Direito Comparado

Esquecimento de um direito ou o preço da coerência retrospectiva? (Parte 3)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

10 de março de 2021, 8h02

Encerra-se nesta quarta-feira (10/3) o ciclo de três colunas sobre o julgamento do RE 1.010.606/RJ pelo STF, cujo objeto foi o direito ao esquecimento. Na semana passada, os focos da coluna foram o caráter inevitável das conclusões do tribunal e as consequências da não fundamentalização desse direito. A coluna de hoje será dedicada a…

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1) O afastamento da técnica dos parâmetros
O STF não adotou, ao julgar o RE 1.010.606/RJ, uma técnica decisória encontrável em outras decisões: a adoção de parâmetros e de critérios casuísticos para a interpretação da norma cuja constitucionalidade é contestada. Em alguns casos, essa técnica dos parâmetros termina por reelaborar o conteúdo da lei. Exemplo disso está no julgamento da ADI 6427/MC, que apreciou a constitucionalidade da Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020, que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19. Essa medida provisória terminou por caducar, mas o STF interpretou e delimitou elementos normativos como "erro grosseiro", além de exigir a observância de protocolos científicos e técnicos nacionais e internacionais [1].

A técnica utilizada no RE 1.010.606/RJ não abriu margem para a devolução dos conflitos relacionados ao direito ao esquecimento aos órgãos jurisdicionais, por meio de uma catalogação de conflitos que seriam pré-incluídos ou pré-excluídos do suporte fático desse direito. Em certa medida, esse teria sido o caminho adotado pelo STF acaso houvesse seguido o voto do ministro Nunes Marques. O relator, ministro Dias Toffoli, deixa evidenciada sua escolha nesta passagem: "A existência de um comando jurídico que eleja a passagem do tempo como restrição à divulgação de informação verdadeira, licitamente obtida e com adequado tratamento dos dados nela inseridos, precisa estar previsto em lei, de modo pontual, clarividente e sem anulação da liberdade de expressão. Não pode, ademais, ser fruto apenas de ponderação judicial" [2].

2) Direito ao esquecimento e democracia
Uma parte relevante da controvérsia sobre o direito ao esquecimento no RE 1.010.606/RJ está na associação entre democracia e direito ao esquecimento.

O relator entendeu que "um dos aspectos centrais do direito fundamental à liberdade de expressão aspecto esse que deve ser reforçado tanto mais democrática for dada sociedade é que, como regra geral, não são admitidas restrições prévias ao exercício dessa liberdade" [3].

Tomada essa afirmação de per si ela não representa inovação ao que se compreende historicamente sobre o papel das liberdades comunicativas. As ordens jurídicas constitucionalizaram uma ou várias das liberdades comunicativas desde o século 19. Na Constituição Imperial de 1824, no artigo179, inciso IV, considerou-se um direito civil inviolável dos súditos o poder a todos conferido de "comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publicá-los pela Imprensa, sem dependência de censura; contanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exercício deste Direito, nos casos, e pela forma, que a Lei determinar" [4]. Proteger a liberdade de expressão, proibindo-se a censura e prevendo a responsabilidade por abusos, era uma espécie de credencial jurídica dos Estados do século 19 que pretendiam ser admitidos ao conjunto das "nações civilizadas". O Marquês de São Vicente, a respeito dessa norma, já escreveu que "a liberdade da imprensa literária ou industrial deve ser amplamente franqueada, não só aos nacionais, como aos estrangeiros; a livre expressão da inteligência, desde que não se envolva no governo político do país, pertence ao homem porque é homem, qualquer que seja a sua nacionalidade" [5].

Na sequência, o relator associa a liberdade de expressão à liberdade a ser informado e, em parte mais avançada no voto, argumenta com base nos precedentes do STF sobre as biografias não autorizadas. O tema do caráter preferencial da liberdade de expressão volta a ser anunciado no voto, com base em manifestações dos ministros Roberto Barroso e Cármen Lúcia. O relator ainda oferece uma alternativa às pretensões fundadas no direito ao esquecimento: "Tanto quanto possível, portanto, deve-se priorizar: o complemento da informação, em vez de sua exclusão; a retificação de um dado, em vez de sua ocultação; o direito de resposta, em lugar da proibição ao posicionamento, o impulso ao desenvolvimento moral da sociedade, em substituição ao fomento às neblinas históricas ou sociais" [6].  

A suficiência das "previsões constitucionais e legais voltadas à proteção da personalidade, aí inserida a proteção aos dados pessoais", segundo o ministro Dias Toffoli [7], bastaria para tutelar interesses subjetivos eventualmente violada.

Não é possível, no entanto, após o exame cuidadoso do voto do relator, extrair a conclusão de que ele vinculou o direito ao esquecimento às ordens jurídicas não democráticas. O raciocínio é mais geral: liberdades comunicativas são um pressuposto das democracias. No Brasil, as liberdades comunicativas assumem um caráter preferencial. Daí a identificar uma crítica aos países (democráticos) que reconhecem o direito ao esquecimento é um passo além dos limites do voto. Tal percepção corresponde a um truísmo: Alemanha e Espanha são democracias modernas e sólidas. Os organismos judiciários europeus, posto que muito criticados internamente mesmo na Alemanha e na Espanha, são também democráticos. A circunstância de nesses espaços de soberania ter-se admitido o direito ao esquecimento diz mais sobre a natureza preferencial ou não das liberdades comunicativas em face de outros direitos fundamentais. O Brasil, como exposto na coluna anterior, tem adotado uma interpretação à americana no tema dessas liberdades. A via à europeia (com as exceções no espaço europeu) é diversa, mas não menos democrática. Ambas as vias podem ser censuradas ou enaltecidas.

