Opinião

O false claims act e as qui tam actions: uma possível inspiração para o Brasil (4)

Autor

  • Tiago do Carmo Martins

    é juiz federal do TRF-4 doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2016) diretor da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) professor do curso regular da Esmafesc na disciplina de Direito Administrativo e autor dos livros "Anotações à Lei de Improbidade Administrativa" (Editora Verbo Jurídico 2012 e 2017) e "Improbidade Administrativa: Análise da Lei 8.429/92 à luz da doutrina e da jurisprudência atualizada segundo a Lei 14.230/2021" (Editora Alteridade 2022).

8 de maio de 2021, 9h14

Continuação da Parte 3 (leia aqui)

As qui tam actions cumprem papel importante na proteção do erário dos Estados Unidos. De olho nos resultados positivos, países como a Nigéria discutem a aproximação de seus regimes de whistleblower com o false claims act (FCA), para incorporar as qui tam aos seus próprios ordenamentos [1]. E o Brasil, poderia se beneficiar de algo parecido com as qui tam actions?

O microssistema anticorrupção nacional, centrado na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92 ou LIA) e na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013 ou LAC) tem sido fundamental para desbaratar esquemas e punir responsáveis por atos imorais e corruptos cometidos em detrimento da Administração.

Contudo, ainda há muito a aperfeiçoar. As ações de improbidade demoram muito: a média de tempo entre o ajuizamento e o julgamento é de quatro anos e três meses e em 25% dos casos o julgamento só inicia quando já passados mais de cinco anos. E a recuperação de ativos é tímida: em quase 90% das ações nada é recuperado em favor do Estado [2], mesmo que 63,8% das ações por improbidade terminem com julgamento de procedência ou parcial procedência [3].

A aplicação da LAC pode ser considerada mais frutífera. Em 13 acordos de leniência, a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União comprometeram R$ 14,5 bilhões em devoluções ao erário, dos quais R$ 4,1 bilhões já tinham reingressado nos cofres públicos até fevereiro de 2021 [4]. Mas, além da dependência excessiva da via negocial, a falta de coordenação interinstitucional, que leva a celebração de dois acordos para o mesmo caso [5] e a oposição de outros órgãos a avenças celebradas pelas autoridades competentes [6], cria cenários de incertezas e insegurança jurídica, que pode frear os resultados até aqui obtidos.

A Transparência Internacional-Brasil também aponta que, embora exista boa legislação anticorrupção e estejam em curso ações bem-sucedidas no combate à corrupção no Brasil, "ainda é necessária maior atuação na identificação e responsabilização de ilícitos por parte do Estado" [7].

Por outro lado, há um déficit de participação e envolvimento social no enfrentamento da corrupção. É verdade que o sistema jurídico concede, em certos casos, legitimidade à sociedade organizada (associações, Lei 7.347/85, Lei da Ação Civil Pública) e ao cidadão (Lei 4.717/65, Lei da Ação Popular) para agir em nome do Estado, a fim de reparar lesão que contra este haja sido praticada. Entretanto, os resultados advindos dessas vias são discretos, certamente pela falta de estímulo financeiro para que o particular se veja incentivado a enfrentar os desgastes de uma ação judicial.

O Brasil tem um sistema paternalista de proteção à probidade, pois concentra em poucos agentes a legitimidade para processar as violações, destoando da terceira fase do Estado democrático de Direito, em que a participação do cidadão se dá em "atuação do particular diretamente na gestão e no controle da Administração Pública, (…) diminuindo barreiras entre Estado e Sociedade" [8].

O modelo atual, além de custoso, "impede que os membros da sociedade participem da tutela da probidade" e "afasta da apreciação jurisdicional atos de improbidade de ciência privada", não levados ao conhecimento das autoridades, o que torna essencial ampliar a legitimidade ativa para a propositura de ações cíveis anticorrupção [9], para o que se torna fundamental a oferta de recompensas e proteção aos que se disponham a colaborar com o Estado.

