Ambiente Jurídico

O licenciamento ambiental pelos municípios na Lei Complementar 140/2011

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

19 de novembro de 2016, 18h33

Spacca

Como é sabido, a Lei Complementar 140/2011 fixou as normas de cooperação entre os entes federativos nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção do meio ambiente. Essa lei dispôs sobre a competência administrativa dos Municípios em matéria ambiental de maneira ampla e expressa:

Art. 9º. São ações administrativas dos Municípios: (…)
XIV – observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos:
a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou
b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);

A LC 140 procurou disciplinar de forma específica a competência licenciatória dos municípios, o que até então não tinha previsão em lei federal, deixando os entes locais licenciadores em situação de insegurança jurídica.

De acordo com as alíneas a e b do inciso XIV do art. 9º, são duas as hipóteses de competência originária para o ente local realizar o licenciamento ambiental: i) nas atividades de impacto ambiental de âmbito local segundo a definição do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Coema) e ii) nas atividades localizadas em Unidades de Conservação (UCs) instituídas pelo município com exceção da Área de Proteção Ambiental (APA).

As demais situações são de competência originária da União ou dos Estados, que até poderão delegá-las ao ente local desde que haja a concordância dos envolvidos e a observância das formalidades legais necessárias.

Pois bem. A hipótese da alínea b é um desdobramento do critério da titularidade ou da responsabilidade sobre o bem, pois o ente federativo é competente para fazer o licenciamento ambiental das atividades localizadas nas suas UCs – exigência que existe também no tocante à União e aos Estados, haja vista o que dispõem a alínea d do inciso XIV do art. 7º e a alínea a do inciso XV do art. 8º. A exceção à regra são as APAs, que seguem o critério geral da repartição de competência para o licenciamento ambiental, pois nessa espécie de UC se costuma desenvolver praticamente todo tipo de atividade econômica.

Trata-se, no entanto, de uma situação excepcional, visto que são pontuais os casos de licenciamento ambiental dentro de UC, pois mesmo nas modalidades de uso sustentável – a exceção da APA, é claro – dificilmente se licencia algo não relacionado à infraestrutura das próprias área protegidas. Afora isso, se para nenhum ente federativo a situação é corriqueira, em se tratando dos municípios essa hipótese é ainda mais atípica, uma vez a qualidade, a quantidade e a extensão das UCs municipais são em regra bem menos representativas.

A regra geral dessa modalidade de licenciamento ambiental municipal está na alínea a, segundo a qual cabe ao município licenciar as atividades de impacto ambiental de âmbito local segundo a definição do Coema. Isso implica dizer que cada Estado deverá fazer a sua própria regulamentação, definindo as atividades que podem ser descentralizadas, bem como os requisitos necessários para isso, levando em consideração o porte, o potencial poluidor e a natureza da atividade.

A justificativa fática para essa opção estaria na longa extensão territorial e na forte complexidade ecológica e social do país, que possui dimensões continentais. Em realidades tão distintas como a do Acre e de São Paulo, a da Bahia e do Rio Grande do Sul e a do Mato Grosso e da Paraíba, somente para citar alguns Estados, o legislador entendeu que seria mesmo muito complicado trabalhar com um único conceito de interesse local.

Isso implica dizer que a tão esperada LC 140, que – ao regulamentar o parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal – deveria pôr um fim a indefinição e aos embates reinantes em matéria de competência licenciatória, não entregou aquilo que prometeu. Ao menos no que diz respeito aos entes locais a dúvida e a insegurança jurídica ainda parecem predominar, pois os Estados foram legalmente incumbidos da discricionariedade administrativa para alargar ou restringir tal atuação.

Tal regulamentação pode ser alterada com facilidade, posto que é feita por meio de uma simples resolução de um conselho público de direito cuja composição é definida, na quase totalidade dos casos, pelo Poder Executivo. Logo, qualquer atividade de âmbito municipal pode passar a ser de âmbito estadual e vice-versa, bastando para isso o desejo do Coema. Na verdade, tanto pode ocorrer a delegação forçada quanto a avocação de atribuições por iniciativa do ente estadual[1]. É óbvio que essa insegurança jurídica serve como desestímulo aos entes locais, que precisam investir pesado em estrutura e em pessoal, não podendo lidar com a possibilidade de ter suas atribuições questionadas ou mesmo de perdê-las[2].

