatizar procedimentos específicos e simplificados. Jurisprudência consolidada. Precedentes. Criação de hipóteses de dispensa de licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos potencialmente poluidores. Flexibilização indevida. Violação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225 da constituição da república), do princípio da proibição do retrocesso ambiental e dos princípios da prevenção e da precaução. Resolução sobre licenciamento ambiental no território do Ceará. Interpretação conforme para resguardar a competência dos municípios para o licenciamento de atividades e empreendimentos de impacto local. Procedência parcial do pedido" [2].

Impende dizer que a decisão, cujo acórdão transitou em julgado no dia 12/12/2020, foi unânime, o que não é algo comum no âmbito do STF, ainda mais em matéria ambiental. O julgado reconheceu a autonomia das municipalidades para fazer o licenciamento ambiental das atividades de impacto local e a impossibilidade de dispensa da exigência de licença ambiental no que diz respeito aos empreendimentos efetiva ou potencialmente poluidores. Logo, ao menos em princípio, faz-se necessário analisar em separado cada um desses dois aspectos da decisão.

A respeito da dispensa indevida do licenciamento ambiental, é importante destacar que o artigo 8º e o anexo III estabeleceram mais de quarenta situações de dispensa de licenciamento ambiental, sendo possível destacar os projetos agrícolas de sequeiro com uso de agrotóxicos em áreas de até 30 hectares, os projetos de irrigação com uso de agrotóxico em áreas de até trinta hectares e o cultivo de flores e plantas ornamentais com uso de agrotóxico em áreas de até 20 hectares. Ocorre que isso afronta o inciso V do §1º do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), segundo o qual para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente cabe ao poder público "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente". Essa dispensa também contraria o artigo 10 da Lei 6.938/1981 e o inciso I do artigo 2º da LC 140/2011, que exigem o licenciamento de toda e qualquer atividade efetiva ou potencialmente poluidora. Existe uma jurisprudência já formada no âmbito do STF a respeito da inconstitucionalidade dessa dispensa, a exemplo da ADI 5312/TO e da ADI 5475/AP [3].

Destarte, nesse ponto a decisão foi correta não apenas do ponto de vista jurídico, mas técnico também, já que a não exigência do licenciamento ambiental poderia implicar em danos ao meio ambiente e à saúde humana. Contudo, não se pode deixar de dizer que a dispensa também constitui uma afronta à autonomia municipal, uma vez que, na maioria dos casos, envolve atividades de interesse local, como casas de show, oficinas mecânicas, pequenas fábricas etc. É o caso do inciso I do artigo 3º da Lei de Liberdade Econômica, que de maneira inconstitucional invadiu a autonomia municipal para tentar impor a desnecessidade da exigência de licença ambiental, de licença urbanística e de outros atos públicos de liberação [4]. Isso significa que, além de jogar contra os valores ambientais, a dispensa é normalmente um desrespeito à autonomia dos municípios.

De mais a mais, não se pode esquecer que a delimitação da competência licenciatória municipal acaba definindo quase toda a atuação administrativa em matéria ambiental, uma vez que a LC 140/2011 vincula a responsabilidade pela fiscalização e pela imposição de sanções administrativas ambientais à atribuição de licenciar. É que ao órgão licenciador cabe a última palavra sobre a responsabilidade administrativa ambiental, seja para eximir ou para punir a atividade poluidora [5]. Logo, ao restringir a competência licenciatória o Estado também poderia estar limitando a própria capacidade sancionatória dos municípios.

Já a respeito da afronta direta à autonomia administrativa dos entes locais, é importante destacar que a norma questionada abrangia também os procedimentos efetuados pelos municípios, pois o artigo 1º dispunha sobre a sua aplicação em todo o território do Estado do Ceará. Parece evidente a inconstitucionalidade da imposição de critérios, parâmetros e custos operacionais de concessão de licença/autorização e de análise de estudos ambientais, posto que isso fere a autonomia dos entes locais, os quais foram alçados à condição de membros da federação pela CF/88, inexistindo assim qualquer grau de hierarquia entre os níveis federativos [6].

A Corte Maior constatou que o Coema teria extrapolado as suas atribuições ao tentar disciplinar a alínea "a" do inciso XIV do artigo 9º da Lei Complementar (LC) 140/2011, segundo a qual incumbiria aos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente definir a tipologia de licenciamento ambiental a ser seguida pelos municípios. Esse dispositivo é inconstitucional por afrontar o princípio da legalidade, o princípio da reserva legal, o princípio da separação de poderes e a autonomia dos entes locais, entre outras questões. Na realidade, o que cabe a tais conselhos é verificar se os municípios dispõem de estrutura técnica adequada para exercer as suas atribuições, uma vez que dispõem de competências administrativas ambientais originárias nas matérias de interesse local por força da própria CF/88.

