Opinião

O false claims act e as qui tam actions: uma possível inspiração para o Brasil (3)

Autor

  • Tiago do Carmo Martins

    é juiz federal do TRF-4 doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2016) diretor da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) professor do curso regular da Esmafesc na disciplina de Direito Administrativo e autor dos livros "Anotações à Lei de Improbidade Administrativa" (Editora Verbo Jurídico 2012 e 2017) e "Improbidade Administrativa: Análise da Lei 8.429/92 à luz da doutrina e da jurisprudência atualizada segundo a Lei 14.230/2021" (Editora Alteridade 2022).

7 de maio de 2021, 9h14

Continuação da Parte 2 (leia aqui)

A grande atratividade das qui tam actions, que impulsiona decisões de romper a inércia para processar fraudes em nome e em favor do Estado, reside na recompensa devida ao relator em caso de sucesso da ação.

Os whistleblowers (de quem os relators são espécie) são uma preciosa fonte de inside information para combater crimes dissimulados, como é da natureza da corrupção [1]. Os dados que os informantes podem prover constituem inestimável commodity em que as autoridades regulatórias necessitam investir. Assim, o valor dessa commodity (representado pelo prêmio a ser pago ao informante), precisa ser alto o suficiente para que represente incentivo maior do que as resistências em colaborar com o Estado, traduzidas por valores sociais ou pessoais contra tal tipo de conduta [2].

O incentivo financeiro ofertado ao relator acaba por reforçar a estrutura estatal de combate a ilícitos, através de uma espécie de contratação ad hoc de "advogados-gerais privados", que trazem as informações desconhecidas e, com elas, processam os responsáveis pelo ilícito em nome do Estado, reforçando o já existente aparato público de aplicação da lei.

Além de facilitar a descoberta de infrações, a baixo custo, a qui tam provoca importante efeito dissuasório, uma vez que os participantes do esquema passam a temer que alguém do grupo possa "vendê-los" às autoridades em busca dos incentivos ofertados para tanto [3].

Trata-se de forma de incrementar o poder de aplicação da lei sem grande custo envolvido, uma vez que não é necessário aumentar a estrutura burocrática de persecução, já que não há criação ou modificação de agências governamentais nem contratação de novos servidores públicos [4].

No sistema estabelecido pelo FCA, o valor da recompensa é variável em função da adesão ou não do governo ao processo e da "extensão em que a pessoa contribuiu substancialmente para o andamento da ação" [5].

Se a ação for procedente ou se a causa for resolvida por acordo de que resulte recuperação de ativos estatais, o relator receberá de 25% a 30% do proveito estatal [6], nas situações em que o governo não intervenha na ação. Já se o Estado aderir ao processo, a recompensa ficará entre 15% e 25% [7]. O relator também é indenizado dos gastos havidos com os custos do processo e honorários de advogado.

Caso a corte entenda que o processo está baseado primordialmente em informação pública, o prêmio ainda poderá ser pago, tendo em conta a importância da informação trazida e o papel exercido pelo relator para que a recuperação de valores públicos fosse, de fato, efetivada. Nesse caso, contudo, a recompensa não excederá 10% do montante recuperado [8].

Se o relator for partícipe da fraude, o prêmio, embora permaneça devido, pode ser diminuído a critério da corte, dependendo do seu grau de envolvimento (planejamento ou ter dado início à violação). Contudo, a recompensa será afastada quando o relator já tiver sido condenado criminalmente pelos mesmos fatos, sem prejuízo do seguimento da ação sob controle do governo [9].

Outro incentivo, de caráter não pecuniário, à propositura de qui tams é a proteção garantida ao informante pelo FCA, baseada no reconhecimento de que o relator frequentemente arrisca tudo quando propõe um false claim case [10]. Os denunciantes, sejam empregados, contratantes e agentes que mantenham relações com o violador do estatuto, estão resguardados de retaliações por comunicarem o ilícito às autoridades.

