Ambiente Jurídico

Justiça Penal negocial em sede de crimes ambientais

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

29 de maio de 2021, 8h02

Reforçando a importância da tutela do bem jurídico ambiental pela legislação criminal, o artigo 26 da Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) estatuiu que a ação penal relativa aos crimes nela previstos é sempre pública incondicionada. Também o nosso Código Penal prevê que a ação penal é sempre pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido (artigo 100).

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Nesse cenário, em sede de crimes ambientais, que se processam por meio de ações penais públicas incondicionadas (não se submetem à manifestação da vontade da vítima ou de terceiros), a princípio, o Ministério Público, enquanto titular da ação penal pública ou dominus litis (artigo 129, I, CF/88 e artigo 24 do CPP ), estaria sujeito à observância dos princípios processuais que regem a temática, sobretudo os da obrigatoriedade e o da indisponibilidade.

De acordo com o princípio da obrigatoriedade, ao órgão do Ministério Público se impõe o dever de oferecer denúncia caso visualize elementos de informação quanto à existência de fato típico, ilícito e culpável, além da presença das condições da ação penal e de justa causa para a deflagração do processo criminal [1].

Já o princípio da indisponibilidade da ação penal pública, também conhecido como princípio da indesistibilidade, decorre da obrigatoriedade e significa que o Ministério Público não pode dispor ou desistir do processo penal em curso [2]. Tal princípio está expressamente previsto no artigo 42 do CPP.

Contudo, nos últimos tempos houve sensível modificação do ordenamento jurídico brasileiro quanto a tais princípios, encontrando-nos, atualmente, em patamar mais avançado, em que se concebe e se viabiliza a utilização de instrumentos envolvendo a chamada Justiça Penal negocial, mitigando-se antigos preceitos.

Com efeito, nos dias atuais o processo penal não descuida da duração razoável dos feitos, na economia processual, na aproximação entre vítima e autor do crime, na reparação dos danos causados pela infração penal e da busca, pelo consenso, de medidas que possam evitar a aplicação de penas privativas de liberdade, sendo essas algumas das principais características da chamada Justiça Penal negocial, onde se flexibilizam os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade em benefício de maiores ganhos para a sociedade como um todo, seguindo delineamentos previstos pela legislação penal e processual penal vigente (oportunidade regrada).

Insta salientar, por importante, que àquele que figura como investigado, denunciado ou réu por qualquer conduta criminosa não se impõe, de forma alguma, os instrumentos da Justiça Penal consensual. Trata-se de uma alternativa, que pressupõe a livre aceitação pelo suposto autor do fato criminoso e pelo seu defensor de uma proposta ofertada pelo titular da ação penal, qual seja, o Ministério Público, e que deve ser chancelada pelo Poder Judiciário em seu papel homologador da legalidade e voluntariedade do ajuste.

Logo, não há se falar, com a aplicação da Justiça Penal negocial, em supressão de direitos e garantias fundamentais de investigados ou réus, pois, repita-se, trata-se de mera opção que poderá ser singelamente repudiada por aquele que pretender se submeter aos trâmites ordinários da Justiça Penal outorgada.

Os primeiros avanços quanto aos instrumentos negociais no Direito Penal brasileiro remontam à edição da Lei nº 9.099/95, que instituiu os juizados criminais em nosso país, sendo o leque de instrumentos posteriormente aumentado com o advento da colaboração premiada prevista na Lei 12.850/2013, que trata das organizações criminosas, e com as recentes inovações advindas com o denominado pacote "anticrime" (Lei 13.964/2019), que instituiu no Código de Processo Penal o acordo de não persecução penal.

No âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público, foi editada a Resolução CNMP nº 118/2014, que dispõe sobre a Política Nacional de Incentivo à Autocomposição. O texto ressalta que a adoção de mecanismos de autocomposição pacífica dos conflitos, controvérsias e problemas é uma tendência mundial, decorrente da evolução da cultura de participação, do diálogo e do consenso e que a negociação, a mediação, a conciliação, as convenções processuais e as práticas restaurativas são instrumentos efetivos de pacificação social, resolução e prevenção de litígios, controvérsias e problemas e que a sua apropriada utilização em programas já implementados no Ministério Público têm reduzido a excessiva judicialização e têm levado os envolvidos à satisfação, à pacificação e à não reincidência.

Referida norma ressalta, ainda, que na área penal existem amplos espaços para a negociação, sendo exemplo o que preveem os artigos 72 e 89, da Lei nº 9.099/1995 (dispõe sobre os Juizados Cíveis e Criminais), a possível composição do dano por parte do infrator, como forma de obtenção de benefícios legais, prevista na Lei nº 9.605/1998 (dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente), a delação premiada, entre outras.

