Direito Comparado

Esquecimento de um direito ou o preço da coerência retrospectiva? (Parte 2)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

4 de março de 2021, 18h20

Na coluna anterior, deu-se início a um exame do acórdão do STF no Recurso Extraordinário 1.010.606/RJ, que decidiu sobre a compatibilidade constitucional do direito ao esquecimento no Brasil. Apresentaram-se três premissas do acórdão, baseado no voto-condutor do ministro Dias Toffoli: 1) amplo alcance do aresto a todas as espécies de liberdades comunicativas; 2) o caráter preferencial da liberdade de expressão e a impossibilidade de seu controle ex ante, salvo exceções muito delimitadas; 3) impossibilidade de reconhecimento de um direito fundamental implícito ao esquecimento.

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Legenda

1) Um julgamento inevitável?
Quando se destacou a premissa dois, na coluna anterior, fez-se a reprodução de trecho do voto-condutor do acórdão que enumerou diversos julgados do STF que reconheceram o caráter preferencial da liberdade de expressão no rol de direitos fundamentais. Visto em retrospecto, o RE 1.010.606/RJ poderia ser considerado um "ponto culminante", embora a expressão traga em si um certo tom hiperbólico, de uma construção jurisprudencial de mais de uma década em ordem a conferir esse caráter anabolizado à liberdade expressão. Se houve um ponto de partida nesse processo, ele recai na ADPF 130, DJe de 6/11/2009, que julgou não recepcionada a Lei de Imprensa.

Depois da ADPF 130, relatada pelo ministro Ayres Britto, os diversos casos relacionados a esse direito fundamental aprofundaram a linha seguida pelo STF. Nessa linha, dois outros julgados merecem um colorido especial.

O primeiro está na ADI dos Humoristas (ADI 4451/DF, DJe de 6/3/2019, relator ministro Alexandre de Moraes), cujo objeto eram dois incisos do artigo 45 da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei Eleitoral), que proibiam o uso de "trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito" [1]. O STF, nesse julgamento, liberou uma prática que é marcada pela "perspectiva de uma humilhação, que, mesmo sendo leve, não deixa de ser temida". Afinal, "essa deve ser a função do riso. Sempre um pouco humilhante para quem é seu objeto, o riso é de fato um trote social", como escreveu Henri Bergson [2].

O segundo é a ADI das Biografias (ADI nº 4.815, DJe de 1º/2/16), a respeito da qual se deu um amplo interesse da doutrina antes do julgamento da matéria pelo STF [3], cujo resultado foi, nos termos do voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, "dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes)".

Em uma série de colunas sobre o direito ao esquecimento, posteriormente reunidas e ampliadas em um capítulo de livro, antes da decisão do STF, antecipei, de certa forma, os efeitos da tomada de posição do tribunal sobre as biografias em face de um (então) futuro debate sobre o esquecimento:

"Outro ponto que necessita ser coerentemente observado está na identificação de fundamentos jurídicos relativos ao direito ao esquecimento e o debate sobre a constitucionalidade do artigo 20 do Código Civil, atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal. Essa aproximação conceitual está implícita nos votos vencidos do julgamento do REsp 1.335.153/RJ, quando se mencionou a possibilidade de se restringir ex ante as publicações, filmagens ou os escritos que afetassem a imagem de um indivíduo ou sua memória, hipótese última que permitiria a incidência do parágrafo único do artigo 20. Observado o famoso Caso Lebach-l, se comparado o documentário da ZDF a um livro biográfico sobre os assassinos dos soldados alemães, estar-se-ia diante de uma hipótese de controle prévio da 'liberdade de radiodifusão'. Esse raciocínio pode ser também ampliado para um espaço no qual há uma 'enciclopédia online de biografias', que é a Wikipedia, na qual diariamente são travados pesados combates entre seus colaboradores em relação à veracidade ou à adequação de dados informativos (ou biográficos) de vivos e mortos. As soluções, ao estilo Caso Lebach-l, e as que preservariam a ampla liberdade comunicativa, podem ser coerentemente compatibilizadas?" [4].

Considerado o histórico de julgamentos do STF, a liberdade de expressão passou a contar com uma posição preferencial, embora essa ainda seja uma questão discutível na doutrina e no próprio tribunal. A despeito disso, à exceção do "caso Ellwanger" [5], de 2003, quando se afirmou que a liberdade de expressão é "garantia constitucional que não se tem como absoluta" e que "o direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal", o STF tem reconhecido a tutela ex post dos abusos cometidos no exercício das liberdades comunicativas. O sensível problema do 1) "discurso do ódio" apresenta-se como uma exceção relevante. Some-se a isso, embora ainda dependa de uma posição explícita do tribunal, o tema do 2) ataque às instituições democráticas e 3) o das liberdades comunicativas exercidas por integrantes de carreiras de Estado, que devem assumir posição equidistante no âmbito da política, da política-partidária e da crítica institucional a órgãos constitucionais ou a seus membros.