Nessa senda, se o denunciante for sujeito a alguma reprimenda em suas relações trabalhistas por ter colaborado com o Estado, seu empregador ou contratante pode ser condenado a pagar o dobro dos danos causados, além de honorários advocatícios e custos processuais [11]. Ainda, qualquer medida necessária para cessar ou impedir a ameaça ou danos ao colaborador pode ser decretada pelo Judiciário [12]. Trata-se de uma proteção ampla, que ampara quem tenha colaborado com a elucidação do esquema via propositura de uma qui tam [13].

Mais recentemente, se passou a debater nos Estados Unidos a possibilidade de, mediante contrato, o empregador limitar a prerrogativa dos empregados de informar as autoridades sobre ilícitos corporativos de que tenham ciência.

Em caso influenciado pelas então novas disposições da Dodd–Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act of 2010 (Dodd–Frank), que reforçou a posição dos Whistleblowers, garantindo, entre outras medidas, legitimidade ativa para ações judiciais em cortes federais contra retaliações por parte dos empregadores, a Securities and Exchange Comission (SEC) puniu empresa que fez com que empregados e ex-empregados firmassem termos de confidencialidade obstativos do repasse de informações às autoridades. A empresa Kellogg, Brown and Root (KBR), com atuação global em tecnologia e engenharia, fez os trabalhadores assinar termos se obrigando a obter prévio consentimento da empresa antes de discutir assuntos internos da corporação com "partes externas".

Embora tais contratos não tenham tido efetiva aplicação em situações concretas, a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC) entendeu que sua mera existência, com a linguagem ambígua que lhe caracterizava, era suficiente para configurar violação aos dispositivos de proteção do informante previstos na Lei Dodd-Frank. Com base nessa violação, a agência e a corporação fecharam acordo, em que esta foi penalizada com uma multa de U$ 130 mil, o que foi considerado um grande avanço na luta por conformidade e transparência corporativas [14].

A legitimidade para a ação levanta indagações de ordem constitucional. Uma delas diz que o FCA, ao autorizar pessoas privadas a agir em nome do Estado, estaria violando a regra da separação de poderes, que confere ao Executivo discricionariedade na tarefa persecutória estatal. A alegação, contudo, vem sendo afastada, sob a compreensão de que o Executivo, embora não inicie a ação, sobre ela mantém severo controle e protagonismo quando intervém; além de não ser compelido a cumprir nenhum papel ativo quando não o deseje, já que sempre remanesce a opção de não intervir na ação [15].

Outra preocupação diz com a falta de interesse direto (standing [16]) do autor privado para defender em juízo assuntos do governo dos Estados Unidos. A regra geral, segundo a interpretação da Suprema Corte sobre o Artigo III, §2º, da Constituição, diz que "a admissibilidade da demanda requer a existência de lesão concreta a interesse legalmente protegido, o nexo causal entre a lesão e a conduta do réu e a presença de indícios de prolação de decisão favorável ao autor" [17].

Nessa perspectiva, o standing dos autores privados tem sido sufragado pelas cortes [18], sob compreensão de que é lícito ao Congresso, mediante ato legal expresso, ampliar o rol de legitimados a defender os interesses do governo em juízo [19], uma vez que é da natureza da função legislativa definir e assegurar o interesse público e os meios de fazê-lo [20].

Em Vermont Agency of Natural Resources v. United States ex rel. Stevens, a Suprema Corte admitiu uma qui tam que versava sobre a submissão de pedido de pagamento fraudulento em desfavor da agência pública de proteção ambiental. A corte reconheceu que o relator não tinha sofrido nenhum dano direto, mas, mesmo assim, reconheceu que o artigo III da Constituição dava legitimidade ao pleito, pois o FCA concedia uma parcial delegação ao autor para agir em nome do Estado [21]. Na essência, o caso estabeleceu a partial assignmente theory [22], em que o relator não é visto como um cidadão comum, mas um "quase empregado" do governo [23], o que, nas circunstâncias de uma qui tam, o legitima para agir judicialmente em nome do Estado.

