Contas à vista

Paralisia fiscal impõe judicialização do tamanho constitucional do Estado

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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4 de maio de 2021, 8h01

Na última semana, o Supremo Tribunal Federal enfrentou — direta ou indiretamente — a omissão de custeio da União em relação tanto à renda básica de cidadania, quanto ao censo demográfico decenal.

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Os efeitos da decisão colegiada no Mandado de Injunção 7.300 e da tutela monocraticamente antecipada na Ação Cível Originária 3.508 constrangem quem faz uma leitura formal acerca dos nossos supostamente rígidos limites fiscais. Em ambos os casos, o debate passa pela identificação das obrigações materiais a cargo do Estado brasileiro, cujo adiamento se revela inconstitucional, por negar proteção suficiente a direitos fundamentais nucleares.

A omissão — presentemente refutada em relação à renda básica de cidadania — acumulava já dezessete anos de ausência de regulamentação que efetivasse o alcance pleno da Lei 10.835/2004. A decisão do STF foi clara em reconhecer a omissão dos poderes políticos, razão pela qual lhes fixou prazo de atuação até o próximo exercício financeiro nos seguintes moldes:

 "O Tribunal, por maioria, concedeu parcialmente a ordem injuncional, para:
i) determinar ao Presidente da República que, nos termos do art. 8º, I, da Lei nº 13.300/2016, implemente, “no exercício fiscal seguinte ao da conclusão do julgamento do mérito (2022)”, a fixação do valor disposto no art. 2º da Lei nº 10.835/2004 para o estrato da população brasileira em situação de vulnerabilidade socioeconômica (extrema pobreza e pobreza – renda per capita inferior a R$ 89,00 e R$ 178,00, respectivamente – Decreto nº 5.209/2004), devendo adotar todas as medidas legais cabíveis, inclusive alterando o PPA, além de previsão na LDO e na LOA de 2022; e
ii) realizar apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que adotem as medidas administrativas e/ou legislativas necessárias à atualização dos valores dos benefícios básico e variáveis do programa Bolsa Família (Lei nº 10.836/2004), isolada ou conjuntamente, e, ainda, para que aprimorem os programas sociais de transferência de renda atualmente em vigor, mormente a Lei nº 10.835/2004, unificando-os, se possível."
 

Por outro lado, o descumprimento do caráter decenal do censo demográfico, a que se refere o artigo 1º da Lei 8184/1991, não poderia ser justificado novamente pela ocorrência da pandemia da Covid-19, como o fora em 2020, porque, desde dezembro, têm sido definidos grupos prioritários de vacinação, onde podem ser incluídos os profissionais diretamente vinculados ao aludido levantamento dos dados.

O adiamento do Censo implica prejuízos consideráveis para a capacidade de formulação adequada de políticas públicas e, em especial, para os entes subnacionais que dependem de repasses federativos lastreados nas informações demográficas ali apuradas. Daí é que decorreu a demanda do Estado do Maranhão em busca da tutela judicial oferecida prontamente pelo Ministro Marco Aurélio nos seguintes termos:

"O censo, realizado historicamente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), permite mapear as condições socioeconômicas de cada parte do Brasil. E, então, o Executivo e o Legislativo elaboram, no âmbito do ente federado, políticas públicas visando implementar direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Como combater desigualdades, instituir programas de transferência de renda, construir escolas e hospitais sem prévio conhecimento das necessidades locais?
A União e o IBGE, ao deixarem de realizar o estudo no corrente ano, em razão de corte de verbas, descumpriram o dever específico de organizar e manter os serviços oficiais de estatística e geografia de alcance nacional — artigo 21, inciso XV, da Constituição de 1988. Ameaçam, alfim, a própria força normativa da Lei Maior.
Surge imprescindível atuação conjunta dos três Poderes, tirando os compromissos constitucionais do papel. No caso, cabe ao Supremo, presentes o acesso ao Judiciário, a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais e a omissão dos réus, impor a adoção de providências a viabilizarem a pesquisa demográfica.
Defiro a liminar, para determinar a adoção de medidas voltadas à realização do censo, observados os parâmetros preconizados pelo IBGE, no âmbito da própria discricionariedade técnica."

Em ambos os julgados, a tensão entre limites fiscais e proteção de direitos fundamentais é situada no seu devido assento constitucional. Sabe o Supremo Tribunal Federal que o tamanho do Estado brasileiro é definido por nossa Constituição Cidadã, o qual não pode ser reduzido por regras fiscais contingentemente alteradas e superpostas para adiar indefinidamente a eficácia daqueles direitos.

Em meio à crise do orçamento de 2021, trata-se de uma judicialização que testa os limites fiscais das contas públicas em prol do estágio de proteção estatal suficiente para resguardar o núcleo de identidade da própria Constituição de 1988.