Tanto maior será a qualidade institucional e o nível de democracia de um país quanto mais amplos forem os meios de controle e transparência existentes, em âmbito institucional, social e coletivo. Controle e transparência são remédios indispensáveis: "Hay mayor corrupción cuando una sociedad no conoce con plenitud sus derechos y no los defende" [10].

Isto foi reconhecido pela Lei 13.964/2019 que alterou a Lei 13.608/2018 e instituiu a figura do "informante do bem", prevendo pagamento de até 5% do valor recuperado pelo Estado em decorrência das informações prestadas pelo whistleblower. A inovação, contudo, ainda não se mostrou efetiva, embora sinalize a predisposição do Estado em trazer o cidadão para "o seu lado" na tarefa de desvendar ilícitos. É, também, um reconhecimento de que as pessoas merecem e necessitam de um estímulo pecuniário para compensar os riscos e desgastes trazidos pela colaboração com o poder público.

Contudo, é possível e desejável um passo adiante. Sem alterar o arcabouço que constitui o microssistema anticorrupção, o cidadão e a sociedade podem ser agregados a esse sistema, como watch dogs do poder público. Legitimá-los para agir processualmente em favor do Estado, em troca de recompensa financeira deduzida do montante recuperado na ação pode ser o impulso que falta para envolver efetivamente a sociedade civil no enfrentamento da corrupção.

No entanto, o particular que se envolve renuncia a parte de seu tempo, que deixa de ser empregado em trabalho ou lazer. Além disso, ao denunciar atos de corrupção, expõe-se a elevado risco de retaliações e aos custos envolvidos com defesa em processos ou perda de sua atividade laboral. Aquele que denuncia, embora se beneficie do ato tanto quanto seus concidadãos, por livrar a sociedade de uma chaga, paga um preço maior em relação àqueles que simplesmente esperam que o Estado ou outra pessoa façam alguma coisa, problema particularmente presente na sociedade brasileira, de baixa coesão social e com tendência acentuada a delegar a fiscalização de atos governamentais às próprias instituições estatais [11]. Por isto é fundamental que o particular seja recompensado quando agir e essencial que o "governo reconheça o problema do incentivo e, entendendo que isto envolve uma relação típica diretor x agente, assuma o papel de diretor e construa um mecanismo que motive o agente a devotar seu próprio tempo ao controle social" [12].

Além de canal novo e farto de ingresso de informações, a legitimação para processar favorece a democracia e que traz elemento indispensável para o combate à corrupção: a participação cidadã, com envolvimento propositivo e proativo de pessoas privadas nos assuntos públicos, partindo da compreensão de que o governo já deixou de ser a referência central da organização política para ser apenas um de seus elementos [13].

Até a presente quadra, o Brasil pouco envolve a sociedade na proteção da probidade e, com isso, além do baixo envolvimento cívico, tem desperdiçado importante fonte de informações, pois deixa de se valer do "conhecimento advindo da capilaridade dos cidadãos na vida cotidiana das empresas, das obras públicas, dos serviços públicos" para combater ilícitos praticados e mantidos na clandestinidade [14].

Além disso, o país tem desperdiçado fonte de valores muito expressivos: a média arrecadada anualmente pelo governo dos Estados Unidos tem sido superior a U$ 3 bilhões [15]. Isso só é possível porque indivíduos ligados ao grupo delinquente (insiders) dispõem de informações muitas vezes inacessíveis aos órgãos de controle. "A corrupção torna-se possível pela manipulação das regras e das leis, e actua de forma invisível, bem-sucedida graças aos habituais de pactos de silêncio, entre corruptor e corrompido" [16].

Mais que dinheiro, está se desperdiçando um segundo incentivo, este de caráter negativo para os que planejam atos de corrupção. A possibilidade de que pessoas próximas do grupo delinquente tenham uma porta aberta, e atrativa, ao sistema judicial, para reportar a ocorrência de atos de corrupção cria efeito dissuasório de tais condutas, pois há o temor constante de que alguém possa desvendar os ilícitos às autoridades [17].