Abstraídas as três mencionadas hipóteses, sendo que apenas uma delas já possui precedente firme (1), no RE 1.010.606/RJ, o STF manteve coerência com uma década de julgamentos prestigiadores da liberdade de expressão. O mais curioso talvez esteja no alinhamento episódico entre duas alas do tribunal, tanto na convergência com o relator, quanto na divergência. A maioria dos membros da ala neoconstitucionalista acompanhou o relator, que não pode ser assim qualificado. Ao passo em que a maioria dos integrantes da ala legitimista, da qual o ministro Dias Toffoli é um dos representantes, também o seguiu na tese da incompatibilidade do direito ao esquecimento. Por outro lado, os dois votos divergentes, ministro Gilmar Mendes e ministro Edson Fachin, ambos representantes das distintas alas, uniram-se no dissenso contra a tese vencedora. Idêntica situação pôde ser observada quanto à doutrina. Defensores da tese da liberdade comunicativa nas biografias colocaram-se, no RE 1.010.606/RJ, em posição favorável ao direito ao esquecimento (e vice-versa).

2) A questão do direito fundamental implícito e suas consequências práticas
A tese do relator no RE 1.010.606/RJ afastou expressamente a possibilidade de reconhecimento da fundamentalidade do direito ao esquecimento. Nesse aspecto, o STF recusou-se a agir como o fez em relação ao "direito à busca da felicidade", definido como "verdadeiro postulado constitucional implícito" [6].

A fundamentalização de direitos é um procedimento gerador de externalidades (muito sensíveis) no regime de separação de poderes e na própria sobrevivência do conceito de "direitos fundamentais". Esse debate não é exclusivamente nacional. A hipertrofia dos tribunais constitucionais por meio de sentenças aditivas, fundamentalização de direitos ou mutações constitucionais é objeto de crítica há mais de duas décadas em vários países [7]. O STF, no julgamento do RE do direito ao esquecimento, poderia ter adotado a via restritiva ou a ampliativa da fundamentalização. Trata-se de uma questão ainda controvertida no STF, embora seja muito difícil imaginar que um tribunal constitucional abdique gentilmente de um poder tão assombroso que é o de agir como um rei Midas na criação de direitos fundamentais. De qualquer sorte, no RE 1.010.606/RJ o ministro Dias Toffoli (um legitimista), o ministro Edson Fachin (um neoconstitucionalista) e o ministro Gilmar Mendes, que não é neoconstitucionalista, mas possui uma visão favorável à fundamentalização em alguns casos, foram coerentes com suas posições históricas no tribunal.

De prático, ao se negar a natureza de direito fundamental implícito ao direito ao esquecimento, tem-se que: 1) é possível a paralisação ou mesmo a cassação de qualquer litígio envolvendo pretensões fundadas no direito ao esquecimento por meio de reclamações constitucionais. Ao menos em tese é esse o objetivo (indireto) da repercussão geral e da formação de uma tese no respectivo tema, como se deu agora [8]. Ocorre, porém, que seria ainda admissível 2) a movimentação do Congresso Nacional para a aprovação de uma emenda constitucional que fundamentalizasse esse direito pelas vias legislativas adequadas. Haveria, por certo, a eventual provocação do STF, agora em ADI, para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional.

Outra consequência prática a ser explorada estaria na criação por lei de um direito ao esquecimento. Há projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional para a instituição desse direito, como revela a pesquisa de Ingo Wolfgang Sarlet e Arthur M. Ferreira Neto [9]. Com a declaração de incompatibilidade constitucional de um direito ao esquecimento (ao menos com suporte fático amplo), eventual lei ordinária seria também inconstitucional.

Veja-se o problema de se elevar a questão para o Direito Constitucional quando as soluções no direito ordinário, especificamente o Direito Privado, poderiam resolver diretamente os inconvenientes das dúvidas valorativas em torno de um novo direito. O exemplo dos direitos da personalidade é emblemático: existentes desde a origem da ordem jurídica brasileira, eles estiveram presentes (de modo assistemático e tópico) no Código Civil de 1916, embora não recebessem tal nomenclatura, e, para além disso, na criação doutrinária e jurisprudencial do século 20. A observância da valoração própria de cada setor do ordenamento jurídico no qual o direito ao esquecimento fosse alegado, respeitando as escolhas do legislador e a interpretação da jurisdição ordinária, quando nelas suportada, poderia levar a uma "aclimatação" prévia desse direito. Somente em casos extremos é que se chegaria à decisão do STF por meio do exame da colisão de direitos fundamentais. E, nesse caso, com os custos argumentativos ampliados por se ir de encontro a uma valoração legislativa prévia.

Não seria necessário nem ao menos entrar na polêmica sobre haver um "direito geral da personalidade". Por meio do chamado "paralelismo dos direitos fundamentais", poder-se-ia encontrar aspectos parcelares desse direito no Código Civil nos arts.20 e 21, por exemplo. Mas não se admitiria deles extrair um "direito ao esquecimento" autônomo e oponível em quaisquer situações. O legislador, nesse caso, poderia assim o fazer e conferir-lhe contornos de autonomia plena.