3) O risco do isolamento jurídico
O último tópico da análise da situação jurídica do direito ao esquecimento no Brasil é o relativo ao risco do isolamento jurídico. Nos debates no STF surgiu o interessante argumento de que o país ficaria em posição de desvantagem ou de insulamento por rejeitar o direito ao esquecimento. De fato, os casos judiciais alemães de 1973 (Lebach 1) e de 1999 (Lebach 2) são precedentes universalmente utilizados como referência pelo Direito Comparado. Na Espanha, há o célebre julgado Google Spain, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 2014, no qual se reconheceu o direito de Mario Costeja González apagar seus próprios dados em motores de busca.

Essa situação, contudo, não é universal. Já se comentou na primeira coluna dedicada ao tema que o Direito francês não é monolítico sobre o tema. No Direito do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, há previsões sobre a caducidade de informações e indícios criminais, à semelhança do que se dá no Brasil, por meio do Rehabilitation of Offenders Act 1974 (com emendas significativas em 2014). Em 2018, o Parlamento britânico aprovou o Data Protection Act 2018 (que revogou a lei equivalente de 1998), que expressamente previu o direito de retificar e de apagar dados, com fundamento no right of privacy. Não há, contudo, um direito ao esquecimento com suporte fático amplo e oponível a todos os setores do ordenamento.

No Direito norte-americano, a refração ao direito ao esquecimento é ainda mais explícita. Da mesma forma como a jurisprudência brasileira tem-se orientado desde 2009, os tribunais dos Estados Unidos reconhecem o caráter preferencial das liberdades comunicativas, remetendo ao Direito delitual (torts) boa parte dos conflitos relacionados aos abusos cometidos por seus exercentes. Considerando-se que a principais empresas de tecnologia da informação e de internet são norte-americanas, não é inadequado supor que haja uma estratégica econômica e de política industrial tendente a impedir a expansão do direito ao esquecimento.

O risco do insulamento jurídico-comparado existe. Mas ele é exclusivo em relação à tradição romano-germânica da Europa continental, ainda que haja exceções. A tradição de common law é simétrica ao quanto decidiu o STF no RE 1.010.606/RJ. Esse movimento da jurisprudência do STF pode até caracterizar um típico exemplo de introdução de legal irritant pela via judiciária, como parece ser, por exemplo, o Marco Civil da Internet [8], em vários de seus dispositivos que tratam da responsabilidade civil dos provedores de conteúdo [9]. É possível, a esse respeito, parafrasear Ariano Suassuna, que sempre contestava a afirmação de que o teatro nascera na Grécia: "O teatro não nasceu na Grécia; o que nasceu na Grécia foi o teatro grego". Assim, pode-se dizer a decisão no RE 1.010.606/RJ não isolou o Brasil do restante do mundo; mas, com certeza, o fez em relação a alguns países europeus e às instituições judiciárias da União Europeia. Resta saber se esse é um problema real ou uma mudança de rumos do Direito brasileiro em certo setor do Direito. Essa alteração de rota tem-se dado de modo mais aparente do que real no Processo Civil e de modo mais real do que aparente no Processo Penal. As críticas, nesse âmbito, foram em muito superadas pelo ardente desejo por novidades jurídicas.

Conclusões
Estas três colunas sobre o RE 1.010.606/RJ objetivaram expor ao público as reais conclusões do acórdão. Em linhas gerais, ao negar a constitucionalidade de um direito ao esquecimento de suporte fático amplo, o STF: a) manteve sua coerência com uma década de acórdãos que conferiram posição preeminente às liberdades comunicativas; b) estendeu os efeitos da decisão ao universo de liberdades comunicativas, independentemente do suporte; c) afastou-se da tradição jurídica de civil law (parcialmente) e aproximou-se da tradição de common law; d) negou-se a fundamentalizar o direito ao esquecimento; e) não decidiu com base na técnica de parâmetros e condicionantes, restringindo (aqui também) a atuação posterior do Poder Judiciário; f) não negou a constitucionalidade de leis setoriais no Direito do Consumidor, no Direito Penal, no Direito Processual Penal e no Direito Público sobre a restrição ao acesso à informações pessoais; g) ao fixar uma tese para o tema do direito ao esquecimento, permitiu eventual controle de ações em curso no país, via reclamação, paralisando as controvérsias.

 


[1] STF. ADI 6427/MC, Relator Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2020, DJe-271 de 13-11-2020.

[2] Trecho do voto do relator ministro Dias Toffoli no RE 1.010.606/RJ.

[3] Trecho do voto do relator ministro Dias Toffoli no RE 1.010.606/RJ.

[4] Redação com ortografia atualizada.

[5] SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de. Direito Público brasileiro e análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Tipografia J. Villeneuve, 1857. p.395-396. Ortografia atualizada.

[6] Trecho do voto do relator ministro Dias Toffoli no RE 1.010.606/RJ.

[7] Trecho do voto do relator ministro Dias Toffoli no RE 1.010.606/RJ.

[8] Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.

[9] Sobre essa questão, em texto anterior à edição do Marco Civil da Internet, confira-se: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Responsabilidade civil e internet: problemas de qualificação de conflitos nas redes sociais. In. ANDRIGHI, Fátima Nancy. Responsabilidade civil e inadimplemento no direito brasileiro. São Paulo: Atlas, 2014, p. 283-302.

Autores

  • é coordenador da área de Direito da Capes, professor associado (livre-docente) em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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