A possibilidade de que o silêncio seja quebrado também influencia a ação da própria autoridade pública que cogite de ação corrupta, pois passa a conviver com risco concreto de descoberta da prática ilícita, trazendo alternativa para a questão "quem vigia o vigia?" e serve como estímulo para "manter os zeladores honestos" [18].

E tudo isso sem qualquer aumento de despesas. Essa via alternativa não requer criação de órgãos públicos, cargos, nada [19]. Todo o custeio vem de dinheiro que não existiria, pois os ilícitos dificilmente seriam descobertos.

Portanto, já comprovada a utilidade e economicidade da qui tam pelo Direito estadunidense; demonstrado que ordenamento jurídico brasileiro não estranha a atribuição de legitimação aos particulares para defender interesses do Estado nem a oferta de recompensa a quem colabore com as autoridades; e em face da dinâmica veloz da corrupção e das reconhecidas limitações operacionais dos órgãos de controle nacionais [20]; é chegado o momento de se dar um passo a mais, para ampliar as possibilidades colaborativas de particulares com o Estado no descobrimento de atos de corrupção, mediante a instituição de instrumento semelhante à qui tam na legislação brasileira, com as devidas adaptações à realidade nacional.

 


[1] RABIAT, Ozigis. ADAPTING NIGERIA'S WHISTLEBLOWER POLICY TO PROCUREMENT FRAUDS: A CUE FROM THE FALSE CLAIMS ACT'S QUI TAM PROVISION. Public Contract Law Journal, Vol. 48, Issue 2, p. 337-353, Winter 2019, p. 347.

[2] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida… [et al.]. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015.

[3] COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 100.

[4] BRASIL. Controladoria-Geral da União. Acordo de Leniência. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/responsabilizacao-de-empresas/lei-anticorrupcao/acordo-leniencia. Acesso em: 02/05/2021.

[5] O que aconteceu em relação à Braskem, que primeiro firmou acordo de leniência com o MPF, o qual, por não ter contado com a participação da CGU, teve sua validade afastada pelo TRF4 (AG 5023972-66.2017.4.04.0000, TERCEIRA TURMA, Relatora VÂNIA HACK DE ALMEIDA, juntado aos autos em 24/08/2017), culminando na assinatura de um segundo acordo para o mesmo caso, desta feita entre a empresa e a CGU/AGU.

[6] Isto tem ocorrido com alguma frequência por parte do Tribunal de Contas da União (TCU), que não tem papel atribuído pela LAC nos acordos de leniência, mas tem entendido ser legitimado a sindicar os acordos celebrados por outros órgãos, sob compreensão de que ostenta atribuição para aferir a extensão da lesão praticada contra o erário (PIMENTA, Raquel de Mattos. A CONSTRUÇÃO DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA DA LEI ANTICORRUPÇÃO. São Paulo: Editora Edgard Blücher Ltda, 2020, p. 149).

[7] TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – Brasil. Integridade e Empresas no Brasil. Org. Claudia Sanen e Guilherme Donegá. 2018. Disponível em: https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/asset/25:bica-integridade-e-empresas-no-brasil?stream=1. Acesso em: 15/12/2020.

[8] JACOBSEN, Gilson. Evolução do Estado e do Direito Administrativo: breve panorama do direito administrativo à luz da evolução do Estado e dos novos direitos. Curso Modular de Direito Administrativo. Org. VAZ, Paulo Afonso Brum; TEIXEIRA, Ricardo do Valle Pereira. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 35.

[9] COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 179-181.