Cumpre relembrar que isso diz respeito não apenas ao licenciamento ambiental, mas também à competência para impor sanções administrativas, dado que por força da LC 140 ambas estão vinculadas[3].

De mais a mais, ao ampliar ou diminuir a atuação dos municípios, é o seu próprio campo de atuação que o Estado está delimitando tendo em vista a competência residual[4]. Por consequência, pode acontecer que esse ente abra mão ou retenha atribuições com base em critérios meramente arrecadatórios ou políticos.

É possível que entes federativos estaduais contíguos, e com realidades ecológica e social semelhantes, adotem parâmetros distintos, fazendo com que o conceito de impacto ambiental de âmbito local sofra variações injustificadas. Além de causar desconforto aos empreendedores que atuam em mais de um Estado, isso decerto prejudica a articulação e a interação entre os entes locais tendo em vista as diferenças de espécies e de número de atividades licenciáveis.

No entanto, a maior discussão a respeito da alínea a do inciso XIV do art. 9º da LC 140 é realmente de cunho jurídico. Com efeito, é preciso saber se é legal e constitucional o Estado definir a atuação dos entes locais em matéria ambiental.

Do ponto de vista da formação do Estado brasileiro a maior novidade trazida pela Constituição Federal de 1988 foi a inclusão dos municípios como membros da federação, ao lado da União, dos Estados e do Distrito Federal. O município se tornou parte da organização política do país na condição de ente federativo, passando a gozar de autonomia, conforme determinam o caput do art. 1º, o caput do art. 18 e a alínea c do inciso VII do art. 34 da Constituição Federal. Isso significa que não existe hierarquia entre os entes federativos, todos são capazes de exercer direitos e contrair obrigações, dentro dos limites constitucionais.

Portanto, a inconstitucionalidade alínea a salta aos olhos, tendo em vista o desrespeito à autonomia do ente local. A própria Advocacia-Geral da União apontou a inconstitucionalidade desse e de outros dispositivos no Parecer 771/2011/CGAJ/CONJUR/MMA a inconstitucionalidade, recomendando o veto por inconstitucionalidade material e por contrariar o interesse público.

Entretanto, outras inconstitucionalidades podem ser levantadas, a exemplo do desrespeito ao princípio da separação dos poderes previsto no art. 2º da Lei Fundamental. O parágrafo único do art. 23 da Carta Magna exige que a matéria seja regulamentada pelo Congresso Nacional, não sendo possível a transferência de poder aos Estados.

O desrespeito ao princípio da legalidade é evidente, uma vez que a exigência constitucional era de lei e não de resolução de Coema. Ademais, a exigência era de lei complementar, de forma que nem mesmo uma lei ordinária poderia tratar do assunto, o que rendia homenagens ao princípio da reserva legal, tornando inequívoco a inconstitucionalidade material também.

Importa destacar ainda a falta de legitimidade política dos Coemas, que em regra não contam sequer com a participação dos entes locais em sua composição. Tais conselhos não possuem personalidade jurídica, constituindo uma simples divisão do órgão ambiental estadual. A composição deles é na maioria dos casos definida por decreto ou resolução, sendo de fácil alteração e manipulação.

Definitivamente, inexiste amparo jurídico, político ou técnico à missão que a LC 140 quis atribuir a eles. É que os municípios possuem competência administrativa originária em matéria ambiental, face o que dispõem os incisos III, VI e VII do art. 23, o art. 182 e o caput do art. 225 da Constituição da República. De fato, do ponto de vista do Pacto Federativo nada justificaria que a União, os Estados e o Distrito Federal possuíssem atribuição para fazer o licenciamento e os municípios não. Outrossim, não seria razoável que os entes locais se vissem privados exatamente daquele instrumento apontado como o mais proeminente da Política Nacional do Meio Ambiente.

Mais do que à competência licenciatória das municipalidades, a dúvida agora diz respeito à abrangência e aos limites dessa competência, haja vista a insegurança trazida pela alínea a do inciso XIV do art. 9º da LC 140. É sabido que a atuação do ente local deve se limitar às atividades de interesse local predominante, dado que esse é o critério constitucional. Ocorre que a ideia de atividade de interesse local é um conceito jurídico indeterminado, que deve ser preenchido de acordo com o assunto em discussão.