De concreto, porém, chegou-se a uma solução constitucional taxativa pela incompatibilidade desse direito. Com isso, a mobilização do direito ordinário está interditada.

Na próxima semana, a última coluna da série sobre o tema.

 


[1] Sobre o tema do humor e sua qualificação jurídica, confira-se: CARVALHO NETO, Tarcísio Vieira de. Liberdade de expressão e propaganda eleitoral: reflexões jurídicas a partir da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral. Belo Horizonte : Fórum, 2020 (especificamente sobre discurso do ódio e propaganda negativa; humor e fake news); BINENBOJM, Gustavo, Humor, política e jurisdição constitucional: o Supremo Tribunal Federal como guardião da democracia. A proteção da liberdade de crítica política em processos eleitorais. In. ARABI, Abhner Youssif Mota; MALUF, Fernando; MACHADO NETO, Marcelo Lavenére. Constituição da República 30 anos depois : uma análise prática da eficiência dos direitos fundamentais. Estudos em homenagem ao Ministro Luiz Fux. Belo Horizonte : Fórum, 2019, p. 317-339; CAPELOTTI, João Paulo. Direito ao humor e responsabilidade civil: O humor entre a crítica social e o dano. Revista dos Tribunais, vol. 939, p.19-59, jan.2014.

[2] BERGSON, Henri. O riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.101.

[3] A título de exemplo, citem-se: FACHIN, Luiz Edson. A liberdade e a intimidade : uma breve análise das biografias não autorizadas. In: SIMÃO, José Fernando (Org). Direito Civil : estudos em homenagem a José de Oliveira Ascensão. São Paulo : Atlas, 2015. v. 1, p. 376-394; BARCELLOS, Ana Paula de. Intimidade e pessoas notórias. Liberdades de expressão e de informação e biografias. Conflito entre direitos fundamentais. Ponderação, caso concreto e acesso à justiça. Tutelas específica e indenizatória. Direito Público: Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), v. 10, n. 55, p. 47-91, jan./fev. 2014; JABUR, Gilberto Haddad. Biografias versus honra, imagem e privacidade. Revista de Direito das Comunicações, vol. 7, p. 217-228, jan.-jun.2014; CHINELLATO, Silmara Juny. Liberdade de expressão : direitos da personalidade e as biografias não autorizadas. Revista Brasileira de Direito Comparado, n. 44/45, p. 201-237, jan./jun. 2013.

[4] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Direito ao esquecimento e as suas fronteiras atuais no Brasil e na experiência estrangeira. In: FORGIONI, Paula A.; DEL NERO, Patrícia Aurélia; MARQUES, Samantha Ribeiro Meyer-Pflug. (Org.). Direito Empresarial, Direito do Espaço Virtual e outros desafios do Direito: Homenagem ao Professor Newton de Lucca. São Paulo: Quartier Latin, 2018, v. 1, p. 947-960, esp. p.960.

[5] STF. HC 82424, Relator Moreira Alves, Relator para o acórdão Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004, p.24.

[6] “O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. – Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana” (RE 477554 AgR, Relator Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 16/08/2011, DJe-164, 26-08-2011).

[7] Nesse sentido: JESTAEDT, Matthias. Die Grundrechtsrevolution frisst ihre Kinder: Bedachtes und Bedenkliches aus fünf Jahrzehnten Grundrechtsdeutung. Journal für Rechtspolitik – JRP, v. 8 p. 99-113, 2000; OLIVEIRA, Renata Camilo de. Zur Kritik der Abwägung in der Grundrechtsdogmatik: Beitrag zu einem liberalen Grun-drechtsverständnis im demokratischen Rechtsstaat. Berlim: Duncker & Humblot, 2013.p. 221-231; ASCENSÃO, José de Oliveira. Panorama e perspectivas do Direito Civil na União Europeia. In. AA.VV. Jornada de Direito Civil 5:2011. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2012. p. 32; MORAIS, Carlos Blanco de. As mutações constitucionais implícitas e os seus limites jurídicos: autópsia de um acórdão controverso. In. FELLET, André; NOVELINO, Marcelo; SARLET, Ingo Wolfgang. Constitucionalismo e democracia. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 487-526; MORAIS, Carlos Blanco de. O controlo de inconstitucionalidade por omissão no ordenamento brasileiro e a tutela dos direitos sociais: um mero ciclo activista ou uma evolução para o paradigma neoconstitucionalista? Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 20, no 78, p. 153-227, jan./mar. 2012. Para um sumário dessa discussão e uma posição crítica sobre o tema no Brasil, sugere-se nosso: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Direito Civil contemporâneo : estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais 2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2019.

[8] Agradeço a Guilherme Reinig e a Atalá Corrêa por haverem formulado e compartilhado comigo essa hipótese.

[9] SARLET, Ingo Wolfgang; FERREIRA NETO, Arthur M. O direito ao "esquecimento" na sociedade da informação. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2019. p.130 e ss.

Autores

  • Brave

    é coordenador da área de Direito da Capes, professor associado (livre-docente) em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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