[10] BRITOS, Armando Rafael Aquino. La corrupción como fenómeno y la afectación al sistema político. In Combate a la corrupción: reflexiones y experiencias multilaterales. Colección Buen Gobierno, Derechos Humanos y Combate a la Corrupción. ALVAREZ, Adriana de Santiago; TRUJILLO, Jesús Rodrigo Guadalupe Nájera (Organizadores). Guanajuato, 2020, p. 22.

[11] BUGARIN, Maurício S.; VIEIRA, Laércio M. Benefit Sharing: An Incentive Mechanism for Social Control of Government Expenditure. Quarterly Review of Economics and Finance, v. 48, n. 4, 2008, p. 682.

[12] BUGARIN, Maurício S.; VIEIRA, Laércio M. Benefit Sharing: An Incentive Mechanism for Social Control of Government Expenditure. Quarterly Review of Economics and Finance, v. 48, n. 4, 2008, p. 682.

[13] ZAMUDIO, José Jafet Noriega. La reforma constitucional anticorrupción en México: a un lustro aproximado de su difusión y vigencia. In Combate a la corrupción: reflexiones y experiencias multilaterales. Colección Buen Gobierno, Derechos Humanos y Combate a la Corrupción. ALVAREZ, Adriana de Santiago; TRUJILLO, Jesús Rodrigo Guadalupe Nájera (Organizadores). Guanajuato, 2020, p. 122.

[14] ROCHA, Márcio Antônio. A participação da sociedade civil na luta contra a corrupção e a fraude: uma visão do sistema jurídico americano focada nos instrumentos da ação judicial qui tam action e dos programas de whistleblower. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n.65, abr. 2015. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao065/Marcio_Rocha.html. Acesso em: 15 dez. 2020.

[15] MEHTA, Jason; SHORT, Jennifer A. Big Data Makes Big Cases: How Data Analytics Is Shaping False Claims Act Enforcement. Federal Lawyer, v. 67, n. 4, p. 42–48, 2020..

[16] MORGADO, Maria. Corrupção – estrutura e significado. Lisboa: Comunicação apresentada no Congresso da Justiça, Ago/2003. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwiTmKG5nNXtAhUED7kGHdqyAvQQFjAAegQIAhAC&url=http%3A%2F%2Fasficpj.pt%2Fimages%2Farquivo%2F2003%2Fmorgado.pdf&usg=AOvVaw3Ih-MHytSMMSlgz3K3II0h. Acesso em: 17/12/2020.

[17] É o "vírus da instabilidade nas relações entre potenciais infratores" (MARRARA, Thiago. Lei anticorrupção permite que inimigo vire colega. Conjur, 15.11.2013. Disponível em:
www.conjur.com.br/2013-nov-15/thiago-marrara-lei-anticorrupcao-permite-inimigo-vire-colega. Acesso em: 02/05/2020), que "permite à Administração Pública desestabilizar a harmonia das relações entre os membros das organizações criminosas, ao inserir nesse meio a constante suspeita de que a qualquer tempo um dos infratores pode ‘trair’ o esquema delitivo" (FARIA, Luzardo. ACORDO DE LENIÊNCIA E NEGOCIAÇÃO DA SANÇÃO ADMINISTRATIVA: REFLEXÕES A PARTIR DA INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura, vol. 13/2020, p. 197 – 219 | Abr – Jun / 2020).

[18] HARDIN, Garrett. The Tragedy of the Commons. Science, Vol. 162, Dez./1968, p. 1245-1246.

[19] O custo zero é comprovado em programa de qui tam (Private Attorneys General Act – PAGA)em curso na Califórnia. GILLES, Myriam; FRIEDMANN, Gary. The New Qui Tam: A Model for the Enforcement of Group Rights in a Hostile Era. Texas Law Review, Vol. 98, 2020, p. 539.

[20] GARCIA, Emerson. Repressão à Corrupção no Brasil: entre realidade e utopia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 10.

Autores

  • é juiz federal do TRF-4, mestre e doutorando Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí, diretor e professor de Direito Administrativo na Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina.

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