Na mesma toada, vale destacar que, ademais, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução CNJ 288/2019, que define a política institucional do Poder Judiciário para a promoção da aplicação de alternativas penais, com enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade.

Referida norma define como alternativas penais as medidas de intervenção em conflitos e violências, diversas do encarceramento, orientadas para a restauração das relações e a promoção da cultura da paz, a partir da responsabilização com dignidade, autonomia e liberdade, decorrentes da aplicação de penas restritivas de direitos; transação penal e suspensão condicional do processo; suspensão condicional da pena privativa de liberdade; conciliação, mediação e técnicas de Justiça restaurativa, medidas cautelares diversas da prisão e medidas protetivas de urgência.

Delineado tal contexto, podemos afirmar que referidas "alternativas penais" podem e devem ser aplicadas, com largueza, no campo do Direito Penal ambiental pois se harmonizam, sobretudo, com duas particularidades básicas que orientam a tutela do meio ambiente em nosso país: a celeridade e a reparação dos danos ambientais.

Contudo, para a escorreita aplicação dos instrumentos da Justiça Penal negocial em sede de crimes ambientais é indispensável que todos os institutos (sobretudo transação penal, suspensão condicional do processo, colaboração premiada e acordo de não persecução penal) sejam lidos, interpretados e aplicados sob as luzes do Direito Penal e Processual Penal ambiental, que possuem particularidades marcantes quando comparados com o direito penal e processual penal clássicos.

A primeira questão de relevo que se coloca é que a exigência de reparação do dano, em se tratando de crimes contra o meio ambiente, sempre será cláusula obrigatória e indeclinável em todo e qualquer acordo, aplicando-se os preceitos gerais insertos nos artigos 27 e 28 da Lei 9.605/98, que exigem a composição do dano cível ambiental como requisito essencial para a aplicação das medidas despenalizadoras envolvendo crimes ambientais.

É que a garantia da reparação cível dos danos causados em detrimento do meio ambiente é um dos princípios básicos da Lei de Crimes Ambientais do nosso país, cujos efeitos se espraiam a todo o ordenamento jurídico, até mesmo porque, como bem leciona o doutrinador Alex Fernandes Santiago [3]:

"A conclusão é de que nada servirá um Direito Penal que pretenda proteger o meio ambiente e não se ocupe da reparação do dano ambiental. A reparação é essencial, imanente a qualquer discussão sobre meio ambiente. Primeiro prevenção e, em seu fracasso, imediatamente buscar a reparação. De que servirão sanções como a pena privativa de liberdade para aqueles que desmatam a floresta amazônica, por exemplo, se também não lhes é exigida a recomposição do ambiente danificado?".

Também não nos parece remanescer margem de discricionariedade ao Ministério Público quanto à inserção no âmbito de acordos versando sobre crimes ambientais da previsão do agente beneficiado pelo respectivo instituto renunciar voluntariamente a bens e direitos que sejam instrumentos, produto ou proveito do crime. Com efeito, o princípio da reparação integral que vige em sede de Direito Ambiental veda que o agente aufira qualquer tipo de vantagem com a prática do ilícito e o artigo 25 da Lei 9.605/98 emite comando no sentido de que os produtos e instrumentos dos crimes ambientais devem ser apreendidos e perdidos.

Quanto a tal aspecto, vale destacar que o enunciado nº 58 do Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje) estabelece que: "A transação penal poderá conter cláusula de renúncia à propriedade do objeto apreendido". Em sede de crimes ambientais tal cláusula deverá estar sempre presente, devendo englobar, por exemplo, cargas de carvão ou madeiras transportadas clandestinamente, minérios extraídos ilicitamente, armadilhas, maquinários etc.

Quanto à prestação de serviços à comunidade, em sede de crimes ambientais a medida deve ser cumprida de acordo com o dispositivo específico previsto na Lei 9.605/98, segundo o qual: "A prestação de serviços à comunidade consiste na atribuição de tarefas gratuitas junto a parques e jardins públicos e unidades de conservação, e, no caso de dano da coisa particular, pública ou tombada, na restauração desta, se possível" (artigo 9º). Ou seja, exige-se pertinência temática entre as atividades desempenhadas a título de prestação de serviços com o bem jurídico lesado pela suposta infração penal.