Além disso, se assentou a compreensão, hoje predominante, de que o autor privado tem um interesse próprio em jogo, qual seja a recompensa por ele visada, o que, per se, traduz um interesse direto na causa [24].

Para concluir, não se pode desconsiderar a relação de custo-efetividade da qui tam. Trate-se de meio eficaz para expor ilegalidades com investimento expressivamente baixo por parte do Estado, que, além de recuperar ativos de outro modo praticamente inalcançáveis [25], o faz sem precisar aumentar a máquina estatal persecutória, investimento de longo prazo e de retorno incerto.

Nesse ponto, deve-se recordar que, para causar efeito dissuasório na corrupção, não é suficiente a previsão, em tese, de penas elevadas. Mais que penas duras, é a probabilidade maior de ser punido que tem o condão de diminuir a incidência de ilícitos. A construção de um Estado capaz de descobrir amplamente a corrupção é algo caro, o que aumenta o custo social da delinquência. O ponto de equilíbrio (optimal enforcement) está em estabelecer meios regulatórios que não sejam extremamente custosos [26].

Nesse passo, a qui tam desponta como instrumento essencial para balancear a necessidade de aumentar a chance de descoberta de atos corruptos, e ensejar sua punição efetiva; com as contingências orçamentárias, uma vez que é investimento de baixo custo e que não compromete o orçamento público de forma permanente. A qui tam, então, sob aspecto prático, tem o efeito de tornar a corrupção mais custosa que sua prevenção e é importante arma para se somar ao arsenal estatal de combate à desvios de recursos públicos [27], sobretudo em países já acossados por corrupção alta e orçamento limitado [28].

Resta agora avaliar se instituto semelhante às qui tam é compatível e seria útil ao Direito brasileiro.

Continua na Parte 4

 


[1] INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION LEGAL POLICY AND RESEARCH UNIT. Are whistleblowing laws working? A global study of whistleblower protection litigation. Government Accountability Project. Primary Authors: Samantha Feinstein; Tom Devine. London: 2021, p. 71.

[2] KIM, Sang Beck. Dangling the Carrot, Sharpening the Stick: How an Amnesty Program and Qui Tam Actions Could Strengthen Korea’s Anti-Corruption Efforts. Northwestern Journal of International Law & Business Vol. 36, No. 1, p. 235-265, 2016, p. 256.

[3] PETTY, Aaron R. How Qui Tam Actions Could Fight Public Corruption. University of Michigan Journal of Law Reform, vol. 39, Issue 4, 2006, p. 875.

[4] ENGSTROM, David Freeman. Private Enforcement’s Pathways: Lessons from Qui Tam litigation. Columbia Law Review, vol. 114, n. 8, Dez/2014, p. 1924-1925.

[5] U.S.C 31 §3730(d)(1).

[6] Na versão original do FCA, o relator ficava com 50% do valor recuperado e o condenado pela fraude ainda pagava indenização e dobro pelo dano causado, mais uma multa de U$ 2 mil por requisição falsa. KELLY, Todd. SHARING IS CARING: PROTECTING THE ABILITY OF QUI TAM RELATORS AND THE GOVERNMENT TO SHARE INFORMATION UNDER THE FALSE CLAIMS

ACT. George Mason Law Review, Vol. 23:5, 2016, p. 1320.

[7] Note-se que a qui tam pode prover informação que dê azo a uma ação penal. Neste caso, o relator não pode interver na demanda criminal, nem receber qualquer participação no que nela for arrecadado (United States v. Wegeler, 941 F.3d 665 / 3d Cir. Oct. 28, 2019). False Claims Act/Qui Tam Actions. Business Torts Reporter, v. 32, n. 3, p. 66–67, 2020. Disponível em: https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=bth&AN=141087344&lang=pt-br&site=eds-live&scope=site. Acesso em: 21/01/2021.

[8] 31 U.S.C. 3730(d)(1)(2).

