Opinião

O false claims act e as qui tam actions: uma possível inspiração para o Brasil (1)

Autor

  • Tiago do Carmo Martins

    é juiz federal do TRF-4 doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2016) diretor da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) professor do curso regular da Esmafesc na disciplina de Direito Administrativo e autor dos livros "Anotações à Lei de Improbidade Administrativa" (Editora Verbo Jurídico 2012 e 2017) e "Improbidade Administrativa: Análise da Lei 8.429/92 à luz da doutrina e da jurisprudência atualizada segundo a Lei 14.230/2021" (Editora Alteridade 2022).

5 de maio de 2021, 7h12

Ataques aos cofres públicos não são exclusividade brasileira. E uma experiência centenária e bem-sucedida pode sinalizar alternativas para o caso nacional. Com isso em mente, propõe-se uma série de pequenos ensaios sobre um dos principais instrumentos anticorrupção dos Estados Unidos, o false claims act (FCA).

Deparando-se com sérios problemas de fraudes contra o erário, o Congresso dos Estados Unidos promulgou o FCA em 1863 para debelar forte pressão sobre os cofres públicos que, no contexto da Guerra Civil, viam fornecedores de material bélico (incluindo cavalos e comida) apresentarem cobranças indevidas e excessivas (fraudulentas) ao governo [1].

Com o tempo, o espectro da lei foi ampliado para além da fraude contratual, para abarcar declarações fraudulentas que cobram reembolsos indevidos e [2], mais recentemente, até para cobrir fraudes que visam a diminuir o valor de uma obrigação a ser paga ao Estado (reverse false claim[3]. Para o FCA, a atividade econômica explorada pelo particular não é o fator decisivo para incidência do estatuto, mas, sim, a ocorrência de algum tipo de fraude que implique em perda de dinheiro por parte do Estado [4].

O FCA proíbe atos que visem ao locupletamento de qualquer pessoa, física ou jurídica, em detrimento do patrimônio do governo federal, seja recebendo mais do que o devido pelo serviço prestado, entregando prestação em desacordo com o contratado, não restituindo o bem guardado em sua integralidade, adquirindo ilegalmente propriedade pública, reduzindo o valor que tem de pagar ao erário (reverse false claim) ou combinando formas de praticar as condutas anteriores (conspiração) [5].

O pedido de pagamento deve ser apresentado ao governo diretamente, através de seus funcionários, ou a agentes e terceiros que estejam encarregados de gerir fundos federais (como gestores de fundos mantidos por dinheiro público) [6].

Todas as figuras só se configuram mediante dolo. A simples negligência não enseja responsabilidade. É preciso demonstrar que o réu ignorou deliberadamente ou foi excessivamente descuidado (algo como o erro grosseiro da improbidade administrativa) com o pedido de pagamento submetido [7].

Os violadores se sujeitam às penas previstas no U.S.C. 31 §3729, (a), (1)(3); e §3730, (d), quais sejam: pagamento do triplo do dano causado (treble damages), ressarcimento dos custos suportados pelo governo e eventual autor privado com a ação, incluindo honorários advocatícios e custas processuais; e multa que, em valores atuais, corrigidos em junho de 2020 pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ), fica entre U$ 11.665 e U$ 23.331 por cada violação. Um único esquema pode implicar em diversas violações ao FCA, fazendo com que as penalidades frequentemente alcancem a faixa dos milhões [8].

O FCA, contudo, reconhece que o Estado não é capaz de perceber todas as fraudes. Os legisladores perceberam, como política pública, que os cidadãos estão mais bem posicionados para desvendar transgressões [9]. Então, o diploma lança mão das qui tam actions, nome que é uma versão curta de expressão latina "qui tam pro domino rege quam pro se ipso in hac parte sequitur" que [10], traduzida livremente, significa "aquele que traz o seguinte assunto para meu Senhor o Rei e quem também traz este assunto para si mesmo". A expressão remete às origens do instituto, cujo primeiro registro é atribuído à uma declaração do rei Wihtred de Kent, do ano de 695, a qual estabelecia que "se um homem livre trabalha em período proibido (como o Sabbath), ele perderá suas presas e aquele que o denunciar receberá metade da multa e os lucros advindos do trabalho" [11].  

Baseia-se na ideia de conceder incentivo financeiro ao particular (relator ou private attorney general) que disponha de informações contra fraudes praticadas em detrimento do governo dos Estados Unidos. Com olhos no prêmio, aquele que tem informações de interesse do governo se sentiria tentado a delatar e processar os partícipes e, com isso, o Estado acessaria informações e dados que, de outro modo, provavelmente não alcançaria. Assim, em sua versão original, a qui tam foi concebida pelo legislador como um meio para descobrir e cortar as raízes das fraudes contra o governo, fraudes que, de outro modo, permaneceriam encobertas [12].