Na mesma toada, quanto à pena de prestação pecuniária aplica-se, por especialidade, o artigo 12 da Lei 9.605/98. Vale destacar que, em razão do princípio da máxima coincidência possível, basilar em matéria de tutela do meio ambiente, a destinação social da entidade beneficiária da prestação pecuniária deve guardar pertinência com matéria de cunho ambiental. Ou seja, ela deve ter como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.

A propósito, como já decidido pelo Conselho Nacional de Justiça no Pedido de Providências 2460-96.2014.2.00.0000, os valores decorrentes das transações penais ou sentenças condenatórias referentes à tutela do meio ambiente, patrimônio cultural e urbanístico devem ter como destino específico o efetivo custeio de medidas de proteção ao meio ambiente, não se aplicando a destinação, por exemplo, a contas judiciais de âmbito genérico.

Por derradeiro, ressaltamos que, por força da Constituição Federal (artigo 129, I), a titularidade para a formulação das propostas de medidas insertas no âmbito da Justiça Penal negocial ambiental é privativa e integral do Ministério Público, em juízo de discricionariedade regrada, de acordo com o previsto na legislação de regência [4].

Consoante lição abalizada do Desembargador Gilberto Passos de Freitas [5]:

"Se ao Estado interessa a defesa da sociedade quanto à prática de atos delitivos, também lhe importa a proteção do meio ambiente, cabendo ao Ministério Público examinar a conveniência do início da ação penal, com a valoração do momento e circunstâncias que envolvem o caso.
Enfim, se o perfil do processo penal é sempre o ponto de equilíbrio entre o indivíduo-sociedade e dignidade da pessoa-interesse da coletividade, por certo que uma opção baseada na discricionariedade do titular da ação penal é que iria determinar tal ponto de equilíbrio, promovendo uma forma de justiça mais consentânea com os temos em que estamos vivendo".

O Poder Judiciário desempenha função de relevo no cenário da aplicação dos instrumentos penais negociais, mas seu papel é eminentemente homologatório, de controle da legalidade e da voluntariedade dos ajustes, não lhe cabendo realizar juízo quanto ao mérito ou ao conteúdo da proposta [6], nem muito menos alterá-la ex officio, sob pena usurpação de atribuição constitucionalmente outorgada ao Ministério Público, além de violação aos princípios da imparcialidade, da inércia e do sistema acusatório.

Enfim, há plena viabilidade da aplicação, aos crimes ambientais, dos instrumentos previstos no sistema de Justiça Penal negocial.

Contudo, é necessário que os operadores do Direito se atentem para as particularidades próprias da tutela do meio ambiente e que cada ator do sistema de Justiça se limite a atuar dentro de suas estritas áreas de competência ou atribuição, sob pena de condução tumultuária de feitos e comprometimento da celeridade e eficiência que são marcas características dessa nova forma de tratamento das condutas delitivas em nosso país.

 


[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 6. Ed. Salvador: Jus Podium. 2018. p. 245.

[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 6. Ed. Salvador: Jus Podium. 2018. p. 251.

[3] Fundamentos de Direito Penal Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey. 2015. p. 349

[4] Transação penal homologada em audiência realizada sem a presença do Ministério Público: nulidade: violação do artigo 129, I, da Constituição Federal. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal – que a fundamentação do leading case da Súmula 696 evidencia: HC 75.343, 12.11.97, Pertence, RTJ 177/1293 -, que a imprescindibilidade do assentimento do Ministério Público quer à suspensão condicional do processo, quer à transação penal, está conectada estreitamente à titularidade da ação penal pública, que a Constituição lhe confiou privativamente (CF, artigo 129, I). 2. Daí que a transação penal – bem como a suspensão condicional do processo – pressupõe o acordo entre as partes, cuja iniciativa da proposta, na ação penal pública, é do Ministério Público. (RE 468161, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 14/03/2006).

[5] Ilícito penal ambiental e reparação do dano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 185.

[6] Ao juiz não é dado imiscuir-se nos termos do acordo. Sua imparcialidade, característica inafastável do exercício da jurisdição criminal, impede que participe da negociação sobre os termos do acordo. O Juízo atua como instância de controle e aferição da legalidade, da voluntariedade e da regularidade dos termos do acordo processual. (SUXBERGER, Antônio Henrique Graciano. Leis Penais Especiais Comentadas. Juizados Especiais Criminais. Lei 9.099/95, Juspodivm. Coord: CUNHA, Rogério Sanches et. all. 3 ed. 2020. p. 847).

Autores

  • é promotor de Justiça, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais de Minas Gerais, membro colaborador da Comissão do Sistema Prisional, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública do Conselho Nacional do Ministério Público.

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