Esse julgamento é importante porque demonstra uma tendência a ser adotada na interpretação da LC 140/2011, a qual dispôs sobre a competência administrativa ambiental ao regulamentar os incisos III, VI e VII do caput e o parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal de 1988. Não se pode esquecer que a ministra Rosa Weber é também a relatora da ADI 4757, cujo objetivo é declarar a inconstitucionalidade integral dessa lei (ou ao menos dos seguintes dispositivos, que foram questionados com maior ênfase: artigo 4º, V, VI, artigo 7º, XII, XIV, "h" e parágrafo único, artigo 8º, XIII e XIV, artigo 9º, XIII e XIV, artigo 14, §§3º e 4º, artigo 15, artigo 17, §§2º e 3º, artigo 20 e artigo 21).

Isso implica dizer que é possível antever o entendimento da relatora e da corte, ao menos no que diz respeito à autonomia dos entes locais em matéria de competência administrativa ambiental. Vale a pensa salientar que já se deu a manifestação da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República, faltando agora apenas a relatora lançar o relatório e solicitar a data para levar o processo ao plenário para julgamento, o que pode acontecer a qualquer momento.

Clique aqui para ler o acórdão da ADI 6288/CE

 


[1] "Artigo 1°. Serão disciplinados nesta Resolução os critérios, parâmetros e custos operacionais de concessão de licença/autorização e de análise de estudos ambientais, referentes ao licenciamento ambiental das obras e atividades modificadoras do meio ambiente no território do Estado do Ceará, conforme dispostos nos anexos desta Resolução. (…)
Artigo 8º. Conforme Anexo III desta Resolução, algumas atividades possuem limite mínimo para início da classificação como porte micro, a partir do qual o empreendedor deverá licenciar seu empreendimento. § 1º. Não será exigida licença/autorização ambiental para a obra ou atividade que se enquadre abaixo do valor apontado como limite mínimo para respectiva obra ou atividade, sendo classificada como porte menor que micro (<Mc). § 2º. Para a obra ou atividade não enquadrada no §1º, mas que também não conste nos Anexos dessa resolução, se necessária a emissão de documento ates-tando a isenção, o empreendedor deverá solicitar a Declaração de Isenção de Licenciamento Ambiental. § 3º. Para os empreendimentos enquadrados no §1º, deverá ser emitida pelo usuário, via sistema on line, a Declaração de Dispensa de Licenciamento Ambiental atestando a dispensa do licenciamento. § 4º. O disposto no parágrafo anterior não dispensa os estabelecimentos, empreendimentos, obras e atividades utilizadoras de recursos ambientais da solicitação de autorizações, alvarás e anuências de outros órgãos e/ou de outras licenças/autorizações previstas na legislação ambiental, quando se fizerem necessárias".

[2] É possível ter acesso à integra da ADI 6288-CE no site do STF: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5834246.

[3] A ADI 5312/TO foi julgada em 2018 e teve como relator o Ministro Alexandre de Moraes (processo disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4761115) e a ADI 5475/AP foi julgada em 2000 e teve como relatora a Ministra Carmen Lúcia Antunes (processo disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752833801).

[4] O Ministério da Economia revogou a Resolução CGSIM 64/2020, a qual dispunha sobre a inexigência de licenciamento urbanístico em determinadas situações. É que isso contrariava os arts. 30, VIII e 182, caput da CF/88, que alçam o Município à condição de principal executor da política urbana. Já a Resolução CGSIM 51/2019, que procura regulamentar a dispensa da exigência do licenciamento ambiental, continua em vigor. A respeito do assunto: https://www.conjur.com.br/2020-jan-25/ambiente-juridico-efeitos-lei-liberdade-economica-licenciamento-ambiental.

[5] "Artigo 7º. São ações administrativas da União: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida à União; (…)
Artigo 8º. São ações administrativas dos Estados: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida aos Estados; (…)
Artigo 9º. São ações administrativas dos Municípios: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida ao Município; (…)
Artigo 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada (…)".

[6] Vide os arts. 1o, caput, 18, 23 e 30 da CF/88.

Autores

  • é advogado, professor da UFPB e da UFPE, doutor e pós-doutorando em Direito da Cidade pela UERJ, doutor em Recursos Naturais pela UFCG, mestre em Ciências Jurídicas pela UERJ e autor de publicações na área de Direito Ambiental e Urbanístico.

  • é procuradora do município do Rio de Janeiro, professora da UERJ, pós-doutora em Direito pela Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne —, doutora em Direito Público pela UERJ, mestre em Direito da Cidade pela UERJ e autora de publicações na área de Direito Urbanístico e Municipal.

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