As qui tam se orientam pela fórmula informação = recompensa e, por isto, são espécie de whistleblower [13], pois também se concede recompensa por informações de interesse persecutório ao relator. A diferença, contudo, está na concessão de legitimidade (standing) para propor uma ação judicial em seu próprio nome e, ao mesmo tempo, em nome do governo dos Estados Unidos.

Evidentemente, o governo não é excluído de perseguir as violações ao FCA. Pelo contrário, o U.S.C 31 §3730 atribui legitimidade ao advogado-geral dos Estados Unidos (attorney general) para "diligentemente" investigar as condutas fraudulentas contra o governo e, caso descubra a prática de uma das figuras do §3729, promover a ação civil para responsabilização do violador. Mas em sua inércia, o dispositivo também confere a pessoas privadas, físicas ou jurídicas, o poder de litigar em nome do Estado.

Os dados demonstram a importância das qui tam actions para defesa do erário: no período de 1998 a 2008, foram ajuizadas 1.436 non qui tam (iniciadas pelo Estado), contra 6.823 qui tam [14]. O montante de valores recuperados também depende muito das qui tam: dos mais de U$ 3 bilhões que retornaram ao governo com base no FCA em 2019, 72% vieram de qui tam actions, percentual que se repete ou é ainda maior em todos os anos do período entre 2010 e 2019 [15].

É indispensável que a ação esteja amparada em prova: 1) da submissão intencional de um pedido de pagamento feito ao governo; 2) baseada em falsidade ou fraude: e 3) do dolo do réu, consistente no conhecimento da fraude e intuito de se locupletar indevidamente [16].

Quanto ao elemento volitivo, como se trata de ação cível, "não exige como pressuposto de responsabilidade os standards próprios do direito penal, que seriam (…) a vontade específica de fraude (specific intent of fraud), e, para fins probatórios, provas e indícios 'além de uma dúvida razoável (beyond reasonable doubt)" [17].

Assim, no que diz com a intencionalidade, deve ser demonstrado que o réu tinha conhecimento da natureza fraudulenta do requerimento, que agiu em deliberada ignorância quanto à legitimidade do pleito ou que descuido inescusável quanto à veracidade ou falsidade do pedido de pagamento (como o médico que delega as cobranças de seus serviços a sua esposa e deixa de conferir a acurácia das informações submetidas ao governo) [18].

A fraude, segundo julgado em United States ex rel. Scollick v. Narula pelo juiz Royce C. Lamberth, da Corte Distrital do Distrito de Columbia, pode se referir à fase inicial da contratação com o Estado, como no caso em que o contrato só é obtido mediante declarações falsas prestadas ao governo, sem as quais o contratante não teria sido contratado. Nesses casos, embora possa haver execução contratual lícita, sem cobranças fraudulentas, a contratação em si é considerada viciada, caracterizando lesão ao governo, a ensejar a propositura da qui tam [19].

Há dissídio nas cortes distritais e circuitos de apelação quanto à equiparação entre fraude e falta de conformidade do contratante com regulamentos federais [20]. Em um dos casos mais recentes apreciados pela Suprema Corte, foi adotada por unanimidade de votos a "FCA Implied False Certification Theory" (Universal Health Services v. United States ex rel. Escobar). Ficou estabelecido, nos termos do voto proferido pelo justice Thomas, que a falta de conformação com normas regulatórias relevantes (como as definidas pela Food and Drug Administration, ou FDA, para prestação de serviços ou venda de produtos de saúde) representa fraude contra o governo, mesmo quando a regra violada não esteja estabelecida como pré-condição para o pagamento, nem tenha sido inobservada nessa fase, mas quando da habilitação da contratada para fornecer serviços ou bens ao governo [21].

Atualmente, fraudes muito usuais dizem respeito a pedidos de pagamentos formulados no âmbito dos programas Medicare e Medicaid, que cobrem cerca de 95 milhões de cidadãos dos Estados Unidos, a um custo anual de U$ 900 bilhões. Tais programas são vítimas frequentes de pedidos de pagamentos por serviços não prestados, prestados a pessoas que não existem (ghost patients), kickbacks (quando o serviço é prestado na via governamental, mas o funcionário responsável recebe alguma recompensa privada, como bônus pago por fornecedor, desconto na locação de equipamentos ou viagens com todos os custos cobertos) e cobrança por procedimentos mais complexos (portanto mais caros), dos que os efetivamente realizados [22].

Desse relato, é possível notar que o FCA e as qui tam cobrem um campo vasto, de compras públicas a conformidade regulatória, e têm feito ingressar no caixa do Estado valores expressivos a cada ano. Especificamente quanto a qui tam representa força que se agrega ao aparato estatal para desvendar desfalques cometidos em detrimento do Estado e, por consequência, dos próprios cidadãos. Com isso, além de ampliar as possibilidades de descoberta de ilícitos, envolve os particulares no combate à corrupção. Essas finalidades (maior capacidade de detecção de ilícitos e maior envolvimento da sociedade) também poderiam ser melhor perseguidas no Brasil, assunto que será abordado nos ensaios seguintes.

