Público X Privado

O difícil diálogo entre o setor público e o setor privado

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2 de março de 2021, 14h33

A tensão entre o setor privado e o público é uma marca no mundo inteiro, mas no Brasil ela adota características próprias que acabam por maximizar o que se chama de "custo Brasil". O fato é que as diferenças de perspectiva são pautadas, em larga medida, pela compreensão dos valores que orientam a ação de um e de outro, o que se expressa na distinção entre o consequencialismo e o imperativo categórico, compondo os valores e o modo de agir, respectivamente, do setor privado e do setor estatal. Já falei anteriormente sobre a distinção entre o utilitarismo e o imperativo categórico, razão pela qual deixo ao leitor buscar maiores esclarecimentos no meu artigo ou em outras leituras que entenda pertinente.

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No âmbito privado, o consequencialismo é uma força motriz para a atuação no mercado. O lucro é uma resultante necessária e imperativa na avaliação de uma empresa para o desenvolvimento econômico, social e individual. Isso não significa que as empresas não possam trabalhar como valores que orientem o lucro, mas o fato é que a resultante final para uma empresa prevalecer é a capacidade de gerar lucro e, assim, produzir mais riquezas. A ideia central é que gerar o lucro é condição do desenvolvimento e é parte necessária do empreendedorismo, expressão da livre iniciativa. Tal produto, portanto, é gerador de bem-estar da sociedade com a criação de empregos, salários e desenvolvimento. Nesse ponto, o utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill ganha enorme apelo e aceitação.

Já no setor público, o imperativo categórico é a força motriz nas decisões, como indicam o princípios norteadores da Administração Pública do artigo 37 da Constituição Federal: legalidade, impessoalidade e moralidade. Publicidade, no caso, surge como elemento de legitimação e controle e, na sua olímpica dissintonia, a eficiência introduz de forma excepcional e derivada o consequencialimo na equação.

A própria atuação do setor privado e sua força motriz, o lucro, é passível de limitação e controle, como indica ao artigo 170 da Constituição Federal, que, ao tempo em que protege a livre iniciativa (caput) e a propriedade privada (inciso II), estabelece parâmetros a serem observados como justiça social (caput), soberania nacional (inciso I), função social (inciso III), defesa do consumidor (inciso V), defesa do meio ambiente (inciso VI) e redução das desigualdades regionais (inciso VII), entre outros existentes.

A atuação estatal, assim, é pautada por uma função regulatória, orientadora e limitadora da atividade privada (artigo 174 da Constituição), o que conduz a um tremendo e significativo papel atribuído ao Estado no desenvolvimento econômico do país. A Constituição chega, mesmo que por via inversa, a admitir a intervenção estatal direta no domínio econômico privado para atender "aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo" (artigo 173 da Constituição), conceitos esses totalmente abertos à interpretação de ocasião,

Portanto, se de um lado o setor privado depende do lucro como resultado da sua atividade e opera em um sistema valorativo baseado no consequencialismo das suas ações; o setor público, em sentido inverso, opera a partir de premissas categóricas que buscam imprimir valores antecedentes de legitimação da ação estatal e regulação da atividade econômica. Não que as hipóteses contidas no artigo 170, por exemplo, são sejam avaliadas da perspectiva do resultado da ação privada (gerar justiça social, proteger o meio ambiente etc.), mas essa avaliação realizada pelo Estado acaba sendo examinada primordialmente como limitador e nos estritos pressupostos categóricos do artigo 37 da Constituição Federal.

Em outras palavras, o agente público acaba não por examinar a redução da desigualdade social (inciso VII do artigo 170), mas se ocorreu o cumprimento do dispositivo legal que trata do tema (princípio da legalidade). Pude presenciar, por exemplo, a suspensão de programa sociais e de investimento pelo Estados financiados pela União porque o Sistema de Informações sobre Requisitos Fiscais (Cauc) indicavam débitos em valores irrisórios. Para resolver uma pendência de R$ 50, mobilizaram-se servidores de diversos órgãos com múltiplas reuniões, muitas vezes envolvendo o próprio Congresso Nacional e o Judiciário, enquanto os programas ficavam paralisados.

Em regra, portanto, a ação pública ou privada não é analisada, no Estado, pelos seus resultados, mas pelo cumprimento das premissas que regulam o comportamento estatal, com a observância desses normativos e o receio da sanção em face de conduta diversa. Não é sem razão que se busca reiteradamente introduzir uma avaliação da conduta estatal a partir das suas consequências, sobrepondo-se às formas legais, como indica explicitamente o artigo 20 do Decreto-Lei nº 4.657, de 42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), ao estabelecer que "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Tal dispositivo é, de resto, mais uma tentativa de introduzir o princípio da eficiência e, portanto, a consideração consequencialista, conforme previsto no artigo 37 da Constituição a partir da alteração promovida pela Emenda Constitucional 19, de 1998.

Todavia, culturas não são facilmente modificáveis e possuem uma resiliência notável. Mesmo com as constantes alterações legislativas, a razão motora dos agentes do Estado e a perspectiva valorativa que adotam é a da submissão aos parâmetros pretéritos ao ato de decidir. Existe, inclusive, um conforto de assim fazê-lo: não há para o administrador público uma escolha; apenas o "cumprimento da lei". Ou seja, o risco pessoal do erro é eliminado pela transferência da responsabilidade da decisão à norma aplicada. A norma deixa de ser instrumento e passa a ser o sujeito. Obviamente, esse exercício adquire maior complexidade quando se considera o princípio da moralidade (também de legitimação antecedente) e o fato de que o ato de interpretar tornou-se, na atualidade, excessivamente complexo e volátil. Todavia, a responsabilidade pela consequência do ato é neutralizada.

A dimensão das disputas tributárias no país, com a estarrecedora marca de mais de R$ 3 trilhões em cobrança administrativa e judicial, demonstra o quanto essa forma de decisão e ação, que não considera os seus resultados, alcançou dimensões patológicas. Eu poderia dar aqui diversos exemplos dessa dinâmica (como o fato de a Fazenda Pública Nacional promover uma execução fiscal contra a União Federal pelo simples fato de que o artigo 156 do Código Tributário Nacional não prevê a confusão como causa de extinção do crédito tributário), mas o fato é que, caso não se altere a forma como se compreende e se aplica a lei, modelos novos de solução dos impasses criados na Administração, como a transação tributária, estarão sempre limitados a pressupostos que não dialogam com a função resolutiva buscada.

Assim, o ambiente de tensão constante entre o setor privado e o setor público, que parte do pressuposto das diferentes perspectivas pelas quais avaliam a realidade e valorizam a tomada de decisão, permanecerá como o maior custo Brasil. É como fato, que também poderia ser uma boa piada, que ouvi durante o período que estive no governo: "Um investidor vai ao Canadá com um problema e sai com uma solução; o mesmo investidor vem ao Brasil com o mesmo problema e sai com dois problemas".

Somente intercambiando essas duas visões e criando um base comum de entendimento dos diversos desafios que persistem no nosso país seremos capazes de superar os impasses que emperram o desenvolvimento do Brasil.

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