Embora tenha definido o conceito de impacto regional na Resolução 237/97, o Conama nunca definiu impacto local[5]. No Direito Ambiental brasileiro a regra sempre foi a vinculação entre o âmbito do interesse em jogo e a localização da atividade poluidora ou do seu impacto ambiental.

A maioria dos casos de licenciamento realizados sob a égide da Lei 6.938/81 e da Resolução 237/97 do Conama procurou seguir o parâmetro da extensão geográfica do impacto ambiental direto, ficando sob a responsabilidade estadual a atividade cujo ultrapassasse os limites da municipalidade. Como isso gerava insegurança jurídica, já que muitas vezes o impacto ambiental direto só podia ser identificado no curso do licenciamento, a LC 140 procurou trabalhar com o parâmetro da localização ou do desenvolvimento da atividade, haja vista as alíneas a, b, c, d e e do inciso XIV do art. 7º, o inciso XV do art. 8º e a alínea b do art. 9º.

Porém, embora a regra da nova lei seja esse critério, urge dizer que no caso das competências licenciatórias gerais dos Estados e dos municípios não há referência direta a essa ou a nenhum outro critério, face o que dispõem o inciso XIV do art. 8º e a alínea a do inciso XIV do art. 9º.

Faz-se necessário, então, saber qual seria o critério a ser adotado para a delimitação da competência licenciatória local, se o do impacto ambiental direto ou o da localização e desenvolvimento da atividade. Cumpre observar que este critério amplia o número de atividades sob a tutela municipal, ao passo que aquele diminui, posto que leva em conta os reflexos imediatos em outras municipalidades.

Por uma questão de simetria constitucional e de respeito ao Pacto Federativo, não se pode admitir que sejam adotados parâmetros diferentes em relação aos entes federativos. Se uma atividade cuja localização ultrapasse o limite de um Estado é de responsabilidade federal, consoante ordenam as alíneas a e e do inciso XIV do art. 7º, é razoável que que uma atividade cuja localização ou desenvolvimento ultrapasse o limite de um município seja de responsabilidade estadual, bem como a atividade que se restringe à jurisdição local fique mesmo a cargo do município. Logo, o critério da localização/desenvolvimento, que é aplicado como regra geral licenciatória à União, deverá também ser aplicado também aos Estados e Municípios.

Isso implica dizer que em regra o interesse local se fará presente para fins de licenciamento ambiental quando a atividade estiver localizada e for desenvolvida unicamente no território daquele município. Nada impede, no entanto, a participação dos outros entes federativos, nos termos do § 1º do art. 13, de maneira não vinculante.

Impende frisar que a discussão sobre competência neste trabalho foi feita a partir de uma perspectiva meramente formal, com espeque na Lei Maior, nos princípios constitucionais e na LC 140. Entretanto, as condições formais e materiais para o exercício do licenciamento municipal não bastam, uma vez que é preciso ter um órgão ambiental capacitado, tema esse que será analisado em outro trabalho.

 


[1] Há situações em que a possibilidade de avocar foi prevista expressamente pelo Coema, como é o caso do Rio Grande do Norte, conforme dispõem os arts. 2º, 3º e 4º da Resolução 4/2009 do Conema.

[2] Quando o Rio Grande do Sul começou o processo de municipalização com a Resolução Consema 05/1999 o licenciamento de shopping centers era de competência municipal, depois a Resolução Consema n. 102/2005 elaborou nova lista de atividades de interesse local e deixou de fora essa modalidade de empreendimento.

[3] Art. 7º. São ações administrativas da União: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida à União.
Art. 8º. São ações administrativas dos Estados: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida aos Estados.
Art. 9º. São ações administrativas dos Municípios: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida ao Município.
Art. 17.  Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada. (…) § 3º. O disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput.

[4] Art. 8º. São ações administrativas dos Estados: (…) XIV – promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7º e 9º.

[5] Art. 1º. Para efeito desta Resolução são adotadas as seguintes definições: (…) IV – Impacto Ambiental Regional: é todo e qualquer impacto ambiental que afete diretamente (área de influência direta do projeto), no todo ou em parte, o território de dois ou mais Estados.

Autores

  • Brave

    é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor do livro “Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos” (5ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015).

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