Vale lembrar que despesas obrigatórias foram aviltadas na lei orçamentária de 2021 para abrir ficticiamente espaço fiscal para emendas parlamentares. Caso o tamanho do Estado brasileiro fosse definido exclusiva e voluntariosamente pelo orçamento e não pela Constituição, teríamos em 2021 risco severo de descontinuidade no pagamento dos "Benefícios Previdenciários Urbanos e Rurais, Seguro Desemprego, Compensação ao Fundo do Regime Geral de Previdência Social — RGPS, Benefícios de Prestação Continuada (BPC) e Renda Mensal Vitalícia (RMV), Remuneração a Agentes Financeiros", e diversas subvenções econômicas no âmbito dos Programas "Brasil, Nosso Propósito", "Agropecuária Sustentável", e "Inserção Econômica Internacional". Aludido rol consta do Projeto de Lei Nacional 04/2021 que visa à recomposição de dotações relativas a despesas primárias obrigatórias que haviam sido reduzidas durante a tramitação do Projeto de Lei Orçamentária de 2021.

O conflito distributivo no orçamento federal segue em aberto, sem equacionamento adequado, até porque o Executivo se ausentou do dever de planejar detidamente o enfrentamento da pandemia em diálogo com o Congresso. Remendos precários têm sido aviados na lei orçamentária, sem que cheguemos a uma solução efetiva para nosso impasse fiscal. Como bem noticia a Folha de S.Paulo[…] [Arthur] Lira afirmou que, na próxima terça-feira (4), o Congresso deve votar um projeto para ajuste do Orçamento, que, segundo ele, sofreu cortes que foram inadequados.

O presidente da Câmara citou especificamente a tesourada no programa Minha Casa Minha Vida, em pesquisa de vacina contra a Covid-19, no Censo de 2021, na agricultura e em serviços essenciais.

"Nós, da Câmara, demonstramos à parte técnica do governo que poderíamos fazer diversos ajustes porque o Orçamento é uma peça autorizativa, de modo que deixasse esses setores que são primordiais, essenciais para o Brasil, tanto o setor produtivo, como esses assuntos, como casa própria, construção pela metade, isso não existe no Brasil do século 21", disse.

O projeto mencionado por Lira prevê o envio de aproximadamente R$ 20 bilhões para Previdência Social, seguro-desemprego, benefícios sociais e subsídios. Esse espaço foi aberto no Orçamento após os vetos de Bolsonaro a ações de alguns ministérios.

Às decisões do STF e à recomposição das despesas obrigatórias no PLN 4/2021 se soma o desafio da iminente apreciação dos vetos ao orçamento de 2021, para que a sociedade tenha clareza sistêmica a respeito do risco de paralisia fiscal em que se encontra um significativo rol de serviços públicos e ações governamentais.

Em todas essas frentes de análise, emerge — concretamente — a disputa sobre os limites fiscais impostos pela Emenda 95/2016 e pela meta de resultado primário para a atuação estatal em plena pandemia da Covid-19.

Defender a redução das despesas primárias que amparam a promoção dos direitos fundamentais, nesse contexto, é desafiar a incidência do controle judicial, para que sua palavra definitiva venha a pacificar até onde se pode adiar e/ou negar custeio ao núcleo das obrigações constitucionais que justificam a própria razão de ser do Estado brasileiro.

O que está em disputa, em última instância, é a ordenação legítima de prioridades no ciclo orçamentário em estrita consonância com o pacto constitucional civilizatório (verdadeiro contrato social) que ousamos celebrar em 1988.

Preterir obrigações de fazer definidas legal e constitucionalmente em uma leitura formal e reducionista das regras fiscais é condicionar o cumprimento da Constituição aos limites do orçamento, quando, a bem da verdade, esse só é legítimo à luz daquela.

Assim, quaisquer regras fiscais que visem à redução do Estado em patamar aquém das suas obrigações constitucionais, negando-lhes custeio ou simplesmente adiando sua implementação indefinidamente, devem ser fulminadas e extirpadas do nosso ordenamento.

As leis orçamentárias de todos os entes da federação devem se orientar em torno do tamanho necessário do Estado, aqui entendido como aquele apto a cumprir, sem qualquer preterição imotivada, todas as obrigações já fixadas constitucional e legalmente, conforme determina o art. 9º, §2º da LRF.

Eis o que o Supremo Tribunal Federal bem identificou como imperativos de tutela inadiáveis e inegociáveis na consecução dos direitos fundamentais, sob pena de inconstitucional proteção insuficiente.

Em última instância, o que está em debate no Brasil dos presentes dias é a própria noção de proteção orçamentária suficiente. Quão menores podem ser as despesas primárias? Quão mínimo pode ser o Estado brasileiro? Quais direitos fundamentais podem ser adiados, contingenciados e/ou simplesmente negados? Enfim, todas essas são perguntas distributivas que envolvem um longo e complexo desafio civilizatório que não pode ser simplesmente interditado, a pretexto de falseadas e controversas restrições fiscais.

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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