[9] 31 U.S.C. 3730(d)(3).

[10] PETTY, Aaron R. How Qui Tam Actions Could Fight Public Corruption. University of Michigan Journal of Law Reform, vol. 39, Issue 4, 2006, p. 873.

[11] DOYLE, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes. Congressional Research Service. Edição do Kindle, p. 556.

[12] U.S.C 31 §3730(h).

[13] COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 33.

[14] PACELLA, Jennifer M. Silencing Whistleblowers by Contract. American Business Law Journal Volume 55, Issue 2, 261–313, Summer 2018, p. 264.

[15] CAMINKER, Evan. The Constitutionality of Qui Tam Actions. The Yale Law Journal, Vol. 99, No. 2, Nov./1989, p. 358.

[16] DOYLE, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes . Congressional Research Service. Edição do Kindle, p. 900

[17] SOUZA, Teresa Cristina. Recuperação de Valores Devidos ao Erário no Direito Norte- Americano: qui tam action e false claims act. Brasília: Escola da AGU. 2º Curso de Introdução ao Direito Americano: Fundamentals of US Law Course, volume 1, 2012, p. 304.

[18] SOUZA, Teresa Cristina. Recuperação de Valores Devidos ao Erário no Direito Norte- Americano: qui tam action e false claims act. Brasília: Escola da AGU. 2º Curso de Introdução ao Direito Americano: Fundamentals of US Law Course, volume 1, 2012, p. 305.

[19] CAMINKER, Evan. The Constitutionality of Qui Tam Actions. The Yale Law Journal, Vol. 99, No. 2, Nov./1989, p. 347.

[20] CAMINKER, Evan. The Constitutionality of Qui Tam Actions. The Yale Law Journal, Vol. 99, No. 2, Nov./1989, p. 348.

[21] BECK, Randy. Promoting Executive Accountability Through Qui Tam Legislation. Chapman Law Review. V. 21, Iss. 1. Art. 4, p. 46. Disponível em: https://digitalcommons.chapman.edu/chapman-law-review/vol21/iss1/4. Acesso em: 03/09/2020.

[22] GILLES, Myriam; FRIEDMANN, Gary. The New Qui Tam: A Model for the Enforcement of Group Rights in a Hostile Era. Texas Law Review, Vol. 98, 2020, p. 522.

[23] MAHONEY, Joshua Patrick. Qui Tam Relators, the First Amendment, and the False Claims Act. University of Chicago Legal Forum: Vol. 2012: Iss. 1, Article 13, p. 301. Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol2012/iss1/13. Acesso em 11/12/2020.

[24] CAMINKER, Evan. The Constitutionality of Qui Tam Actions. The Yale Law Journal, Vol. 99, No. 2, Nov./1989, p. 378.

[25] "Vale dizer, as instituições legais devem ser construídas seguindo uma ótica de custo-benefício até mesmo quando se trata de assunto tão caro à moral do povo como é o caso da corrupção pública, devendo ser evitados instrumentos cujos custos sejam superiores ao valor fixado às suas conseqüências práticas, repensando, dessa forma, as externalidades próprias do sistema jurídico". COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 35-36.

[26] KIM, Sang Beck. Dangling the Carrot, Sharpening the Stick: How an Amnesty Program and Qui Tam Actions Could Strengthen Korea’s Anti-Corruption Efforts. Northwestern Journal of International Law & Business Vol. 36, No. 1, p. 235-265, 2016, p. 248.

[27] PETTY, Aaron R. How Qui Tam Actions Could Fight Public Corruption. University of Michigan Journal of Law Reform, vol. 39, Issue 4, 2006, p. 876.

[28] KAPLOW, Louis; SHAVELL, Steven. Optimal Law Enforcement with Self-Reporting of Behavior. Journal of Political and Economy, vol. 102, n. 3, 1994, p. 583-584.

Autores

  • é juiz federal do TRF-4, mestre e doutorando Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí, diretor e professor de Direito Administrativo na Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina.

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