Continua na Parte 2


[1] DOYLE, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes . Congressional Research Service. Edição do Kindle, p. 219.

[2] COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 30.

[3] DOYLE, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes. Congressional Research Service. Edição do Kindle, p.473.

[4] RABIAT, Ozigis. ADAPTING NIGERIA'S WHISTLEBLOWER POLICY TO PROCUREMENT FRAUDS: A CUE FROM THE FALSE CLAIMS ACT'S QUI TAM PROVISION. Public Contract Law Journal, Vol. 48, Issue 2, p. 337-353, Winter 2019, p. 344.

[5] ENGSTROM, David Freeman. Private Enforcement’s Pathways: Lessons from Qui Tam litigation. Columbia Law Review, vol. 114, n. 8, Dez/2014, p. 1943.

[6] DOYLE, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes. Congressional Research Service. Edição do Kindle, p. 402.

[7] DOYLE, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes. Congressional Research Service. Edição do Kindle, p. 409.

[8] LIEBERMAN, David W.S. 2020 False Claims Act Penalties. Disponível em: https://www.whistleblowerllc.com/2020-false-claims-act-penalties/. Acesso em: 05/09/2020.

[9] GILLES, Myriam; FRIEDMANN, Gary. The New Qui Tam: A Model for the Enforcement of Group Rights in a Hostile Era. Texas Law Review, Vol. 98, 2020, p. 493.

[10] PETTY, Aaron R. How Qui Tam Actions Could Fight Public Corruption. University of Michigan Journal of Law Reform, vol. 39, Issue 4, 2006, p. 863.

[11] DOYLE, Charles. Qui Tam: The False Claims Act and Related Federal Statutes. Congressional Research Service. Edição do Kindle, p. 67 e 101.

[12] TSCHEPIK, Nathan T. The Executive Judgment Rule: A New Standard of Dismissal for Qui Tam Suits Under the False Claims Act. The University of Chicago Law Review, nº. 87, Iss. 4, Article 3, 2020, p. 1058.

[13] A qui tam é uma espécie do gênero whistleblower; e o relator, comumente, um whistleblower que fora ignorado, quando, em primeiro lugar, "soprou o apito" para a autoridade ou organização competente. AMERICAN BAR ASSOCIATION. Seven Steps to Mitigate FCA Litigation Risks. Disponível em: https://www.americanbar.org/groups/litigation/committees/corporate-counsel/articles/2020/summer2020-qui-tam-actions-managing-risk-in-the-wake-of-covid-19/. Acesso em: 12/12/2020.

[14] Dados compilados pelo Escritório Jurídico HOLLAND & KNIGHT. Disponível em: https://www.hklaw.com/en/insights/publications/2019/01/doj-releases-2018-false-claims-act-report-and-stat. Acesso em: 06/09/2020.

[15] Levantamento realizado pelo Escritório CONSTANTINE / CANNON. Disponível em: https://constantinecannon.com/2020/01/13/doj-2019-fraud-statistics-critical-role-of-whistleblowers/. Acesso em: 28/04/2021.

[16] 31 U.S.C. 3730(a)(1).

[17] ROCHA, Márcio Antônio. A participação da sociedade civil na luta contra a corrupção e a fraude: uma visão do sistema jurídico americano focada nos instrumentos da ação judicial qui tam action e dos programas de whistleblower. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n.65, abr. 2015. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao065/Marcio_Rocha.html. Acesso em: 15 dez. 2020.

[19] YODER, Todd. False Claims Act Whistleblower Wins Key Materiality Victory. Disponível em: https://kkc.com/blog/false-claims-act-whistleblower-wins-key-materiality-victory/. Acesso em: 09/12/2020.

[20] THERIAULT, Emily. Seventh Circuit Rejects FCA Implied False Certification Theory. Disponível em: https://www.governmentcontractslawblog.com/2015/06/articles/false-claims/seventh-circuit-rejects-fca-implied-false-certification-theory/. Acesso em: 09/12/2020.

[21] KRISTOFCAK, Alexander. FCA V. FDA: THE CASE AGAINST THE PRESUMPTION OF IMMATERIALITY FROM AGENCY INACTION. NEW YORK UNIVERSITY LAW REVIEW, Vol. 95, ABR./2020, p. 245.

[22] PIETRAGALLO, GORDON, ALFANO, BOSICK e RASPANTI, LLP. Disponível em: https://www.falseclaimsact.com/common-types-of-fraud/health-care-fraud/. Acesso em: 10/12/2020.

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    é juiz federal do TRF-4, mestre e doutorando Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí, diretor e professor de Direito Administrativo na Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina.

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